03/10/2016 por Nelson Rosenvald
“Senhores, eu sou sem mais nem menos o sobrinho de meu tio: não se riam, que não há razão para isso: queriam o meu nome de batismo ou de família?... Não valho nada por ele, e por meu tio sim, que é um grande homem” (A Carteira do Meu Tio. Joaquim Manuel de Macedo, 1855).
Em recente decisão prolatada pelo magistrado da Comarca de São Carlos (SP), um tio foi condenado a prestar alimentos ao sobrinho, com base em interpretação extensiva do artigo 1697 do Código Civil, tendo como fundamento a impossibilidade de os ascendentes proverem o mínimo existencial ao filho que, não obstante maior de idade, foi afetado pela síndrome de Asperger. A situação se agrava a medida em que o autor evidencia a omissão de cuidado por parte do pai, já sancionado por medida inibitória de afastamento. A sentença também levou em consideração a viabilidade patrimonial do referido colateral em arcar com um pequeno percentual de seus ganhos em prol do sobrinho.
Em justificável inversão de ordem, adianto a minha conclusão: Sou contrário à automática e generalizada interpretação extensiva do artigo 1697 do Código Civil. Através de regras o codificador civil mediatizou o princípio da solidariedade no âmbito específico do direito de alimentos e determinou que o rol de devedores se limitasse aos ascendentes, descendentes e irmãos, mas não aos demais colaterais, mesmo figurando eles dentre os parentes legitimados à sucessão. Em nome da segurança jurídica, é inviável que o intérprete “flexibilize” indiscriminadamente a dita norma jurídica, vulnerando a esfera de intimidade do colateral de 3º. ou 4º grau, que espontaneamente se negue a prestar alimentos, com fundamento no rol numerus clausus. Nessa linha, seguindo consolidada jurisprudência, em julgado de 2016, a 3. Turma do STJ negou obrigação alimentar de sobrinho perante a tia (REsp 1510612/SP)
Todavia, adiro ao posicionamento do magistrado sentenciante, pois no caso específico existem razões mais do que plausíveis para ampliar o espectro de incidência do artigo 1697 do Código Civil. O civilista deve ser extremamente cauteloso para atuar na tênue linha da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, pois argumentos esgrimidos com palavras sedutoras como dignidade da pessoa humana, solidariedade e igualdade material, eventualmente fornecem vazia retórica, justificando críticas como a da discricionariedade e do solipsismo judicial. Em verdade, a boa argumentação requer um ônus persuasivo que ao invés de convencer pela emoção ou estética, ancore-se em sólidos fundamentos, principalmente quando se queira restringir o campo de liberdade dos particulares, através da incidência de direitos fundamentais nas relações privadas.
Daí o papel assertivo da doutrina em criar parâmetros objetivos que se prestem a uma eventual ponderação de bens pelo juiz, quando aquela disciplinada em caráter abstrato pelo legislador se mostre disfuncional em circunstâncias excepcionais. Sugerimos três parâmetros hábeis a uma razoável adequação entre a esfera de autonomia dos privados e as exigências éticas do sistema:
1. Impossibilidade absoluta de exercício do dever alimentar pelas pessoas descritas na norma. Cumpre verificar se os naturais devedores não possuem mínimas condições de prover alimentos aos parentes em situação de necessidade. Na pioneira decisão da Comarca de São Carlos, a inviabilidade econômica é agravada pela omissão de cuidado paterno, ilícito parental que envolve um reiterado padrão de comportamento antijurídico e culposo daquele que se nega a atender o direito fundamental de convivência familiar;
2. Iminente ameaça a direitos fundamentais do alimentando. No processo em exame, foi vulnerado o mínimo existencial de uma pessoa com deficiência psíquica – no caso, síndrome de Asperger. Entenda-se o mínimo existencial como conceito jurídico indeterminado que se potencializa quando o credor de alimentos é pessoa vulnerável e ostenta um impedimento que cria uma barreira à acessibilidade social (no caso, agravado diante da materialização de danos psíquicos consequente ao processo de omissão de cuidado). Lembre-se que a Convenção de Nova York foi o primeiro tratado de direitos humanos internalizado no Brasil com status constitucional (Dec. 6949/09). O art. 23.5 concita os Estados Partes – quando a família imediata de uma criança com deficiência não tenha condições de cuidar da criança, a fazer todo esforço para que cuidados alternativos sejam oferecidos por outros parentes. Evidentemente, tratando-se de maior de idade com deficiência, os cuidados alternativos da “família mediata” se traduzem em alimentos, quando vislumbrada a impossibilidade objetiva de a família imediata prover sustento.
3. Moderação dos valores pagos pelos colaterais de 3ºou 4º grau. A excepcionalidade da convocação dos parentes mais distantes justifica redobrada cautela judicial na fixação de valores. No processo em destaque o magistrado arbitrou os alimentos em 10% dos rendimentos líquidos do tio alimentante. Cabe aqui um paralelo com os alimentos necessários, indispensáveis à subsistência do ex-cônjuge admitido culpado no divórcio, como tal entendidos alimentos humanitários, quando não tiver “parentes em condições de prestá-los” (artigo 1.704, parágrafo único, CC). Não se pode perder de vista que é o Estado que assume papel de protagonismo na concretização da eficácia negativa e positiva da Dignidade da Pessoa Humana da pessoa com deficiência: a eficácia negativa pela via da proteção (principalmente propiciando adequados serviços de saúde e evitando a discriminação) e, a eficácia ativa, pelo viés promocional da indução à conquista da plena autonomia, pela inclusão através de programas de habilitação e reabilitação, particularmente nas áreas de saúde, emprego, educação e serviços sociais.
Iniciei esse texto com uma citação da obra “A carteira do meu tio”, de Joaquim Manuel de Macedo. O livro narra a trajetória do sobrinho que, ao tempo do império, recebe substancioso patrocínio do tio para viajar a Europa. Porém, ao invés dos estudos, o jovem simplesmente deseja aproveitar a vida. Felizmente, na decisão em destaque a vida não imita a arte, pois o que o sobrinho requer do tio não é o bônus de bens supérfluos, mas o acesso àqueles essenciais, que materializam o modelo cooperativo de família, transcendendo a visão do parentesco como simples agrupamento acidentalmente reunido para eventos sociais (festivos ou trágicos) ou fotografias na parede.
A caridade é a virtude de amparar os que são anônimos e de quem nada esperamos em troca (nem mesmo uma longínqua herança); Entre sobrinhos e tios nem sempre a tônica será o amor fraternal que justifique o dever alimentar, mas ocasionalmente o direito poderá lhes alcançar, pois parafraseando Mary Shelley, “O mundo precisa de justiça, não de caridade”.
Post Scriptum - É sempre honroso compartilhar espaços com o amigo José Fernando Simão, mesmo que eventualmente em lados opostos no debate. Ler ou ouvir Simão é certeza de preciosos momentos de aquisição de requintado saber.
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