Pesquisadoras resgatam a história de luta dos movimentos feministas brasileiros
Nos últimos 100 anos a luta feminista por direitos da mulher e igualdade provocou impacto no cenário político brasileiro. De operárias grevistas em 1917 aos atuais grupos de pressão política, as mulheres tiveram de lutar muito para que algumas de suas demandas fossem atendidas. Pesquisas recentes aprofundaram a compreensão de diferentes momentos dessa história. Parte desses trabalhos está no livro 50 anos de feminismo: Argentina, Brasil e Chile (Edusp, 2017), fruto do projeto coordenado pelas sociólogas Eva Blay, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), e Lúcia Avelar, do Centro de Estudos de Opinião Pública da Universidade Estadual de Campinas (Cesop-Unicamp). O livro ajuda a compreender o papel central das organizações feministas na conquista da proteção jurídica e social das mulheres. Para ficar apenas no campo da vida privada, houve vitórias fundamentais, como a eliminação do pátrio poder e a criminalização da violência doméstica e do assédio sexual.
Apesar dos avanços, as mulheres brasileiras ainda são sub-representadas politicamente. O Brasil é o 154º colocado num ranking de 190 países organizado pela organização Inter-Parliamentary Union sobre a presença feminina nos parlamentos. Apenas uma em cada 10 cadeiras da Câmara dos Deputados, com 513 representantes, é ocupada por mulheres. No Senado, essa presença é de 14% dos 81 eleitos. Nesse quesito, o país está atrás até mesmo da Arábia Saudita, com todo o seu histórico de cerceamento de direitos e liberdades femininas. Segundo Lúcia Avelar, as organizações feministas brasileiras funcionam como uma espécie de representação extraparlamentar das mulheres, com atuação articulada à pequena, mas atuante bancada feminina.
Coautora de um dos artigos do livro, a cientista política Patrícia Rangel, hoje em um estágio de pós-doutorado na Freie Universität Berlin, Alemanha, argumenta que essa articulação política organizada levou às mudanças legais que asseguraram igualdade jurídica entre mulheres e homens, aboliram da legislação termos discriminatórios e permitiram a elas figurar legalmente como chefes de família. Para Patrícia, frutos dessa articulação também são a ampliação do salário-maternidade (1988), a lei de cotas eleitorais (de 1995, com a exigência de que 30% das candidaturas sejam de mulheres), a esterilização em hospitais da rede pública (1996), a normatização do atendimento ao aborto legal no Sistema Único de Saúde, o SUS (1998), e a Lei Maria da Penha (2006), contra a violência doméstica e intrafamiliar.
Lúcia Avelar afirma que o Brasil, mesmo com baixa representatividade de mulheres no parlamento, é um dos países com maior nível organizacional do movimento feminista. “Essa mobilização alcançou um alto nível de articulação, com redes que fazem a ponte entre a sociedade e o Estado. As redes são internacionalmente reconhecidas, como a Articulação de Mulheres Brasileiras e a Marcha Mundial de Mulheres”, aponta. A socióloga identificou o ponto de inflexão para esse nível de organização: “A entrada progressiva das mulheres em cursos de educação superior e a formação de ONGs [organizações não governamentais] feministas”.
As conquistas feministas entraram pelo século XXI no Brasil, especialmente em relação à atuação na esfera pública. “Um grande ganho obtido dos governos até 2014 foi a criação do Orçamento Mulher, um caso excepcional entre os países latino-americanos”, conta Lúcia. Trata-se de um extrato do orçamento da União contendo as ações que impactam a qualidade de vida das mulheres brasileiras, como saúde, enfrentamento da violência, igualdade no mundo do trabalho, entre outros itens. Foi coordenado pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) para monitorar o processo orçamentário e garantir que as verbas aprovadas fossem efetivamente liberadas para a implementação das políticas públicas definidas no Orçamento Mulher.
Resistentes e exiladas
Parte da organização feminista surgiu a partir da oposição de mulheres à ditadura militar (1964-1985). O recrudescimento do autoritarismo, principalmente a partir de 1968, produziu ondas de exilados entre os que se opunham ao regime. Muitas mulheres tiveram contato com o feminismo no exterior, principalmente na França. De lá, brasileiras e outras latino-americanas, também expatriadas em consequência dos golpes militares no Chile (1973) e na Argentina (1976), editaram publicações que procuraram servir como ponto de encontro do debate feminista no exílio.
