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quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Transfeminismo: a pauta que nos ensina ir além do binarismo homem e mulher

Justificando
Flávia AlmeidaFlávia Almeida
Advogada 
Quarta-feira, 29 de novembro de 2017
Dando continuidade ao compromisso de expandir nossa Sororidade, convidamos a advogada paraense Flávia Almeida, que estuda as violações à população transexual e integrante do Grupo de Estudos Feministas do Centro Universitário do Estado do Pará – CESUPA. O texto, a seguir, nos conclama a refletir sobre as muitas possibilidades do ser enquanto indivíduo e a urgente necessidade de entendermos e aderirmos à pauta do transfeminismo. Vamos ouvi-la:

Há muito debatemos sobre feminismo e suas mais variadas formas e vertentes, o debate de gênero tornou-se cada vez mais aprofundado, trazendo respostas difusas, segundo aquele que fala. Temos o feminismo liberal, radical, marxista, negro, lésbico, questiona-se aqui a possibilidade de um Transfeminismo, um feminismo voltado para pessoas trans.
Em um primeiro momento tal sugestão pode causar estranheza, afinal o que pessoas trans, nascidas em um sexo divergente da sua identidade de gênero, têm a acrescentar ao feminismo? Será que estas mulheres poderiam também ter fala e voz dentro do movimento?
Para responder essas perguntas é necessário que voltemos às bases dos estudos de gênero e das teorias feministas, para entender quem são as pessoas trans.
O feminismo não é um movimento homogêneo, não surge por geração espontânea.
Ele se movimenta em ondas e surge após muitas violações de direitos. Estas ondas feministas são momentos históricos, no qual cada uma teve pensamentos diferentes.

As ondas do feminismo

A primeira onda do feminismo foi importante para questionar, refletir e desconstruir as instituições patriarcais, que reproduziam a dominação masculina, tendo como principal pauta a luta pelo sufrágio universal. Por isso mesmo as primeiras feministas denominavam-se “Sufragistas”, porque sua principal pauta de luta era o voto feminino, uma forma de se emancipar do poderio masculino e requerer ao Estado políticas públicas para mulheres.
A segunda onda do feminismo é chamada corrente universalista dos estudos do gênero, encabeçada pela filosofa Simone de Beauvoir em sua obra “O Segundo sexo” de 1949. O principal ponto estabelecido por Beauvoir é a desnaturalização da condição de mulher, na famigerada frase “Não se nasce mulher, torna-se”.
A socióloga brasileira feminista, Heleieth Saffiotti, explica que, segundo esse pensamento, nós não nascemos mulheres, mas sim, aprendemos a sermos mulheres, uma vez que o feminino não é dado pela biologia, ou mais simplesmente pela anatomia, e sim construído pela sociedade. Esta construção, chamada socialização, se dá por meio de imposições, que vão moldando os corpos e a personalidade de mulheres desde a infância para que se tornem mulheres, conforme expõe a sociedade.
Esta onda entende que homens e mulheres são sujeitos em absoluto que só diferem um do outro pelo caráter biológico, são sujeitos universais. O que define homens e mulheres são seus corpos sexuados, logo homens serão socializados para dominar. Como entende o sociólogo francês Pierre Bordieu, serão criados para estarem sempre à frente, serem os mais fortes, inteligentes, melhores.
Homens são privilegiados pela sociedade, enquanto as mulheres são excluídas desse processo, elas são socializadas para seguirem os homens, respeitá-los, reconhece-los como superiores, são sempre emocionais, maternais. Para esta corrente só existe: masculino e feminino, opressor-privilegiado e vítima-oprimida, e esta máxima vale para todos.
Nos anos 90 surge a terceira onda do feminismo, que começa a refletir sobre este conceito universal da segunda onda.
Na terceira onda, os marcadores sociais começam a ser analisados, apesar de sermos todas mulheres, temos diferenças quanto à classe social, nacionalidade, etnia, orientação sexual e outros indicadores.
Por isso, essa corrente era chamada relacional, pois partia das relações entre sujeitos. Uma mulher negra, apesar de ser mulher, não terá a mesma vivência que uma mulher branca, ou então, um homem pobre, apesar de receber certos privilégios pelo seu gênero, está em situação de vulnerabilidade econômica se comparado a uma mulher rica.
As correntes Universal e Relacional partilham de alguns pontos em comum, ambas enxergam o gênero como um sistema binário, composto pelos sujeitos homem e mulher, e sendo uma construção social que se dá a partir da diferença entre os corpos sexuados. Surgem então os questionamentos: é possível enxergar algo fora dessa binariedade? Existe algo entre essas experiências?
A filósofa Judith Butler, que esteve recentemente no Brasil, foi um dos principais nomes dessa terceira onda. Em seus estudos sobre gênero a mesma questionou a ideia de que: gênero é cultural e sexo é biológico, perguntando-se: e se o sexo como entendemos também for cultural e construído? Será que pênis sempre foi órgão masculino ou isso também foi socialmente determinado? Existe somente uma forma de ser mulher e ser homem?
A socióloga brasileira Berenice Bento, nos mostra que o gênero está fundado na heteronormatividade, ou seja, ele se perpetua por meio de várias repetições das normas de gênero impostas socialmente – Homem tem que ser assim, Mulher tem que ser assim – os indivíduos performam o gênero que lhes foi determinado. E essas repetições se dão de maneira tão intensa e eficaz que passamos a acreditar que a dicotomia dos corpos é natural.
Nós cegamente acreditamos que homem tem pênis, mulher tem vagina, e essas são suas essências, sem nem questionar.
Desde o útero o feto começa a receber imposições do gênero, quando vemos no ultrassom uma vagina, automaticamente, pensamos: menina. Quando se atesta que o feto é do sexo feminino, possui uma vagina, ela passa a ser bombardeada com, supostos, caracteres femininos. Sofrendo um processo de “feminização” constante, até o ponto de que seu comportamento feminino será considerado natural diante da presença do órgão reprodutor, vagina.
O pensamento da terceira onda nos ajuda a entender que existem diferentes vivências, diferentes formas de ser mulher e ser homem, não existe feminilidade ou masculinidade estática. Mulheres são seres humanos diferentes entre si, com experiências, vivências e opiniões diferentes, assim, seria muito pequeno pensar que todas nós somos iguais e passamos pelas mesmas coisas como mulheres.
A opressão do machismo recai sobre todas as mulheres, mas cada uma recebe essa opressão de forma diversa, segundo outros marcadores sociais de raça, classe, orientação sexual e, também, de identidade de gênero.

