A crescente preferência por filhos homens em regiões como a Ásia e o Sudeste da Europa leva famílias a usar práticas como o aborto para eliminar fetos femininos. Especialistas alertam para os perigos de uma sociedade patriarcal e masculinizada
Enquanto muitas mulheres lutam por igualdade entre os gêneros nas sociedades ocidentais, até mesmo nas mais desenvolvidas, para outras, a luta começa ainda antes de nascer. A professora Andrea Den Boer, do departamento de Políticas e Relações Internacionais da Universidade de Kent (Inglaterra), em parceria com a professora Valerie Hudson, do Departamento de Assuntos Internacionais da Universidade do Texas (Estados Unidos), fizeram o alerta em um artigo publicado recentemente na revista Foreign Policy em que apontam, com dados do Fundo das Nações Unidas para as Populações (Unfpa, na sigla em inglês), uma crescente, e alarmante, tendência de vidas femininas entre 0 e 4 anos abatidas da população em um maior número de países.
Um comportamento antes concentrado na Ásia parece estar sendo incorporado com cada vez maior normalidade em países do Sudeste europeu, do Oriente Médio e da África. Apesar de a tendência passar despercebida por grande parte das autoridades e da sociedade civil, Andrea e Valerie lembram que o aumento desse fenômeno vem ocorrendo desde os anos 1990. Segundo o relatório da Unfpa, em 1995, apenas seis países apresentavam um desequilíbrio na proporção de crianças do sexo masculino e do sexo feminino entre 0 e 4 anos.
Atualmente, a diferença chama a atenção em 21 países (ver quadro ao final da reportagem). De fato, é o tipo de dado demográfico que precisa de atenção e de alguns anos para que seja detectada uma tendência. Quando a distribuição entre os sexos é feita pela seleção natural, a proporção fica entre 103 e 106 meninos para cada grupo de 100 meninas. Em alguns países, porém, pode-se notar uma desproporção muito grande, e é aí que se acende o sinal de alerta. Em algumas regiões, a diferença chega a ser de 25%.
Esse aumento é preocupante, dizem as pesquisadoras, pois reflete o baixo nível de status social que mulheres e meninas ainda carregam em muitos países. A desvalorização da vida feminina é tão forte que famílias recorrem a abortos para se livrar delas. É a chamada seleção artificial. O Unfpa estima que, nos últimos 25 anos, a prática tenha eliminado 171 mil fetos femininos apenas na Ásia. Ainda que os bebês de sexo feminino não sejam abortados, a seleção artificial pode ocorrer na forma de negligência tanto ao acesso à alimentação como aos cuidados médicos adequados quando necessário – entre elas, a falta de vacinação adequada.
Combinação cruel
As regiões onde a seleção artificial de gêneros ocorre compartilham três perfis: uma forte preferência por filhos do sexo masculino, a queda na taxa de fertilidade e o acesso à tecnologia de última geração. “Ainda não sabemos o porquê de esse fato passar tão despercebido, mesmo tendo ciência de que nas sociedades patriarcais sempre houve a preferência por filhos homens. Agora, em geral, como a taxa de fertilidade caiu, as famílias estão fazendo uso da tecnologia para garantir pelo menos um descendente masculino”, afirma Andrea em entrevista a PLANETA.
Atualmente, explica sua colega Valerie, é possível identificar o sexo de um feto com apenas sete semanas de gestação, por meio de um exame de sangue de custo bastante acessível. Além disso, equipamentos de ultrassom estão disponíveis hoje até mesmo nos mais pobres dos países, e nas cidades mais remotas é possível ter acesso a esse tipo de tecnologia.
Assim, abortos podem ser realizados antes que alguém da sociedade perceba a gravidez. “E mesmo quando as meninas são negligenciadas a ponto de morrer, isso não causa exatamente uma comoção em algumas comunidades, pois as pessoas compreendem a preferência por meninos”, afirma Valerie.
No caso das novas regiões, Andrea alerta que em um momento em que há a conjunção de um governo fraco e insegurança, seja econômica ou por conflitos, as famílias acabam se apoiando em redes masculinas como uma fonte de segurança. “A patrilinearidade tem um importante papel nessa questão, mas, em regiões de estabilidade política e econômica, ela não necessariamente leva ao desequilíbrio na proporção entre meninos e meninas até 4 anos de idade. A menos que haja um catalisador como baixa fertilidade, acesso à tecnologia moderna ou ainda práticas desiguais em relação à herança e responsabilidades sociais, como cuidar dos entes mais idosos”, detalha Andrea.
