A atriz a atriz peruana, estrela de 'A passageira', defende olhar para o futuro sem esquecer o passado
CAMILA MORAES
São Paulo
O passado não pode ser esquecido, mas tampouco deve nos deter. Assim é como Magaly Solier, uma das mais destacadas atrizes do cinema latino-americano hoje, enxerga a vida. É também como apresenta a trajetória de sua personagem em A passageira, que estrela ao lado do ator mexicano Damián Alcazar e que (caso raro no circuito nacional) acaba de chegar às salas do Brasil – onde Magaly esteve para divulgar o filme e prestigiar a mostra Mulheres em Cena (que acontece no CCBB-SP até 5 de outubro). Premiado em vários festivais internacionais, o longa-metragem de Salvador del Solar retrata uma mulher e um homem que deixaram o campo para viver em Lima, onde lutam para seguir adiante com os traumas vividos durante o confronto militar do Peru com a guerrilha do Sendero Luminoso.
Que a mulher da vida real e a personagem da ficção se cruzem na tela não é novidade na vida dessa jovem de origem indígena, nascida em Ayacucho há 30 anos, música e mãe de dois filhos. Magaly estreou no cinema atuando em Madeinusa – o primeiro longa-metragem da reconhecida realizadora peruana Claudia Llosa, que viu em seus olhos uma mistura de força e timidez e de raízes e futuro que caracterizam quase todos os seus papéis. No mais destacado deles, A teta assustada (também de Claudia Llosa), a atriz interpreta uma mulher que sofre de uma doença rara – um medo transmitido de mãe vítima de estupro ao filho através do leito materno. O filme, mais uma obra inspirada na guerra peruana, levou o prêmio máximo do Festival de Berlim em 2009 e representou o Peru entre os concorrentes a um Oscar estrangeiro em 2010.
Mas os prêmios são, para Magaly Solier, a menor parte do que a arte trouxe à sua vida. Do cinema, ela se lançou à música e gravou dois álbuns próprios: Warmi (2009) e Coca Quintucha (2015), ambos cantados em quéchua, a língua de seus ancestrais. Da música, embarcou em projetos educativos e hoje representa a Unesco como artista em defesa da cultura e da paz e contra a violência que sofrem milhares de mulheres peruanas, como ela. Um dia, pretende se candidatar à presidência do Peru, confessou a atriz ao EL PAÍS por telefone. Mas desse assunto, essa jovem tímida e com tanto a dizer prefere falar em outra entrevista, quando o futuro chegar.
Pergunta. Aos 30 anos, você é uma atriz e cantora muito ativa e premiada inclusive fora do seu país. Como começou sua carreira artística?
Resposta. Eu queria ser policial, mas antes queria conhecer Machu Picchu, no Peru. Como não tínhamos dinheiro para viajar, eu e meus companheiros decidimos vender comida em Ayacucho. Estávamos numa praça quando conheci a Claudia Llosa, que procurava locações para Madeinusa, seu primeiro longa-metragem. Ela se aproxima de mim e me pergunta se eu gostaria de trabalhar em um filme. Fiquei com muitíssimo medo, mas disse sim. Depois de um ano, Claudia me liga para fazer o casting. Nesse então, eu já tinha viajado a Machu Picchu e perseguia meu sonho de ser policial em Ayacucho, porque já havia esquecido dela. Mas puseram uma câmera diante de mim para que eu atuasse. Logo me levaram a Lima e depois à Espanha, para conhecer o produtor do filme. Me aceitaram e em seguida me mandaram um professor espanhol de atuação. Foi assim que me tornei atriz.
P. Seu sonho sempre foi ser policial, mas o mundo da arte te convenceu. Por quê?R. Eu queria ser policial, porque cresci em um ambiente muito violento. Vi a vida inteira que a mulher servia o homem, que ele ignorava seus direitos, a humilhava... Sempre houve muito machismo e muita violência contra a mulher na região de serra do Peru, e eu sou de lá. Isso me enchia de raiva e de coragem, ao ponto de dizer que jamais me casaria. Até que comecei a pensar que deveria fazer algo para mudar essa realidade. Pensei em ser policial, mas por sorte não aconteceu, porque encontrei na arte algo muito mais poderoso, que jamais pensei que seria capaz de fazer.
P. Você teve uma projeção importante a partir dos filmes que fez com a Claudia Llosa – especialmente A teta assustada. Como é a relação de vocês – duas mulheres tão diferentes que começaram ao mesmo tempo no cinema?
R. Quando conheci a Claudia de verdade, depois de um tempo de trabalhar juntas, percebi que ela me ajudava a ser uma mulher mais segura. Hoje somos amigas e conversamos sempre por Internet. Quando atuei em A teta assustada, ela era uma diretora extraordinária. Não era a mesma de Madeinusa, já era outra pessoa, e eu pude acompanhar isso. Trabalhar com vários diretores me fez perceber que cada um tem sua maneira de dirigir atores e atrizes.
P. Muitos diretores estrangeiros quiseram filmar com você. Foi muito diferente trabalhar fora do Peru?
R. Trabalhei na Europa e acho que é muito diferente do Peru. Eles têm mais qualidade, respeitam muito os atores, o tempo de trabalho, não fazem nada na improvisação. No mundo do cinema peruano, ainda carecemos de ferramentas de trabalho. O Governo peruano nunca se preocupou em apoiar atores e diretores. Sinto que não querem evoluir, amadurecer, fazer crescer a indústria. É muito bonito trabalhar no Peru. Mas as realidades são diferentes.
