Diferença de ganho por gênero faz parte da cultura alemã: mulheres recebem 21% a menos do que homens. Há dez anos, empresa pública de saneamento iniciou programa para acabar com essa discrepância – e virou modelo.
Clarissa Neher
Quando começou, há cerca de dez anos, um projeto de reestruturação no quadro de funcionários, a empresa de saneamento da capital alemã, Berliner Wasserbetriebe, responsável pelo abastecimento de água dos cerca de 3,5 milhões de moradores, não imaginava que a iniciativa daria início a um processo de equiparação salarial entre homens e mulheres que se tornaria um modelo.
Com a modernização e a automatização de alguns setores, a empresa, que possui cerca de 4,4 mil funcionários, precisava realocar empregados para evitar demissões. O processo teve início com um estudo que visava a otimizar essa reestruturação.
“Durante o processo, percebemos que, em algumas áreas, havia estruturas de salário historicamente enraizadas que não correspondiam mais com a atualidade. Por isso, iniciamos a campanha de equiparação salarial entre homens e mulheres”, conta o porta-voz da Berliner Wasserbetriebe, Stephan Natz.
A diferença salarial por gênero não é um problema exclusivo da Berliner Wasserbetriebe. Segundo uma pesquisa recente do Ministério para Família, Idosos, Mulheres e Jovens, as mulheres ganham 21% a menos do que homens na Alemanha. No Brasil, a diferença chega a 34%.
Segundo a cientista política Barbara Riedmüller, a diferença salarial teve início com a expansão do mercado de trabalho, quando as mulheres costumavam ser vistas como substitutas dos homens, o que, na época, justificava a discrepância no pagamento.
Com o tempo, as mulheres passaram a ser prejudicadas pelo fato de engravidarem, acrescenta Riedmüller. A esses fatores junta-se ainda a falta de um poder organizacional forte em debates laborais – por exemplo, sindicatos que tenham a equiparação salarial como causa principal.
As estruturas discriminatórias vão se enraizando em empresas, e avanços costumam ocorrer lentamente, sem que haja iniciativas que visam exclusivamente uma reforma salarial. Com a Berliner Wasserbetriebe não foi diferente: a mudança ocorreu dentro de um processo maior de realocação de funcionários.
Combate a "funções de homem"
Na Berliner Wasserbetriebe, o primeiro passo para promover uma mudança em estruturas históricas foi identificar onde a discriminação acontecia e os motivos que justificavam a diferença nos honorários. Para fazer esse levantamento, ela contou com a ajuda de uma consultora da Fundação Hans-Böckler, ligada a sindicatos.
Um dos problemas encontrados foi a diferença no pagamento de profissões consideradas femininas e masculinas. “Funções de mulheres”, como na cantina, tendiam a ser classificadas de valor menor em comparação com as ocupadas por homens, como em estações de tratamento.
Após identificar diferenças salariais dentro da mesma área, a próxima etapa do estudo foi corrigir as lacunas entre as funções consideradas “típicas de mulheres” e as “típicas de homens”. Para isso, uma série de critérios – como grau de qualificação, responsabilidade, exigência do cargo – foram levados em consideração para a equiparação salarial entre setores que exigiam requisitos semelhantes dos funcionários.
“Queríamos uma equiparação universal, comparamos as funções para igualar os salários quando as exigências eram as mesmas. A transparência foi importante para o sucesso do projeto”, ressalta Natz.
Inspiração para lei
A transparência da Berliner Wasserbetriebe serviu de inspiração para uma lei de equiparação salarial aprovada na semana passada pelos partidos que formam a coalizão do governo Angela Merkel.
A proposta, que deve ser aprovada no Parlamento no ano que vem, estabelece a funcionários de empresas, que possuem a partir de 200 empregados, o direito de solicitar informações sobre o honorário de pessoas que ocupam a mesma função.
A legislação determina ainda que empresas com 500 funcionários ou mais realizem auditorias que abordem a discriminação de gênero nas folhas de pagamento a cada cinco anos e apresentem relatórios sobre o que estão fazendo para alcançar a equiparação salarial.
O governo afirma que a lei é um passo importante para acabar com a discriminação de gênero no mercado de trabalho, além de fortalecer a posição de mulheres em negociações salariais. No entanto, a medida é vista com receio por especialistas.
“A lei é fraca, pois ela não determina a obrigatoriedade da equiparação salarial", afirma Riedmüller. "Ela só abre a oportunidade de se questionar sobre quanto recebem os colegas, mas depois cabe à mulher entrar na Justiça para exigir o mesmo salário, correndo o risco de perder o emprego”, completa a especialista em políticas sociais.
Para o Conselho Nacional Alemão de Organizações de Mulheres, a lei é o primeiro passo, mas a grande maioria das mulheres na Alemanha trabalha em empresas com menos de 200 funcionários – ou seja, a proposta não terá impacto nenhum para elas.
“Há dois aspectos que dificultam a mudança deste cenário: o preconceito cultural em relação ao poder de trabalho feminino e o fato de que equiparação salarial significa a perda privilégios. Talvez, no futuro, as mulheres não ganharão mais, mas serão os homens que passarão a ganhar menos, por exemplo, em cargos de chefia ou em áreas superestimadas”, avalia Ulrike Helwerth, porta-voz do Conselho Nacional Alemão de Organizações de Mulheres.
O esforço da Berliner Wasserbetriebe rendeu frutos no mercado, principalmente num período de relativa escassez de mão de obra na Alemanha e com grande disputa de profissionais entre empresas. Natz afirma que, na concorrência em busca por novos funcionários, estudos revelaram que esse foi um fator fundamental para muitos optarem pela empresa.
Atualmente, 31% das vagas da empresa são preenchidas por mulheres. Nos próximos anos, cerca de 100 empregadores vão se aposentar, abrindo novos postos de trabalho. A Berliner Wasserbetriebe sabe que necessita de mulheres para preencher grande parte dessas vagas e aposta que a equiparação salarial é um fator diferencial perante a concorrência.
DW
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