(Folha de S.Paulo, 01/08/2016) Violência doméstica mata mais que terrorismo, mas o Estado ignora
Lucia Direnberger é uma pesquisadora francesa que escreve sobre mulheres que trabalham em temas relacionados ao gênero no Tadjiquistão. Neste ano, em um seminário na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, ela falava sobre como essas mulheres tadjiques explicavam sua motivação para trabalhar com temas como a violência doméstica: “não quero que minhas filhas passem pelas mesmas coisas que eu passei”.
Até aí, nada de particularmente “exótico” para nós. Percebemos que brasileiras e tadjiques dividem algo em comum: o medo particular reservado às mulheres em nossas sociedades. Em seguida, Lucia contou sobre o percurso de uma de suas pesquisadas e falou sobre a motivação para o seu trabalho: os dois anos que passou morando no Afeganistão, país com o qual o Tadjiquistão faz fronteira, no início dos anos 2000, não foram resultado de uma escolha simplesmente profissional. Vítima de violência doméstica, sem apoio da família, ela decidiu deixar seu país de origem rumo ao Afeganistão porque temia por sua segurança.
No início dos anos 2000, o Afeganistão era uma das zonas de conflito mais violentas do mundo. Mas para a mulher da história contada por Lucia, uma das zonas de conflitos mais violentas do mundo era um oásis diante da situação que ela vivia na sua própria casa. Essa história vira de ponta-cabeça não só todos os lugares-comuns, mas também todos os conceitos sofisticados que existem sobre segurança e insegurança.
Ser mulher, como ser negro, ou LGBTQI, ou ambos e variações, é viver imersa em cálculos estratégicos: Estou em desvantagem nesse terreno? Eu conheço esse terreno? Quais as chances, neste momento, de um ataque? Como eu posso evitá-lo? Quais as armas eu tenho para responder? E isso é pegar um ônibus, entrar num bar, num táxi, ficar até mais tarde na universidade, voltar pra casa. Nós, mulheres, brincamos sobre ir para encontros do tinder e nos enviarmos mutuamente SMSs dizendo “amiga, se eu não der notícia em duas horas, chama a polícia!”.
Na época dos atentados de novembro em Paris, eu dizia, num esforço desajeitado e não muito engraçado, tentando acalmar as minhas amigas mais nervosas: – amiga, relaxa, há mais chances de você ser morta por um companheiro ou marido do que por um terrorista desconhecido. A chance de morrer em um ataque terrorista é menor do que de morrer de queda de avião ou de ataque de tubarão,* sobretudo em um país da Europa ou no Brasil.
Já a violência conjugal é a causa número 1 no mundo de mortalidade para mulheres entre 19 e 44 anos, segundo a comissão europeia**. Mata mais do que câncer e mais do que a guerra. Esse tipo de estatística coloca algumas coisas em perspectiva. O terror é uma condição de incerteza que só é nova para alguns, enquanto outrxs vivem em terror cotidiano. O terror ganha a dimensão que ganha porque elude as proteções que o Estado define, e essas proteções sempre tiveram como referência a garantia de segurança de alguns cidadãos-tipo, e é para servir ao conforto deles que os grandes discursos sobre o medo e a segurança existem.
As mulheres, as minorias estão individualmente imersas em constantes cálculos estratégicos porque, como o exemplo da nossa colega tadjique deixa claro, os cálculos estratégicos do Estado não estão pensados para elas. A segurança do território nacional e a defesa da soberania foram criadas e ainda hoje são pensadas pelo Homem para o Homem.
Esta lógica se mantêm apesar de todo um movimento feminista internacional que existe desde a época das sufragetes. As origens do feminismo, tal como o conhecemos, é geralmente ligada aos movimentos em prol do sufrágio feminino. A tomada do espaço público pelas mulheres no século XX é igualmente devedora dos movimentos feministas anti-guerra que se organizam antes e durante a Primeira Guerra Mundial. Esse movimento, com seus altos e baixos, existiu ao longo do último século e em 2001 conquistou um lugar na agenda do Conselho de Segurança das Nações Unidas para a discussão do tema “mulheres, paz e segurança”.
