Brasil convive com violência da transfobia, embora debate pela inclusão tenha avançado. Tema foi debatido no evento “Gênero e Diversidade”, que faz parte do ciclo FAAP - EL PAÍS
El País
FELIPE BETIM
São Paulo
"Nós somos o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Vocês entendem o que é matar uma pessoa só porque ela é diferente de você?". A afirmação é de Renata Peron, que sabe bem do que está falando: em um dia de 2007, por volta das 23h30, havia ido beber uma cerveja com um amigo nos arredores da praça da República, no centro de São Paulo, quando foi abordada por um grupo de jovens — formado por homens e mulheres. Após um deles gritar "vamos pegar o traveco!", Renata recebeu um chute na altura da cintura. No dia seguinte, teve de fazer uma cirurgia porque "o chute foi tão violento que estourou o rim". Perdeu três litros de sangue por causa de uma hemorragia interna.
"Mas há males que vem para o bem", diz. A agressão acabou motivando esta assistente social e cantora a fundar o Centro de Apoio e Inclusão Social de Travestis e Transexuais (CAIS) e que ela intensificasse sua militância. Peron esteve nesta terça-feira ao lado de outros protagonistas da causa LGBTQIA+ no ciclo FAAP – EL PAÍS, para falar sobre gênero e identidade em um momento em que o tema "está no centro de um debate cheio de preconceito e violência" e em que pessoas "estão lutando pela própria vida", segundo as palavras da professora da FAAP Edilamar Galvão.
Um desses protagonistas é o empresário e estudante de design Gabriel Lodi, que ganhou visibilidade após uma entrevista feita pelo ator Dan Stulbach para a criação de seu personagem na novela A Força do Querer. Ele argumenta que toda a visibilidade que é dada ao tema se deve às mulheres travestis e transexuais, alguns como Peron que foi agredida, e outras, assassinadas. "Infelizmente este caminho foi aberto com sangue", diz. Apesar de ser um homem transexual, explica que passou por menos dificuldade em sua transição que as mulheres trans. Até porque, segundo conta, após dois anos tomando hormônio as pessoas pararam de perguntar se ele era transexual. "Depois da minha transição não tinha mais nenhum tipo de agressão. Transitar para uma sociedade machista é muito mais fácil", argumenta. Casado há sete anos, conta que a família de sua esposa só soube de sua história após do vídeo com Dan Stulbach viralizar neste ano.
Apesar de uma transição mais tranquila, Gabriel conta ter sentido na pele os preconceitos da sociedade quando era criança e vivia em uma conservadora cidade do interior. "Foi uma infância complicada porque eu fui cerceado de fazer o que eu queria fazer. A primeira saída de armário eu tinha de 12 para 13 anos. E meus pais sofreram muito porque foram agredidos verbalmente, inclusive no trabalho. Falar sobre homossexualidade foi extremamente complicado", conta. "As pessoas hoje me pedem desculpa [principalmente depois de assistir ao vídeo de Stulbach], mas ninguém sabia lidar com aquela situação. Não dá para reverter a quantidade de merda que aconteceu, mas precisamos reverter que isso aconteça no futuro", acrescenta. Mas como? Para ele, pequenas coisas podem fazer a diferença. Como, por exemplo, interferir quando pessoas fazem piadas ou comentários homofóbicos ou transfóbicos. Para ele, se omitir é ser preconceituoso.
A questão do gênero na infância é tema do documentário "Borboletas e Sereias", dirigido por Bárbara Cunha, também presente no debate. "O documentário trata da identidade no crescer e traz crianças que questionam. Há crianças trans, crianças que gostam de usar vestido mas gostam de se identificar como menino... Eu queria que elas falassem de suas experiência", conta a cineasta. Ela fez uma pesquisa para encontrar crianças de 6 a 12 anos, mas que fossem acolhidas e aceitas pelos seus próprios pais. Afinal, para crianças rejeitadas pelas suas próprias famílias não seria tranquilo abordar a questão. "O problema vem de fora, da sociedade, do pai que não deixa o filho brincar de boneca com o outro. É muito altruísta escutar o que a criança está dizendo", explica.
Já Maíra Reis aborda a temática LGBTQIA+ no mundo da comunicação e em várias frentes. Ela é publisher do Reversa Magazine, trabalha em um laboratório de jornalismo do Google ajudando a impulsionar o jornalismo preocupado com o assunto e auxilia áreas de marketing e de recursos humanos de empresas. "Existe uma boa vontade de falar sobre diversidade e comunidade LGBT. Mas temos que sempre cobrar da mídia e de quem se comunica com a gente. Se a gente não cobrasse, íamos continuar sendo chamados de veado e sapatão", explica ela, para quem a mídia de uma forma geral começou a se expressar de uma maneira mais adequada. "Ainda temos que avançar muito, mas não é algo tão drástico quanto a gente pensa", completa. Ela opina ainda que as empresas começaram a "olhar com carinho" para a questões de identidade e gênero. "Em toda empresa há diversidade. Mas o RH está preparado para ver e lidar com essa diversidade? Diversidade gera mais criatividade", argumenta.
Ignorância versus transfobia
Maíra incentivou as pessoas que tenha dúvidas sobre como falar do assunto a fazer um exercício básico: perguntar. "Entrem nos grupos do Facebook, perguntar não ofende. Existe uma construção, uma autoconstrução, de vocês. E isso vocês só vão saber interagindo, perguntando. Eu tive um longo processo de construção", explica.
Renata Peron, que vem da Paraíba, diz que embora existam pessoas agressivas e transfóbicas, muita gente que não sabe como tratá-la, por vezes chamando-a como se referissem a um homem, não são pessoas de má fé. "Elas não são transfóbicas que querem matar os transexuais. São ignorantes. Transfóbicos são as pessoas estudadas e que são assim porque opção. Mas eu entendo quando um trabalhador que não tem formação não consegue me tratar como mulher. Ele não é um transfóbico", explica. No caso dessas pessoas que são ignorantes, a solução é ser didático e conversar. A assistente social ainda traça o caminho pelo qual muitas mulheres transexuais percorrem durante sua busca por aceitação: a família, o Estado, a Igreja, a prostituição e a marginalidade, nesta ordem. E faz uma provocação para a plateia: "Você anda na rua, olha para uma prostituta travesti e aponta o dedo. Mas você e seus pais aceitariam dar um emprego para esta travesti?", questiona.
Para Gabriel, falar sobre identidade de gênero não se trata de falar de orgulho, mas sim de visibilidade. Ironicamente, após o final do encontro na FAAP, foi abordado por duas mulheres que assistiram ao evento e o interpelaram de modo preconceituoso, ainda que tenham ouvido o conteúdo do debate. Disseram que respeitavam sua escolha, mas que Gabriel sempre seria uma "mulher com barba". "Esse é justamente o ato da transfobia, a intenção de invisibilizar uma pessoa".
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