Transexualidade e feminismo

Entendendo essas três ondas, pergunta-se: e o que isso tem a ver com transexualidade? A resposta é: tudo. Segundo Berenice Bento, a transexualidade é uma experiência identitária caracterizada pelo conflito com as normas de gênero existentes. Como vimos, existe uma regra: homem e mulher, masculino e feminino, pênis e vagina, só que toda regra possui uma exceção, e essas são, justamente, as pessoas transexuais.
São pessoas que ao nascer com determinado órgão sexual, receberam um determinado rótulo, que as definia como homem ou mulher, todavia não se adequam a esta imposição, tendo a necessidade de transicionar para algo que lhes adeque melhor, seja outro gênero, uma combinação deles ou nenhum.
Desde cedo, enfrentam uma vida de conflitos. Pois, a sociedade, estruturada pela heteronormatividade, estabelece como homens e mulheres devem ser e agir, quando alguém tenta fugir dessa regra é, sumariamente, rechaçado, violentado, até que volte aos moldes iniciais.
Essa estrutura está presente na família, nas escolas, nas igrejas, nos hospitais, em todos os espaços. O gênero se perpetua controlando corpos e comportamentos, um regime de terrorismo, para que ninguém fuja da norma.
Essas regras são ensinadas desde a infância, então aquele que segue as regras será premiado e aquele que foge delas será castigado.
Entendendo quem são as pessoas trans, passamos a analisar seu local de fala e sua presença no feminismo. O cientista social Coacci nos dá a noção de como é a relação de pessoas trans com o feminismo. Na década de 70, quando os movimentos feministas estavam tomando força, ainda na segunda onda, começou a se debater a presença de mulheres trans nos espaços feministas.
Os movimentos feministas separatistas defendiam a ideia de que mulheres trans (mulheres nascidas com pênis, consideradas homens por boa parte de suas vidas) eram, de fato, homens, potenciais estupradores, e que sua presença nos espaços feministas era uma forma de usurpar o lugar das mulheres.
Até mesmo os estudos Queer, da terceira onda, foram criticados por esses grupos feministas, porque estariam dando aval para que “homens” (Mulheres Trans e Travestis) pudessem roubar o espaço que as mulheres, “nascidas mulheres”, demoraram tanto para conquistar.
Mulheres trans foram proibidas de participar de espaços feministas, convidadas a se retirar de eventos, boicotadas, de todas as formas possíveis, incluindo casos brasileiros, nos quais palestrantes Trans foram “convidadas a se retirar” de eventos feministas, pois sua presença ali era incomoda e proibida. O principal motivo para sua expulsão é que elas seriam “homens”, “tinham um pênis”, “sua presença era uma violência”.
A autora japonesa Emi Koyama, que é uma feminista asiática, cadeirante, intersex e lésbica, a partir de sua experiência como uma mulher que sempre esteve fora dos núcleos do feminismo, afirma que impedir mulheres trans de participarem dos espaços feministas, com base no discurso de que suas experiências são diferentes, pois foram socializadas como homens, parte do pressuposto que a experiência de todas as outras mulheres é a mesma, o que claramente não é verdade, visto que temos muitos marcadores sociais que nos diferenciam.
Mesmo o argumento que mulheres transexuais, em algum momento tiveram um nível de privilégio masculino, para a autora, não deveria excluí-las da comunidade feminista, uma vez que reconhecemos que nem todas as mulheres são igualmente privilegiadas ou oprimidas.
Mulheres trans e Travestis, de fato, foram socializadas como homens, ao nascer com um pênis, receberam um nome masculino, lhes foi dito que deveriam ser fortes, racionais, que a elas tudo era permitido, inclusive invadir corpos femininos, receberam o privilégio do poder de dominar e falar nos espaços sociais, é claro que sua vivência é, diametralmente, diferente da vivência de outras mulheres nascidas com vaginas, socializadas para serem dominadas.
