É no cotidiano que mora o extraordinário, a beleza do aqui e agora, acredita Estela Renner, 44 anos. Apaixonada por gente, a cineasta paulistana direciona sua inquietação e empatia para temas tão densos quanto essenciais. Igualdade de oportunidades, defesa da criança, da saúde e dos direitos da mulher são assuntos que trata tanto com ímpeto quanto com delicadeza.
Quando fundou a Maria Farinha Filmes, em 2008, Estela foi convidada pelo Instituto Alana para fazer um filme sobre a regulamentação da publicidade dirigida ao público infantil. ‘Criança, a Alma do Negócio’ é um libelo contra a sedução das marcas para o consumo exagerado. Estabelecia-se ali o DNA da produtora. Vieram ainda outros filmes de grande ressonância, entre os quais ‘Muito Além do Peso’ (2012) e ‘O Começo da Vida’ (2016).
Agora ela lança ‘Repense o Elogio’. O documentário, de 45 minutos, disponível de graça no YouTube , foi encomendado pelo Instituto Avon. Uma pesquisa da instituição constatou o profundo desequilíbrio na forma como meninas e meninos são elogiados. Elas, por atributos físicos; eles, por qualidades intelectuais e pela coragem. A garota é sempre linda, boneca; o menino, forte, corajoso, inteligente. A associação entre a afeição dos pais e as qualidades enfatizadas por eles pode transformar o elogio em um fardo arrastado pela vida inteira. No filme, em uma conversa entre adolescentes, uma desabafa: “Gostaria de ter sido chamada de heroína, não de princesa”.
Outra diz que “de vez em quando uma palavra dói igual a um soco”. Elas têm razão. A mensagem fica, molda comportamentos. Uma princesa é passiva, não opina, chora por tudo, se mantém no borralho, na lida da casa ou presa, sem prazer, em uma torre inacessível. Seu resgate, invariavelmente, está nas mãos de um homem. E ser boneca, ressalta Estela, se relaciona à beleza e a um padrão. “Não há problema em dizer isso às crianças, desde que o elogio não pare na superfície”, diz.
Ela espera que o filme seja muito visto. “Estamos falando sobre a base de tudo, a infância.” Mas nem todos gostam do que Estela faz, e a atacam na internet. A diretora conta que as dificuldades de fazer cinema a ensinaram a lidar de modo sereno com os chamados haters, frequentadores das redes sociais habituados a disparar metralhadoras municiadas de ódio. Casada com o roteirista e diretor de cinema e TV Tadeu Jungle, é mãe de dois meninos e uma menina.
CLAUDIA: Quando fundou a Maria Farinha Filmes, você tinha noção do impacto que as obras causariam?
Estela Rener: Não sabia quanto o terceiro setor estava realizando coisas importantes. Fizemos sob encomenda Criança, a Alma do Negócio para um projeto sobre a regulamentação da publicidade do Dia das Crianças. Era um documentário para convencer senadores e deputados. Até hoje ele é usado como ferramenta de sensibilização em processos jurídicos. Vários portais o consideraram um dos filmes capazes de mudar a vida das pessoas. O primeiro trabalho nos fez perceber que, quando a mensagem é verdadeira, a história bem contada e o filme bem-feito, ele pode dividir águas. Decidimos que a Maria Farinha se prestaria só a produções que trazem a transformação social.
CLAUDIA: A afinidade com o cinema tem raízes familiares?
Estela: Cresci muito ligada a minha avó, hoje com 98 anos, uma grande contadora de casos, que à noite editava filmes numa moviola. Apesar dessa forte conexão, não notei logo que cinema era minha praia. Estudei comunicação social, artes cênicas, nutrição, desenho industrial. No curso de comunicação, o único que concluí, percebi a vontade de ser cineasta e fiz um mestrado em Miami.
CLAUDIA: Em que momento a vocação da Maria Farinha se tornou nítida?
Estela: Quando fiz O Começo da Vida, escolhido pelo Unicef (órgão da Organização das Nações Unidas para a Infância) como vetor mundial para discutir os primeiros anos de desenvolvimento da criança. Do dia para a noite, o documentário começou a ser exibido em 194 países. Foi muito importante entender o papel da Maria Farinha e das redes. Percebi que tínhamos criado uma ferramenta para o mundo. De repente o Unicef virou parte do nosso time, e nós do dele. Na época, me ressenti de não ter explorado tanto o poder da palavra. Foi essa produção que abriu as portas para fazer um filme autoral sobre a força dos elogios na infância.
CLAUDIA: Qual a importância das palavras?
Estela: Elas tanto têm o poder de emancipar quanto de aprisionar. Há dez anos faço filmes sobre a infância, e minha reflexão é que o elogio é um julgamento. Alguém olha para você e diz: ‘Nossa, como você é bonita!’. De tudo o que a pessoa pode lhe falar, ela escolhe uma qualidade. É uma avaliação favorável, mas não deixa de ser um julgamento. Se a criança cresce ouvindo apenas que é linda, ela entende que manter o amor dos pais exige conservar sempre os atributos físicos. Isso pode se tornar um peso.
CLAUDIA: No documentário, uma jovem branca de olhos azuis reclama do fardo de sempre ter sido elogiada por causa deles.
Estela: O grande elogio a empodera por algo que você tem controle. Falar que você é estilosa, por exemplo, é algo controlável. É possível cada vez mais a pessoa entender a forma como quer se vestir, se expressar. Mas, no caso da beleza, ter nascido dentro do padrão imposto é sorte. Outro ponto importante é que o elogio está sempre dentro de um enunciado. Quando dizemos que determinada menina é princesa, temos de entender em qual contexto cultural isso está inserido. A palavra não vem sozinha, está ligada a um comportamento. Se perguntarmos hoje o que é ser princesa, infelizmente as respostas não estarão conectadas a conceitos como autonomia, independência, trabalho, liberdade, inteligência.
