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terça-feira, 21 de novembro de 2017

O preconceito grita

O Apartheid acabou? Sei. Aqui sempre fomos hipócritas. Nenhum branco tem ideia do que é ser negro no Brasil

WALCYR CARRASCO
21/11/2017

Frequento alguns bons restaurantes, principalmente na região dos Jardins, em São Paulo.  Não me lembro de ter visto, em todos estes anos, sequer um negro como cliente. Como garçom sim, muitos. Talvez se vasculhar minha memória encontre um ou dois. Mas o fato se repete todas as noites. As mesas são ocupadas por brancos. Senti o mesmo quando fui à Africa do Sul, há alguns anos. Passei por comunidades negras, onde as casas eram contêineres de lata. No sol escaldante. Hospedei-me em um hotel seis estrelas, um dos melhores do mundo. No café da manhã, nenhum negro entre os hóspedes. Os garçons, negros. O Apartheid acabou? Sei. Aqui, sempre fomos hipócritas. Em minha novela O outro lado do paraíso, a personagem Nádia (Eliane Giardini) expulsa a empregada Raquel (Erika Januza) por namorar seu filho. Não admite que ele se case com uma negra. Quando escrevi as cenas, houve quem dissesse que eram fortes demais. Que até o movimento negro rejeitaria. Insisti. Foram ao ar exatamente dois dias depois do escândalo que aniquilou o apresentador William Waack. Exatamente por dizer, sem notar que era gravado, palavras semelhantes às de Nádia. Foi uma coincidência, as cenas foram gravadas meses antes. Mas a ficção espelha a sociedade. Sinceramente. Jamais esperaria que alguém como o apresentador, de tanta respeitabilidade, expressasse o preconceito tão fortemente. A Rede Globo foi ágil. Simplesmente o retirou do telejornal.


A atriz Erika Januza me contou. A mesma situação aconteceu com ela. O sinal fechou e a rabeira de seu carro ficou para fora. Comum em congestionamento. Um carro passou. O motorista, branco, gritou:

– Só podia ser neguinha.

Nenhum branco tem ideia do que é ser negro no Brasil. O preconceito é expresso até em tom de brincadeira. Ou pode assumir tintas mais carregadas. A atriz Zezé Motta conta que uma vez entrou no elevador social. O porteiro parou o elevador no meio do caminho. A fez descer. Para que ela tomasse o de serviço. Humilhação pura. Sempre que posso, insisto na questão do elevador de serviço. É o da discriminação. Para pobres, negros. Se o personal trainer vem, ou um médico para atender uma urgência, tomará o de serviço? Por que as domésticas não podem subir no mesmo elevador que seus patrões? O segundo elevador deveria servir para transportes, mudanças, transportar material de limpeza. Simplesmente serviço. Ou como extra, no caso de necessidade. O mesmo se aplica aos banheiros.  Até apartamentos de 40 metros quadrados anunciam banheiro de empregada. A funcionária que lida com as panelas, as roupas, a limpeza não pode usar o mesmo que o patrão?

É um ciclo. Pais pobres. Poucas oportunidades educacionais. Chances de ascensão social pequenas. No dia a dia, um tratamento que arrasa com a autoestima. Quando jovem, procurava meus primeiros empregos. Nos anúncios, o item: boa aparência. Eu botava meu paletozinho e gravata, penteava o cabelo para as entrevistas. Mais tarde, descobri. Exigir boa aparência era uma forma de excluir os negros, na maioria dos casos. Vamos combinar: também os deficientes físicos. A sociedade evoluiu e se tornou mais hipócrita. Quando fui escrever Xica da Silva, para a extinta TV Manchete, há 20 anos, a ideia inicial da emissora era botar uma branca que tomasse muito sol. Eu e o genial diretor Walter Avancini (já falecido) insistimos: uma heroína negra deveria ser protagonizada por uma negra. Simples assim. Vencemos. Taís Araújo foi a primeira negra, no mundo, em um papel-título de novela. Interpretou maravilhosamente. Um sucesso, tornou-se uma estrela. Os 20 anos se passaram. O movimento negro avançou, ainda bem. A sociedade finge não ter preconceito. Na prática, tem.

Machado de Assis, talvez o maior autor da literatura brasileira, era afrodescendente. Há outra grande autora, mais recente: Carolina Maria de Jesus. Catadora de papel, publicou Quarto de despejo em 1960. Um sucesso na época. O livro é intenso, verdadeiro. Há negros geniais em todas as áreas da cultura nacional. Já ouvi que a defesa dos direitos dos afrodescendentes exagera. Muitas vezes leio críticas à política de cotas. Fazer o quê? Sem elas, o acesso à universidade continuará vedado. Não só aos negros. Também não vi nenhum indígena nos restaurantes. Há radicalismos? Há outro jeito, se existem brancos radicais em suas opiniões e preconceitos? Na novela, haverá uma grande reviravolta da personagem negra. Espero que na sociedade também aconteça o mesmo.

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