Mas, aqui se questiona: a experiência destas mulheres trans é igual à de homens cis (ou seja, que se adequam a identidade de gênero masculina)? Elas passaram pelo mesmo? O privilégio que lhes foi dado é, de fato, um privilégio?
Vejamos a vivência dessas pessoas transexuais, começando pela família, que na maioria das vezes não entende e não apoia, sofrem diversas formas de punição, entre castigos e agressões para não serem o que são. “Menino não usa isso”, “Para de ser viadinho”, “Menina não brinca com essas coisas”, “Você tem que aprender a ser homem/mulher!”, atos de violência reiterados que muitas vezes culminam na expulsão do lar.
Ao adentrarmos na escola, vemos outro espaço de normatização, definido em coisas de meninos e meninas, não se pode ser diferente. A diferença, a transgressão as normas de gênero, é punida com violência verbal, psicológica, física, por parte dos docentes, corpo diretor e dos próprios alunos. Por isso,
Temos um índice de 73% de evasão escolar por pessoas trans, pois muitas não suportam o ambiente hostil em que estão inseridas.
Como afirma Berenice Bento, o sofrimento das pessoas trans deriva muito mais do tratamento que recebem na sociedade, do que da própria transexualidade. Essas violências sofridas culminam muitas vezes em doenças psíquicas, que podem culminar em suicídio.
Segundo pesquisa realizada pelo Centro Nacional pela Igualdade dos Transgêneros, em que 17.715 pessoas trans foram entrevistadas, constatou-se que: 14% das/os transexuais foram enviados a um profissional, após revelarem sua identidade de gênero à família, com a intenção de impedi-las/los de passarem pela transição; 10% sofreram violência de algum membro da família; 8% foram expulsos de casa devido à sua identidade de gênero. E a taxa mais alarmante, 40% das/os transexuais já tentaram o suicídio em algum momento de suas vidas.
Expulsas de casa, sem escolaridade básica, são relegadas a trabalhos informais, sendo o principal deles a prostituição. 90% das mulheres trans no Brasil são prostitutas, não por desejo próprio, mas sim porque não têm espaço no mercado de trabalho formal.
Vulneráveis a todas as formas de violência possível, segundo a Transgender Europe, o Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais no mundo. E tais mortes não são acidentais, derivadas de latrocínios ou afins, são mortes com requintes de crueldade, estupros, empalhamentos, degolações, mutilações dos seus corpos, é uma forma de tentar expurgar aquele ser abjeto da sociedade. Por isso mesmo, a média de vida de uma pessoa transexual é de 36 anos.
A sociedade é heteronormativa e pessoas transexuais são transgressoras dessa norma, então são expulsas, apagadas, violentadas, a ideia é acabar com aquilo que é diferente. Seu sofrimento e suas vivências ainda são invisíveis, não contabilizados, esquecidos, menosprezados.
Até a presente data 174 mortes, 58 tentativas de homicídio e 104 Violações de Direitos humanos, que incluem espancamentos, violências psicológicas e simbólicas, segundo os dados da Rede Trans.
E diante dessa realidade, nos perguntamos: que privilégio é esse que leva estas pessoas a morrerem antes dos 40 anos, das formas mais cruéis possíveis, com uma vida perpassada por violações de direitos e violências, com altos níveis de suicídio?
A vivência destas mulheres trans, com certeza, não é semelhante à de mulheres nascidas com vagina, não podemos sopesar suas vivências e dores. Mas, parece claro também, que estas mulheres não tiveram os mesmos privilégios e vivências de um homem cis.

