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sexta-feira, 24 de junho de 2016

Brutalidade afetiva

Não estamos acostumados a tratar o outro com o cuidado com que queremos ser tratados

IVAN MARTINS
22/06/2016

Vistos de perto, somos uma gente descuidada e bruta no trato íntimo. Há pessoas preocupadas com os sentimentos dos outros, mas são minoria. No atacado, oferecemos um show coletivo de descaso e grosserias. A regra principal, que parece única, é assim: se eu estiver interessado, apaixonado ou com tesão, corro atrás e me desvelo. Se não estiver, ou se não estiver mais, azar. O outro será ignorado ou destratado.

Não estou fazendo uma queixa, embora pudesse. É mais uma autocrítica, inspirada pelas conversas com gente que vive fora do Brasil ou se relaciona com estrangeiros. As histórias que me contam fazem notar que temos por aqui pouca atenção e pouco respeito pelo outro – mesmo por pessoas que dividem seu corpo, seu tempo e seus sentimentos conosco. Achamos que a atenção e o carinho que recebemos são uma espécie de direito natural. Logo, não precisam ser retribuídos. Isso torna as delicadezas supérfluas.

Uma amiga que mora na Holanda foi transar com um cara de uns 40 anos – depois de saírem duas vezes – e, quando a noite se aproximava do desfecho, ele perguntou, delicadamente, se estaria bem para ela que fosse apenas sexo casual. Ele vinha de um relacionamento, ainda estava ligado a outra mulher e, embora muito atraído pela minha amiga, não queria magoá-la ou criar expectativas falsas. Um fofo, me disse ela. Transaram.

A parte cômica da história é que ela mesma não tinha vontade alguma de namorar, mas nem lhe passou pela cabeça dar o mesmo aviso. Na mentalidade brasileira, é cada um por si. A gente não diz coisas que possam atrapalhar nossos planos imediatos. Pegamos o que precisamos e o outro que se vire com os sentimentos dele. Se o holandês de minha amiga estivesse apaixonado e cheio de boas intenções, azar dele. Descobriria no dia seguinte que ela tinha outros planos.

Acho que isso revela um traço da cultura do país. Somos movidos por sentimentos, não por valores. Se eu gosto de alguém, se estiver apaixonado, faço por ele ou por ela o que estrangeiros não fariam. Sempre como um ato emocional. Mas, se os sentimentos não se manifestam, achamos não ter obrigação alguma para com o outro. Seja amante, vizinho ou transeunte. Nossa famosa cordialidade é interessada, interesseira. Aparece quando queremos algo do outro. Sexo ou amor, frequentemente.

Esse modo de agir torna a brutalidade afetiva uma moeda corrente. Se saímos com alguém e não nos apaixonamos, o padrão de tratamento desaba. Antes, um príncipe. Depois, um desaparecido. Ou uma ogra de unhas vermelhas. A gente diz que vai telefonar e não telefona. A gente ignora mensagens diretas nas redes sociais. A gente cancela encontros na última hora. A gente trata mal, enfim. Tem gente que aparece com uma pessoa nova na frente daquela com quem estava até ontem, numa demonstração espantosa de descaso. Se alguém reclama, é mimimi. A coisa só fica séria quando fazem tudo isso com a gente. Então é intolerável.

Não estou dizendo – vejam bem – que a gente nunca vai desapontar ninguém e que toda transa deve terminar em relacionamento ou namoro. Isso seria impossível. O que estou dizendo é que as pessoas merecem nossa atenção e nosso cuidado mesmo quando não as desejamos mais, ou não estamos apaixonados por elas. O que estou dizendo, além disso, é que os sentimentos que são claros deveriam ser comunicados ao outro, sobretudo quando são contrários aos sentimentos que ele ou ela manifesta. Se a moça está ficando apaixonada e você não, avise. Do contrário é sacanagem.

Na selvageria relacional em que vivemos, a sinceridade tem valor baixo. O que passa entre nós por gentileza é muitas vezes uma forma de enganar o outro. Na hora de seduzir, você não diz que está emocionalmente indisponível, apaixonado por outra mulher. Na hora de ficar com o cara gato, que é meio ingênuo mas tem bom coração, você finge que ele é o homem mais interessante do mundo. A verdade não faz parte cotidiana de nossa existência sexual e afetiva. Coisas que não são lisonjeiras (e podem afastar o outro da gente) são mencionadas apenas em momentos de crise. A gente só diz a verdade sob pressão.

Queremos tanto que gostem da gente que não nos importamos em iludir para sermos amados. Depois, quando o afeto dele ou dela não importa mais, nos tornamos francos. Quer dizer, insensíveis e até grosseiros.

Como toda cultura afetiva, a nossa deve ter vantagens e desvantagens. Talvez europeus e americanos sejam menos apaixonados do que nós. Talvez nossa intimidade seja mais rica. Não sei. Mas parece que eles têm códigos de conduta mais claros, que valem para todos os estados emocionais.

Lembro de uma amiga brasileira que vive na Itália contando que levou broncas em seus primeiros anos por lá. Dizia que telefonaria e não telefonava. Dizia que apareceria e não aparecia. Agia como apaixonada, sem estar. As pessoas ficavam bravas com ela. Não estão acostumadas a isso.

Aqui, é o contrário. Sofremos e praticamos todo tipo de desatenção. Na verdade, não estamos acostumados a tratar o outro com o cuidado com que desejamos ser tratados.

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