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domingo, 19 de novembro de 2017

A política do corpo

José Geraldo Couto
17.11.17

No momento em que o Congresso brasileiro ameaça criminalizar todas as formas de aborto, inclusive em casos de estupro ou de ameaça à vida da gestante, poucos filmes serão tão atuais e pertinentes quanto Invisível, do argentino Pablo Giorgelli. Mas não é só por isso que ele merece ser visto, seja no IMS Paulista ou nas relativamente poucas salas e sessões em que é exibido Brasil afora.



Ao abordar um tema já em si altamente dramático e controverso – a gravidez na adolescência –, Giorgelli (diretor do premiadíssimo Las acacias) optou por uma objetividade brutal, construindo uma narrativa de uma concisão e uma austeridade desconcertantes.

Adolescente comum

Para começar, escolheu como protagonista uma garota comum, para não dizer anódina, anônima, igual a tantas outras em uma metrópole do Terceiro Mundo (no caso, Buenos Aires, mas podia ser Rio de Janeiro ou São Paulo). Ely (a ótima Mora Arenillas) é exatamente assim. Nem feia nem especialmente bonita, nem gorda nem magra, nem rica nem pobre, ela cursa o último ano do colégio e parece imersa numa apatia quase autista: mora com a mãe depressiva, com quem quase não fala, tem um interesse nulo pelas aulas, conversa pouco e ao que tudo indica só tem uma amiga.

Mas tem um amante – o filho casado do dono da clínica veterinária onde ela trabalha –, com quem faz um sexo clandestino, mecânico e triste no banco de trás de um carro. Numa dessas ocasiões, ela engravida e tudo se modifica drasticamente.

Pegamos esse drama silencioso já em andamento e vamos descobrindo aos poucos as suas circunstâncias e o seu sentido. A câmera acompanha Ely de perto em seus périplos pela cidade, a pé, de ônibus, de metrô – para a escola, a clínica, o trabalho, a casa da amiga.

A proeza maior do diretor consiste em escapar das armadilhas que esse tipo de argumento engendra: a do sentimentalismo, a da pregação moral, a da militância programática. Não há música nenhuma, discurso nenhum, subterfúgio nenhum para conquistar a empatia do espectador, para fazê-lo se enternecer com o destino de Ely. Se o filme nos aproxima dela, se nos revela sua humanidade singular e irredutível, é simplesmente por nos mostrá-la em ato. É um exercício de convicção no poder revelador da imagem, sem a busca de uma transcendência, de um mais-além. Assim como recusa a prédica política ou moral, Giorgelli recusa também a metáfora, o símbolo, a alegoria. Ely não simboliza, ela é.

Rigor e transgressão

Numa narrativa visual de rigor quase ascético, chamam a atenção dois momentos em que a decupagem rompe brevemente suas próprias regras. Num deles, salvo engano o único exemplo de campo/contracampo clássico do filme, Ely está sentada num banco de praça, imersa em seus dilemas, e olha em frente. Corta para um plano breve do que ela vê: uma mulher com um bebê e uma filhinha um pouco maior. A imagem inunda de sentido dramático a meditação da protagonista. Se a câmera se demorasse um pouco mais naquela mãe, ou se chegasse mais perto das crianças, cairíamos num emocionalismo obsceno.

O outro momento de breve transgressão da disciplina interna da narrativa é quando a câmera deixa de acompanhar por um instante a protagonista. O amante foi buscá-la na clínica de aborto e a levou para casa. Ely desce do carro e caminha pela rua, mas a câmera não desce com ela, permanece junto ao ombro do amante, observando-a de longe. Por um segundo, o filme nos coloca na posição desse homem e de sua consciência inescrutável.

Há uma constatação interessante a ser feita durante a exibição de Invisível. Algumas imagens parecem se repetir, quase idênticas: por exemplo, a de Ely num banco de ônibus, junto à janela, alheia ao que se passa lá fora. Só que, nas primeiras vezes que vemos a cena, nada sabemos sobre ela: é uma garota invisível, quase literalmente. À medida que vamos conhecendo melhor sua história, pelas informações que o filme nos concede aos poucos, Ely passa a ganhar consistência, passa a existir diante dos nossos olhos e da nossa consciência. A proeza de Invisível, em suma, é torná-la visível.

Se as leis antiaborto operam uma despersonalização das mulheres grávidas, ignorando sua singularidade e a especificidade de cada caso, se fazem dos seus corpos uma massa uniforme sujeita a uma norma implacável, um filme como Invisível faz o contrário, reinstaura o corpo individual, sua trajetória única e intransferível. Nisso consiste seu sentido político e moral.

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