CLAUDIA: Uma parte do filme mostra diálogos entre adolescentes, mas nenhum deles é identificado. Como se deu a escolha do elenco e por que não informar quem são eles?
Estela: Minha intenção em relação a não dar nomes a todas as pessoas é porque eu queria terminar o filme com a sensação de um sentimento construído de forma conjunta. Se separamos por região, nome, idade, colocamos tudo em muitas caixinhas. Eu não queria isso, desejava um filme aberto, no qual as pessoas dividissem sentimentos, não imposições. É interessante reconhecer como o jovem hoje é articulado. O grupo foi uma escolha aleatória. Buscávamos estudantes de diferentes escolas, regiões, religiões, extratos sociais. Eles se conheceram no dia da filmagem, e houve um respeito enorme de uns pelos outros. Foi muito lindo.
CLAUDIA: Quanto tempo o projeto consumiu?
Estela: Da pesquisa ao lançamento, foram dez meses. Eu fui para Curitiba, Recife e São Paulo. Nas entrevistas na capital paulista, feitas em uma casinha (uma barraca de lona), que colocamos no Centro, encontramos pessoas do Brasil inteiro. Algumas conhecemos naquele momento. Em Recife, entrevistei gente nas ruas. Ficamos com a câmera lá e fomos colhendo os depoimentos. A escolha das famílias demandou uma produção de elenco. Precisávamos de pais de meninos e meninas em determinada faixa etária.
CLAUDIA: Quando o trailer foi exibido, houve manifestações de ódio. Alguns afirmam que educação é função dos pais e nenhuma instituição deve se intrometer. Como avalia isso?
Estela: Repense o Elogio ainda era apenas um trailer no site da Avon e na página da empresa no Facebook. Sabemos que a maioria dos que deram o dislike (reprovação) assistiu a seis segundos do trailer, que tem cinco minutos. Como opinar desse jeito? Eu não respeito pessoas assim. Vivemos um tempo difícil de lidar. Estamos em uma era de compartilhamento de mentiras e distorções. Outro dia, um homem me mandou um vídeo de 57 minutos em que, entre outras mentiras, afirma que sou dona das Lojas Renner. Cerca de 77 mil pessoasvisualizaram. Ele fez isso em função dos nossos filmes. Se você assistir a O Começo da Vida, verá que não dá para associar esse documentário à pedofilia, coisa que o autor desse vídeo fez. As manifestações contrárias parecem vir muito mais de um movimento político.
Essas pessoas são guiadas por outros motivos e logo migrarão para outros assuntos. Vão se queixar da mostra Histórias da Sexualidade, em cartaz no Museu de Arte de São Paulo (Masp), assim como reclamaram do artista nu na abertura da mostra Panorama da Arte Brasileira, ocorrida em setembro no Museu de Arte Moderna (MAM) da capital paulista. Acho até irresponsável chamar o grupo de extrema direita, porque ele não está em um espectro político. Trata-se de ódio, mentira, distorção. Houve gente durante a noite inteira incentivando dislikes ao documentário. Quando fiz Muito Além do Peso, alguns reagiram negativamente. “Como assim, vir falar de obesidade pra gente?”, diziam. Mas é possível ser contra a constatação do filme, de que uma criança de 6 anos tem doenças de idoso por causa da má alimentação? É algo inegociável.
CLAUDIA: Ainda se pensa assim?
Estela: Hoje menos, tanto que os refrigerantes foram tirados das escolas públicas brasileiras por iniciativa privada. Até a Coca-Cola admitiu que isso não era legal. Mas mudança demanda tempo. Demorou até explicarmos e as pessoas entenderem que o ambiente também colabora para a crise de obesidade vivida. Há um período de reflexão, até porque nenhum pai gosta de ser julgado. Toda família precisa de ajuda. Por isso acho incrivelmente corajoso, contemporâneo e inovador as empreas se posicionarem a favor de causas sociais.
CLAUDIA: Os jovens falam sobre a dificuldade de ir contra conceitos transmitidos pelos pais. Que projeção você faz para essa geração?
Estela: O jovem de 15 anos é incrível, quer um mundo melhor, enxerga sem preconceitos, tolera mais. Vejo uma grande diferença geracional de pensamento. Esses garotos estão se articulando, se unindo, se conectando nacionalmente.
CLAUDIA: Uma menina diz: “Tenho cabelo crespo e traços grossos. Nunca fui princesa para a sociedade”. E os olhos dela se enchem de lágrimas.
Estela: A estética imposta é a da magra, branca, de olhos claros. Temos uma classe de mulheres invisíveis. Então dá para imaginar o sofrimento de nunca receber um afago por sua aparência. É uma opressão. O filme propõe que os elogios sejam ampliados. E que vale exaltar todos os tipos de princesa. Somos 7 bilhões de pessoas no mundo, a diferença tem de ser a regra.
CLAUDIA: Como você se define?
Estela: Tenho uma inquietude. Quero usar meu tempo, meu talento e minha sensibilidade para fazer um mundo melhor. Não dá para assistir o homem acabar com os peixes do oceano, matar os corais da Austrália. Temos de passar por uma grande revolução de pensamento. Há milhares de pessoas desenvolvendo coisas incríveis, cada uma usando seu potencial. Eu me encontrei no audiovisual, mas há uma engenheira, um professor, cada qual almejando um futuro de paz. Projetamos o que pensamos.
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