Milhares de famílias que vivem em comunidades do Rio têm de deixar suas casas devido ao assédio sexual de traficantes
FELIPE BETIM
Rio de Janeiro
"Sua filha é minha. Eu vou cuidar dela".
Estas poucas palavras, que saíram da boca de um traficante da favela de Acari, na zona norte do Rio de Janeiro, fizeram Pedro* largar tudo o que tinha do dia para a noite. Morava com sua família, incluindo uma filha de 16 anos, em um bairro vizinho e era conhecido pelos moradores da redondeza pelo boteco que possuía em frente de sua casa. Estava lá, tomando uma cerveja no balcão, quando recebeu este aviso de um traficante. No dia seguinte, o estabelecimento amanheceu fechado. E os vizinhos do bairro nunca mais ouviram falar dele e de sua família.
O relato acima aconteceu há aproximadamente 15 anos e foi narrada por um antigo morador do bairro. Segundo especialistas, ilustra uma realidade bastante comum — e invisível — nas favelas e bairros periféricos do Rio de Janeiro: o poder que o narcotráfico exerce na vida de várias meninas das comunidades e de suas respectivas famílias. “Existe um contingente de refugiados no Rio de Janeiro, um trânsito invisível de pessoas, porque o tráfico não somente ocupa os morros e as casas das pessoas, mas também o corpo das meninas. Elas passam a ser deles, garotas deles!”, resume Jacqueline Pitanguy, coordenadora da ONG CEPIA (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação).
A história se repete em todos os lugares. "Quando as meninas começam a crescer e desenvolver o seu corpo, os caras já começam a ficar de olho. Se o cara possui um status dentro do tráfico, ele vai ficar mais a vontade para fazer o que quer. Por exemplo, avisar a família que a menina é dele, algo que é muito frequente”, explica Cristina Fernandes, psicóloga e coordenadora do Centro Integrado de Atendimento à Mulher (CIAM) Márcia Lyra, o mais antigo serviço do Rio de Janeiro que atende e oferece orientação para mulheres vítimas de violência. “Então ela passa a não poder namorar com ninguém, a não transar com ninguém. Ele tem que ser o primeiro”, conclui a psicóloga, especializada em casos de abusos de menores de idade.
Fernandes pondera que, em muitas ocasiões, essas meninas escolhidas e suas famílias acabam aceitando as condições impostas pelo tráfico por uma questão de status. Nesses casos, ela pode se tornar parte do harém do traficante e até mesmo sua primeira-dama, segundo explica. “Mas ainda assim entendemos como uma violência sexual. As meninas são muito novas e não têm noção das consequências. Ela pode acabar sendo descartada, cedida para alguém de um escalão menor ou dada de presente”.
Mas o que acontece quando a família ou a vítima não aceitam a notificação do traficante? Ou o que vai passar se, após sofrer sucessivos abusos sexuais, a menina decidir dar um basta e denunciar? “A família tem que fugir da comunidade para não ser morta”, responde Fernandes taxativamente.
Foi o que aconteceu com o pedreiro Antônio, que trabalhava para Pitanguy e outras pessoas de seu bairro e morava em uma casa no alto de um morro da zona sul do Rio. Um dia, há muitos anos, a casa foi tomada pelos traficantes por estar em um ponto com uma boa visão. Mas eles não queriam só a casa. “Ele sumiu durante um tempo. E quando lhe encontramos, nos contou: ‘Eles iam pegar minhas filhas! Fui para qualquer lugar, lá não podia ficar!’”.
*O nome do personagem é fictício.
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