P. Você tem dois CDs gravados e é comum que cante nos filmes em que atua. De onde vem sua relação com a música?
R. Vem da minha infância, mas só aos quatorze anos de idade eu comecei a levá-la a sério. Foi no dia que quebraram os ossos dos meus quadris quando me castigaram fisicamente na escola por ter chegado tarde a um desfile. Fiquei um ano sem poder fazer as coisas que fazia – especialmente atletismo, que eu praticava competindo. Então decido pegar outra coisa de que gostava, a música, e aprendo a cantar. Quando terminamos a filmagem de Madeinusa, a Claudia Llosa me perguntou o que eu queria fazer, e eu lhe disse que voltaria para Ayacucho para continuar estudando. “Pense bem. Você tem muito talento, faz o seu disco”, me disse. Respondi que não sabia compor, e ela me incentivou a estudar música formalmente, para aprender a escrever partituras. E assim comecei a fazer meus próprios discos. Também compus canções para filmes, entre eles Madeinusa e A teta assustada.
P. É grave o que você conta sobre ter sido fisicamente castigada na escola. E não faz tanto tempo, 16 anos...
R. Sim. Mas sempre penso que se alguém destroça os seus sonhos, você deve buscar outros sonhos, outros objetivos, coisas que o façam feliz e que, sobretudo, lhe permitam amadurecer. Procurei fazer isso com minha maneira de pensar, como mãe, como pessoa. Busquei outra alternativa de aprender e desenvolver meus sonhos.
P. Você discursou em quéchua quando A teta assustada recebeu o prêmio em Berlim, ainda que a plateia não entendesse o que você dizia. Por quê?
R. É importante, porque através do quéchua podemos nos conectar com nossos antepassados e manter viva a nossa identidade cultural. Um país sem cultura é um país morto. No Peru, é triste ver que crianças da atual geração já não falam quéchua por culpa do terrorismo, porque as pessoas que falavam a língua eram tachadas de terroristas ou simplesmente porque são discriminadas, como se fossem gente de terceira ou quarta classe. Nunca me importou nem me importará o que pensam os demais. Amo o quéchua e quando falei e cantei em Berlim era porque queria fazer esse prêmio chegar a todos os peruanos que falam o meu idioma. Acho que aos poucos a discriminação está acabando. Fico feliz, porque não pode morrer o que me deixaram meus antepassados.
"É triste ver que crianças da atual geração já não falam quéchua, porque as pessoas que falavam a língua eram tachadas de terroristas ou simplesmente porque são discriminadas"
P. Soube que você fala sete idiomas e quer aprender as 45 línguas indígenas do Peru. O que a motiva a estudar tanto?
R. É algo que me apaixona, porque através das línguas posso entender o sentimento dos meus ancestrais, a voz de homens e mulheres da selva, da costa e da serra peruanas. Nelas está o espírito de cada pessoa. É um desafio e uma tarefa que devo levar adiante, porque fui escolhida para representar a Unesco como artista em defesa da cultura e da paz. Então, devo ser uma muito boa representante do Peru, de suas pessoas e seus costumes, para viajar pelo mundo contando coisas bonitas sobre o meu país.
P. Além disso, soube você, que é mãe, quer gravar um disco com canções infantis em todos os idiomas indígenas do Peru.
R. Sim! É um dos meus maiores desafios, porque estou formando crianças e jovens de cinco a 26 anos no mundo da atuação. A maioria deles é de adolescentes que sofrem violência familiar, abandono e desinteresse por parte dos pais. Decidi ensinar a eles tudo o que eu aprendi, com a certeza de que um dia serão melhores do que eu. E quis fazer esse disco, porque é preciso educar desde a raiz. Do contrário, não podemos avançar.
P. É verdade que um dia você pretende se candidatar à presidência do Peru?
R. Isso, sim, não vou responder, porque senão vai se armar uma confusão... É uma coisa muito distante, mas, nós, mulheres temos que atuar como presidentas, negociantes, estudantes, camponesas, advogadas ou que seja. Seja onde for, temos que trabalhar muitíssimo para o futuro, para formar uma geração que possa nos defender.
P. Você nasceu em uma região do país que sofreu muito com o terrorismo. Que impacto tem isso na sua vida até o dia de hoje?
R. Tenho lembranças que já não me afetam, porque durante muitos anos trabalhei essas cenas na minha cabeça, como uma terapia. Mas que já não afete tanto não significa que eu tenha esquecido o que vivi. Todo problema tem solução, só é preciso que você aprenda a ficar de pé e a se recuperar. Vi muita violência contra mulheres em Ayacucho, sobretudo contra adolescentes, que merecem recuperar sua dignidade. Não todas as mulheres ayacuchanas passaram por isso, mas sem dúvida são muitas.
P. Você foi vítima de uma agressão física há poucos anos em Lima, não?
R. Sim. Fui assediada fisicamente quando usava o transporte público em Lima. Esse episódio, que nunca foi resolvido na Justiça, apesar do agressor ter sido denunciado pelo mesmo motivo antes, me deixou muito decepcionada e me fez compreender porque há tanta violência contra as mulheres e as crianças no Peru. Vivemos num sistema absolutamente machista e racista, em que o agressor tem mais direitos do que a pessoa agredida. Como isso é possível? Deveriam submeter todas as pessoas que trabalham no Poder Judiciário do meu país a um exame de sanidade mental.
P. O cinema latino-americano avançou muito nos últimos anos em termos de produção. Em distribuição, ainda há um longo caminho a percorrer, dentro e fora da região. Como pode crescer nesse sentido?
R. Aperfeiçoando cada vez mais o conhecimento que já temos e pedindo ajuda aos que sabem mais que nós, como a Europa, que tem uma produção gigante. Não há que se ter orgulho nesse sentido. E que nossos governos também se interessem mais pela cultura, pela arte, pelo esporte... É a única arma que pode deter toda essa violência que continua a esmagar a autoestima dos latino-americanos.
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