Realizei meu campo de doutorado em Porto Príncipe, entre fevereiro e maio do ano passado. Lá, entrevistei militares brasileiros sobre o trabalho na operação de paz da ONU, cujo mandato é « manter o ambiente seguro e estável » no Haiti. Meu objetivo era entender, afinal, para quê tem servido o esforço que o chamado “feminismo internacional” decidiu apostar na instituição. O que eu ouvi e vi reverbera em muito outra coluna publicada recentemente nesse espaço: o ethos militar, mesmo quando banhado de humanitário, continua sendo masculino, e isso é um problema.
Os esforços junto ao Conselho da ONU acabaram por traduzirem-se, nesse começo de século XXI, num foco quase único sobre « evitar a exploração sexual » que não é apenas limitado, mas também míope. A forma como se discute esse «evitar a exploração sexual» não coloca em questão a norma da virilidade que continua a fazer das nossas próprias casas campos de batalha.
Os soldados, nessa prática onusiana, não devem «explorar mulheres e crianças» porque ser homem na era do humanitarismo se mede pelo controle de si: ou seja, pelo uso da violência «no momento certo». Eles «não devem explorar mulheres e crianças» porque as missões, cujo emprego continua a ser definido pelo ethos masculino, têm mais «chances de sucesso» se contarem com o «apoio da população». Não se trata nem de defender melhor as mulheres para ter o apoio delas. Trata-se de garantir a não-oposição masculina local, que pode tornar-se violenta contra a missão nesses contextos. Reforça-se a ideia de que o valor da mulher não está em si, mas como “propriedade”, personificação de uma comunidade de valores.
A ideia de que que mulheres possam sofrer inseguranças outras que aquelas causadas pela falta de controle das forças de ordem sobre o território nacional continua a não ser política. Isso se não levarmos em consideração — o que eu gostaria de levar — que algumas inseguranças «particularmente» femininas resultam exatamente da forma como as forças da ordem garantem o controle sobre o território nacional.
A pesquisa sobre a participação na MINUSTAH também é uma excelente base de comparação, comparação feita pelo próprio Estado brasileiro, para entender a estratégia «pacificadora» usada no Rio. «Pacificados» sob os olhos da comunidade internacional, os haitianos têm mais sorte do que os cariocas (nas palavras célebres de Caetano, o Haiti é aqui, o Haiti não é aqui). Os olhos da comunidade internacional garantem um maior cuidado com “deslizes” em relação à “população civil”.
A comparação também permite que entendamos, a partir de um exemplo nosso, como o que é visto como «segurança» é inseguro desproporcionalmente para as mulheres. Os homens das regiões periféricas (domésticas e/ou globais) sofrem também de maneira aguda com essa insegurança, mas as mulheres destas regiões… sofrem como nesta imagem***.
É importante falar de “violência contra as mulheres” em termos de insegurança, porque há sim e sempre houve uma competição entre quais seguranças serão vistas como «estratégicas». E as mulheres continuam sendo as grandes perdedoras nas guerras – e na paz – viris. Mais ainda, lutar contra o militarismo é uma questão feminista atual, porque atualmente o discurso feminista tem sido cooptado. A «condição feminina» é usada para justificar intervenções militares quando isso parece útil, e uma vez o aparato guerreiro posto em marcha, as inseguranças femininas são rapidamente reduzidas a uma questão subsidiária. Lutar contra o militarismo é uma questão feminista. É para evitar que filhas passem pelo que suas mães passaram.
*Por Izadora Monte, pesquisadora do Genre, Travail et Mobilités do Centre de Recherces Sociales et Politiques de Paris (CRESPPA-GTM), mestre em Gênero, Política e Sexualidade pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, mestre em Política Internacional e Comparada pelo Instituto de Relações Internacionais da UNB e doutoranda em Sociologia na Universidade de Paris 8 Vincennes Seine-Saint-Deni.
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