Tatiana Dias 03 Out 2016
Programas de monitoramento ajudam no autoconhecimento. Mas também têm implicações para a privacidade
A premissa é quase sempre a mesma: dar às mulheres mais controle e conhecimento sobre o próprio corpo. Ela vai ao encontro das novas bandeiras do movimento feminista, como usar copinhos coletores para entrar em contato com o fluxo menstrual e conhecer melhor o próprio corpo.
Mas aplicativos e aparelhos de controle do ciclo menstrual têm despertado a preocupação de entidades de defesa de direitos humanos. É que, por trás do marketing, há um imenso volume de dados sensíveis sendo produzidos - ao usar apps como o Glow, Period Tracker e o Clue, por exemplo, as mulheres dão informações sobre seus ciclos menstruais, alterações de humor, período fértil e até mesmo se fizeram sexo (e em qual posição). E, na maior parte dos casos, não é só as empresas por trás dos aplicativos que têm acesso a eles.
Em termos práticos, dizem os fabricantes, eles as ajudam a evitar - ou programar - uma gravidez. Informam às usuárias os melhores e piores dias para fazer sexo, estabelecem gráficos com padrões, ajudam as mulheres a entenderem seu corpo e os sintomas associados a cada fase do ciclo menstrual. Seus dados gerados em larga escala também podem ajudar a entender tendências de comportamento e padrões de saúde reprodutiva. O aplicativo Clue, por exemplo, está trabalhando com pesquisadores da Universidade de Harvard para analisar padrões do fluxo menstrual em mulheres jovens.
“Quando nós entendemos o ciclo de uma mulher podemos entender muito sobre a saúde em geral.”
Ida Tin
Fundadora do Clue
Onde a tecnologia encontra a menstruação
GLOW
É um aplicativo que pretende ajudar as mulheres a entenderem melhor seu ciclo menstrual para engravidar - ou evitar uma gravidez. Ele é um dos mais populares do setor. Por trás do app está Max Levchin, um dos fundadores do PayPal. Estima-se que o aplicativo tenha 4 milhões de usuárias no mundo. Ele tem uma versão gratuita e uma paga. Nesta última, a promessa é que, se a mulher não engravidar em 10 meses, a empresa paga o tratamento de fertilidade.
CLUE
Cheio de gráficos, ele promete ajudar as mulheres a entenderem seu ciclo através da inserção de dados de humor e sintomas, além do fluxo menstrual. Também tem um apelo científico: fornece os dados a pesquisadores. Suas usuárias, porém, podem optar por não fornecer as informações a terceiros. Segundo seus criadores, hoje são 5 milhões de usuárias - e a maioria delas tem entre 13 e 18 anos.
NATURAL CYCLES
É um aplicativo vendido como método contraceptivo. As mulheres têm de medir sua temperatura e informá-la ao app todos os dias - através deles, a promessa é ajudar a evitar - ou planejar - uma gravidez de forma natural, seguindo os sinais de ovulação do corpo.
LOONCUP
Neste, o software de análise de dados encontrou o hardware: um copinho menstrual. Vendido como o primeiro copinho coletor inteligente, ele se conecta ao aplicativo no celular via Bluetooth e permite que se monitore dados do fluxo e dos fluidos vaginais - e avisa a usuária se a cor deles está estranha. Foi financiado coletivamente e é vendido a partir de US$ 30.
MYFLOW
É um dispositivo que se conecta ao absorvente interno para informar, via um aplicativo específico, quando o fluxo está prestes a vazar. A ideia é diminuir a ansiedade e a chance de sujar as calças.
KINDARA
É um dispositivo que analisa a temperatura basal e a ovulação por via oral. Os dados são enviados para um aplicativo, que ajuda a mulher a decidir os melhores e piores dias para fazer sexo se quiser evitar uma gravidez ou engravidar.
Por que a privacidade é uma preocupação
Em geral, essas empresas fornecem o serviço de graça. Seu modelo de negócio é baseado na venda dos dados gerados pelos usuários para fins de marketing. Um levantamento feito em 2013 pela consultoria Evon, em parceria com o jornal Financial Times, mostrou que os 20 aplicativos mais populares de saúde (entre eles, o MapMyRun, de corrida, e o Period Tracker, de período menstrual) compartilham informações com pelo menos 70 empresas de venda de dados pessoais.
Isso significa, por exemplo, que ao reportar uma dor de cabeça, uma mulher pode chegar ao Facebook e se deparar com um anúncio de analgésico. Ou que os planos de saúde utilizem essas informações para calcular mensalidades diferentes de acordo com o comportamento do usuário - sem que ele saiba disso. Isso já acontece nos Estados Unidos com aplicativos de exercícios físicos.
"Não é grátis como parece ser. E quem lucra não é quem menstrua", diz Natasha Felizi, pesquisadora e coordenadora de projetos da Coding Rights, organização voltada à promoção de direitos humanos através da tecnologia, que lançará em outubro um projeto que investiga os impactos de tecnologias de vigilância em vários aspectos da vida das pessoas.
“Eles podem sim gerar coisas positivas para as mulheres, no sentido de se conhecer. Mas esse conhecimento também se traduz em mais poder e controle de vários mercados.”
Natasha Felizi
Pesquisadora da Coding Rights, que investiga o capitalismo de dados
A segurança dessas informações também desperta preocupação. O aplicativo Glow foi alvo de uma denúncia da organização de defesa do consumidor Consumer Reports, que percebeu falhas graves de segurança. Praticamente qualquer pessoa poderia ter acesso aos dados íntimos fornecidos por suas usuárias ou a conversas privadas discutidas nos fóruns fechados. Segundo o fundador da Glow, Max Levchin, as falhas foram corrigidas e os dados não foram comprometidos. Em seus termos de uso, a empresa admite fornecer os dados para fins de marketing direcionado.
Esse tipo de fornecimento não é proibido. As empresas se defendem afirmando que os dados são anonimizados - isto é, não são identificáveis - e que são mantidos em segurança.
Nos EUA, assim como em outros lugares do mundo, as regras de confidencialidade sobre dados de saúde, adotadas por médicos e hospitais, não valem para os dados produzidos por esse tipo de aplicativo. Assim, essas informações são utilizadas de acordo com os termos de uso de cada empresa e com a legislação de cada país.
Em locais em que a legislação de proteção de dados é praticamente inexistente - caso do Brasil, por exemplo - ou onde não há lei, os países viram território de experimentação para essas empresas”, diz Joana Varon, especialista em vigilência e privacidade e Diretora Executiva e Fundadora da Coding Rights. A organização divulga informações sobre o tema através do Twitter.
“Essa lógica de que se quantificamos tudo vai melhorar é a nova falácia nessa era do capitalismo de dados. Quantificar tudo vai dar mais informações sobre você pros outros, que provavelmente ganharão mais dinheiro ou poder com elas. Seja para traçar padrões normativos ou para te vender coisas.”
Joana Varon
Diretora Executiva e Fundadora da Coding Rights, especialista em vigilância e privacidade
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