A possibilidade de um transfeminismo

O transfeminismo surge como uma forma de responder as demandas dessas mulheres trans que foram expulsas do movimento feminista majoritário, é uma crítica às desigualdades do movimento feminista, pela perspectiva transexual. Essa corrente bebe das fontes da terceira onda, afastando a ideia de que o gênero está atrelado ao órgão sexual e de que existem diversas formas diferentes de ser mulher, afastando o conceito universalista de que mulher é aquela com vagina.
O transfeminismo ainda é muito recente, sua presença é mais forte na internet e sua difusão se dá por meio de redes sociais. Ao mesmo tempo que une os pensamentos dos movimentos: feminista, de travestis e transexuais, movimento de prostitutas e LGBT, encontra também divergências e barreiras com os mesmo grupos. Suas pautas agregam críticas e demandas clássicas desses grupos, como, por exemplo, o fim do sexismo e da violência contra as mulheres, a legalização do aborto, a autonomia para definir seu nome e gênero nos documentos oficiais, dentre outras.
É um movimento que surge a partir da necessidade de representação.
É necessário para o empoderamento de pessoas trans, para dar-lhes voz e espaço, para que estas pessoas se sintam bem com seus corpos e para que tenham a liberdade de se identificarem como mulheres, homens ou como quiserem, são sujeitos relacionais, heterogêneos, donos e donas das suas próprias histórias e vivência, buscando libertar-se do discurso patologizante que ainda as oprime. É um movimento que ainda tem muito o crescer nos próximos anos e que demanda nossa atenção.
Flávia Almeida é mulher, cisgênero, lésbica. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Pará com foco no estudo das violações de direitos contra a população transexual. Pós-graduanda em controle, intervenção e prevenção de Violência, membro da Clínica de Atenção a Violência da UFPA, do Grupo de Estudos Feministas do CESUPA-PA e Advogada.

Referências
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BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p.256.
BERNARDO, Marcia Hespanhol; SOUZA, Heloisa Aparecida de. Transexualidade: as consequências do preconceito escolar para a vida profissional. Revista Bagoas – Estudos gays, gênero e sexualidade. v.8, nº 11, jul/dez.2014. Disponível em:
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
COACCI, Thiago. Encontrando o transfeminismo brasileiro: um mapeamento preliminar de uma corrente em ascensão. Revista História Agora. 2014. Disponível em: < https://www.researchgate.net/profile/Thiago_Coacci/publication/283498905_Encontrando_o_transfeminismo_brasileiro_um_mapeamento_preliminar_de_uma_corrente_em_ascensao/links/563b4fe808aeed0531de7958/Encontrando-o-transfeminismo-brasileiro-um-mapeamento-preliminar-de-uma-corrente-em-ascensao.pdf>
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VASCONCELLOS, Luciana Teixeira de. Travestis e Transexuais no Mercado de Trabalho.In: Anais do X Congresso Nacional de Excelência em Gestão. 2014. Disponível em:

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