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quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Escola sem Partido: posição contrária

02/08/2016 por Leonardo Carvalho Rangel
Nos dias recentes, intensificou-se o debate em torno de propostas legislativas relacionadas ao programa denominado Escola sem Partido (“EsP”).

O EsP espelha iniciativa de um grupo de cidadãos que pretende tornar obrigatória a publicização de um rol de deveres, imposto aos professores dos ensinos fundamental e médio, sob o argumento de defesa contra um assim chamado processo de “contaminação político-ideológica das escolas brasileiras”.

A discussão sobre o tema atingiu todas as esferas federativas e de tripartição de funções da República brasileira.

Alguns Munícipios e Estados-membros, além do Distrito Federal e da própria União, enfrentam – ou, em alguns casos, já enfrentaram – a tramitação de projetos de lei inspirados no ideário do EsP.

No campo estadual, merece destaque a atuação do Poder Legislativo de Alagoas na promulgação da Lei Estadual nº 7.800, de 5 maio de 2016 (“Programa Escola Livre”), após derrubada de veto do Executivo.

O Judiciário, por sua vez, foi instado a analisar a constitucionalidade da citada lei alagoana nos autos de duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs nº 0802209-49.2016.8.02.0000 e 5537, em trâmite, respectivamente, perante o Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas e o Supremo Tribunal Federal).

No plano federal, sem negligenciar a existência de outras propostas concernentes (PLs nº  7180/2014, 7181/2014, 1411/2015, 1859/2015, 4486/2016, 5487/2016 e 193/2016), cabe destacar o Projeto de Lei nº 867, de 2015, de autoria do Deputado Federal Izalci Ferreira (PSDB/DF), em trâmite perante a Câmara dos Deputados.

Referida proposição dispõe sobre a inclusão entre as diretrizes e bases da educação nacional do “Programa Escola sem Partido”. O texto veda condutas qualificadas como “prática de doutrinação política e ideológica” ou “em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”.

O projeto visa ainda a obrigar a afixação de cartazes, em variados locais de ensino, que reproduzam conteúdo com um total de seis deveres do professor.

Tais deveres aparecem relacionados, em suma, (i) a vedações de cooptação, favorecimento, prejuízo ou incitação de atos vinculados a correntes política, ideológica ou partidária, (ii) ao tratamento de forma justa (“com mesma profundidade e seriedade”) das diversas versões, teorias, opiniões, sobre questões políticas, sócio-culturais e econômicas, (iii) ao direito dos pais para que seus filhos recebam a educação moral de acordo com suas próprias convicções, (iv) bem como à garantia de que o ambiente de “neutralidade” educacional não seja violado por terceiros.

Sob o prisma formal, por se tratar de matéria dotada de generalidade ante a pretensão de fixação de diretrizes educacionais, atesta-se conformidade com o disposto no artigo 22, XXIV, da Constituição da República (CR), que revela a competência legislativa privativa da União sobre o tema. Por consequência, consigna-se posição pela inconstitucionalidade formal das iniciativas estaduais e municipais inspiradas no EsP. 

Se analisada sob a ótica material, seguindo interpretação guiada pelo princípio vetor da máxima efetividade das normas constitucionais, de acordo com a análise disposta abaixo em cinco eixos principais, conclui-se pela inconstitucionalidade do programa.

1) Paradoxo dos argumentos de observância ao pluralismo e de vedação de conduta tendente à defesa de posições políticas e ideológicas: seja como fundamento da República, seja como princípio vetor de ensino, o pluralismo previsto nos artigos 1º, V, e 206, III, e anunciado desde o preâmbulo da Constituição como valor essencial para formação da sociedade (pluralista) brasileira, só pode ser efetivado pelo confronto de posições políticas, concepções pedagógicas e ideológicas. O confronto, por sua vez, pressupõe a defesa de linhas de pensamento.

Tendo a educação a finalidade precípua de desenvolvimento da pessoa em plenitude, o que abrange sua preparação para o exercício da cidadania, constitui dever do Estado, da família e de toda a sociedade garantir que estudantes sejam expostos à diversidade de opiniões, dentro e fora das salas de aula, sob pena de ofensa ao artigo 205 da CR.