Este último ponto é onde, por enquanto, se concentram os esforços para equilibrar essa preferência por filhos homens, tendo como modelo o caso da Coreia do Sul. O país asiático, líder do levantamento da desproporção em 1995, foi o único a reverter esse desequilíbrio nos últimos anos. Nos anos 1970, a Coreia do Sul estabeleceu a regra de dois filhos por família e pressionou para a queda da fertilidade, o que fez a taxa diminuir de seis para dois filhos por família em 1983. Como consequência disso, na década de 1990, a proporção chegou a ser de 116,5 meninos para cada grupo de 100 meninas.
A estratégia do governo foi então alterar as leis que favoreciam os homens e um amplo trabalho social de valorização da figura feminina. Isso incluiu mudar as regras de direito à herança não só de bens como do sobrenome da família, à propriedade e à custódia das crianças em caso de divórcio, entre outras. Também foi proibido o teste pré-natal para identificar o sexo do feto e se coibiram os médicos da prática de aborto para seleção artificial de gênero. Assim, a proporção baixou para 110,2, no início dos anos 2000, e chegou à proporção natural já em 2007.
Andrea conta que a China também recuperou esse desequilíbrio após 1949, ao estimular famílias maiores e adotar leis mais favoráveis às mulheres. A partir de 1979, porém, com a introdução da política do filho único, o gigante asiático voltou a apresentar um incremento na preferência por filhos meninos. Baseada na experiência da Coreia do Sul, a Unfpa foca seus esforços para evitar o que já está sendo chamado de ‘generocídio’ por alguns especialistas, com mudanças nas políticas públicas em direção à igualdade de direitos das mulheres, como a modernização em leis que suportem a patrilinearidade, somadas às mudanças legais, campanhas e programas contra a discriminação.
Andrea conta que a China também recuperou esse desequilíbrio após 1949, ao estimular famílias maiores e adotar leis mais favoráveis às mulheres. A partir de 1979, porém, com a introdução da política do filho único, o gigante asiático voltou a apresentar um incremento na preferência por filhos meninos. Baseada na experiência da Coreia do Sul, a Unfpa foca seus esforços para evitar o que já está sendo chamado de ‘generocídio’ por alguns especialistas, com mudanças nas políticas públicas em direção à igualdade de direitos das mulheres, como a modernização em leis que suportem a patrilinearidade, somadas às mudanças legais, campanhas e programas contra a discriminação.
O órgão chega a recomendar que países considerem introduzir programas para promover assistência financeira, seja por subsídios diretos ou por incentivos como redução de impostos, aposentadoria precoce, bolsas educacionais e benefícios sociais para famílias com descendentes meninas que considerem isso um peso para elas. De acordo com a Unfpa, a ação já está sendo introduzida na Albânia, na Armênia, no Azerbaijão, na Geórgia, no Cazaquistão, na Moldávia, na Romênia, na Rússia, na Sérvia, no Tajiquistão, no Turcomenistão e em Kosovo.
Violência ampliada
O aumento populacional de pessoas do gênero masculino em relação ao feminino não é preocupante só porque ajuda a perpetuar práticas sexistas em sociedades já bastante patriarcais. Segundo os demógrafos John Bongaarts e Christophe Guilmoto, países em que há déficit de mulheres costumam sofrer com o aumento da violência e distúrbios sociais. A pesquisa “Índices de gênero e crime: Evidência da China”, publicada por Lena Edlund, Hongbin Li, Junjian Yi e Junsen Zhang, identificou que para cada 1% de alteração na proporção entre os sexos a favor do masculino, há um incremento de 3,7% na violência naquele país.
“O fenômeno masculiniza a sociedade, aumenta os índices de crimes violentos e atividades de grupos criminosos e ainda eleva a prostituição e o tráfico de mulheres”, alerta a Unfpa. Seguir o exemplo sul-coreano para equilibrar a existência de homens e mulheres na sociedade, como a natureza sabiamente já faz, pode ser uma alternativa, e a mais simples delas, já que o verdadeiro desafio será mudar tradições. Enquanto isso, algumas sociedade vão ter de pagar o preço desvalorização da vida feminina.
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