2) Adoção de termos vagos e arbitrariedade na classificação de condutas versus liberdades de cátedra e aprendizado: “doutrinação política e ideológica” e “veiculação de conteúdos em conflito com as convicções religiosas” constituem expressões vagas que vulneram as liberdades de cátedra e aprendizado (aqui entendidas como a via dúplice na busca pelo conhecimento), na medida em que restringem os eixos de pesquisa e divulgação do pensamento, da arte e do saber, nos termos do art. 206, II, CR.

É direito do professor expor - e do aluno conhecer - a opinião sobre determinado tema, até mesmo como forma de incentivo à pesquisa em torno de visões opostas.

Além disso, quais seriam os conteúdos ideológicos ou partidários? Quem assim os qualificaria? A defesa de responsabilização de políticos filiados a determinado partido político por atos de corrupção como exemplo de funcionamento das instituições democráticas representaria contrapropaganda político-partidária?

Percebe-se pelas questões levantadas que a arbitrariedade na classificação de limites ideológicos esbarra na proibição de censura (artigo 5º, IX) e vulnera o regime de liberdades de consciência e de convicção política expressamente estendido às crianças e aos adolescentes (art. 5º, VI e VIII, e 227, caput).

(3) Definição dos conceitos de educação, ensino (educação escolar) e educação familiar: a defesa do EsP é sustentada em argumento de império da vontade dos pais para que os filhos recebam educação religiosa e moral de acordo com suas convicções (artigo 12, V, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos).

Os artigos 6º e 205 da Constituição, todavia, revelam conceito amplo da educação, entendido como processo contínuo de transmissão de valores, ensinamentos e experiências, direito social de caráter universal e fundamental, e dever voltado ao Estado, à família e à própria sociedade. A educação familiar (moral e eventualmente religiosa) não exclui aquela formal (atividades de ensino regidas pelos princípios previstos no artigo 206, CR). Ambas devem ser entendidas em caráter de complementariedade e tratadas de acordo com os princípios e regras que lhe são específicos.

4) Omissão quanto ao regime de responsabilidade contra as formas de discriminação: a defesa do EsP, a par das divergências aqui já assinaladas, apresenta preocupação legítima contra diversas formas de discriminação. Há omissão relevante, porém, quanto ao fato de que ordenamento jurídico pátrio já garante (art. 3º, IV, e 5º, V, X, XLI, e 227, caput e II, CR), inclusive no âmbito criminal (Lei Federal nº 7716/1989 e art. 140, §3º, do Código Penal), a punição de agentes – sejam professores ou não – em razão da prática de atos discriminatórios. 

5) Laicismo e impessoalidade estatais versus neutralidade: o laicismo do Estado brasileiro (art. 19, I, CR) conduz ao dever inafastável de garantia da liberdade religiosa (art. 5º, VIII, CR). O princípio da impessoalidade (artigo 37, caput, CR), por sua vez, constitui viga mestra da atuação estatal, mediante vedação de comportamentos tendentes a favorecer ou prejudicar indivíduos por razões de cunho pessoal. Tais vetores, no entanto, não podem ser confundidos com o ideal de neutralidade ideológica ou axiológica, já que todos indivíduos – agentes estatais ou não – agem influenciados por diferentes convicções filosóficas, ideológicas e crenças, e assim o fazem amparados pelas normas que elevam o pluralismo à condição de preceito fundamental da República brasileira (arts. 1º, V e 206, III, CR).

Pelas razões apresentadas, conclui-se que o programa Escola sem Partido é contrário à Constituição brasileira.

A educação, presente em momentos e locais dos mais variados da vida humana (como em casa, na escola, em espaço de culto religioso ou mesmo no clube), deve-se amoldar à lógica do pluralismo, ou seja, do incentivo ao dissenso pacífico de linhas de pensamento, que seja capaz de fomentar, e não de tolher debates.

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