Esses grupos foram estudados pela socióloga Maira Abreu, doutora em ciências sociais pela Unicamp, que publicou o livro Feminismo no exílio(Alameda, 2016). A autora mostra como esses grupos constituíram uma presença importante na comunidade brasileira na França e foram um elemento de divulgação de ideias feministas. Quando retornaram aos seus países de origem, muitas trouxeram consigo essa experiência e influenciaram, em alguma medida, os debates em curso no feminismo latino-americano. “Mas não se deve pensar numa simples relação de importação de ideias”, alerta Maira, “e sim numa encontro de feminismos gestados em realidades distintas”.
Mesmo com a crescente organização, as mulheres continuam com pouca inserção nas estruturas partidárias. Lúcia Avelar aponta para o caráter oligárquico dos partidos brasileiros e a centralização de seu poder como algumas das principais causas dessa exclusão. A socióloga avalia que atualmente os partidos de esquerda oferecem oportunidades políticas um pouco melhores às mulheres. “Nos partidos com raízes nos movimentos sociais, a disputa interna entre tendências melhora a posição das mulheres, pois a abertura para novos segmentos costuma ser maior”, afirma. Para Patrícia Rangel os partidos parecem não compreender que a presença das mulheres também é sinônimo de democracia. “Isso tem efeitos negativos para as mulheres no geral, visto que são as instâncias partidárias que determinam o acesso à política institucionalizada e têm papel importante na mudança do sistema político”, afirma.
A não compreensão do papel das mulheres as deixou, durante muito tempo, relegadas à condição de coadjuvantes e subordinadas em partidos e sindicatos, meios nos quais se poderia esperar, por coerência ideológica, uma defesa do igualitarismo. “O enfrentamento do patriarcado era geralmente colocado em segundo plano, depois da prioridade política, que era a crítica ao capitalismo”, diz Patrícia. Eva Blay afirma que havia uma crença de que a modernização da sociedade produziria a igualdade entre homens e mulheres. “Essa visão mecanicista foi questionada à medida que se verificou que a própria modernização mantinha os padrões patriarcais, dando-lhes nova roupagem e recompondo padrões de dominação, de violência contra a mulher, de desigualdades no trabalho e no salário”, sustenta. Esses questionamentos vieram das feministas da década de 1970, mas as primeiras transformações fomentadas pelo feminismo brasileiro têm raízes mais antigas.
Operárias e intelectuais
No Brasil dos anos 1920 as mulheres não tinham direitos políticos, não podiam votar nem se candidatar a cargos eletivos. Para exercer atividade profissional fora de casa, precisavam de autorização do marido e chegavam a ganhar menos da metade do que os homens, cumprindo as mesmas funções. Essa situação só começou a ser superada a partir da resistência das trabalhadoras e do surgimento de organizações como a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), liderada pela bióloga Bertha Lutz (1894-1976).
Filha do bacteriologista Adolfo Lutz (1855-1940), Bertha nasceu em São Paulo e estudou na França, onde foi influenciada pelo cenário internacional de explosão do feminismo, aglutinado em torno da demanda pelo sufrágio universal. Fundada em 1922, a FBPF é geralmente vista como indício de que os primeiros passos do feminismo no Brasil foram dados apenas por mulheres da elite econômica e intelectual, desconectados da realidade da maioria de trabalhadoras.
Não foi bem assim que aconteceu. Estudo da historiadora Glaucia Fraccaro resgata a importância da atuação política das mulheres da classe trabalhadora e sua influência indireta sobre líderes e organizações feministas nos anos 1930. A pesquisadora defendeu recentemente a tese “Os direitos das mulheres: Organização social e legislação trabalhista no entreguerras brasileiro (1917-1937)”, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.
Glaucia argumenta que a falta de atenção à história das mulheres trabalhadoras é um dos motivos que consagraram o feminismo brasileiro como oriundo das classes mais altas. Ao mesmo tempo, cristalizaram a noção de que a classe trabalhadora havia faltado na emergência do movimento feminista. Contudo, uma das raízes da atuação feminina organizada em busca de direitos não está nos movimentos de mulheres de elite, mas no protagonismo das operárias na greve que parou São Paulo há 100 anos.
A greve geral de 1917 foi uma reação à diminuição do poder de compra, à deterioração das condições de trabalho e ao crescimento da exploração de menores na indústria. Reflexo da Primeira Guerra Mundial, a aceleração das exportações pesava sobre as famílias trabalhadoras, empobrecidas e esgotadas pelo aumento da jornada de trabalho. As mulheres eram a maior parte do operariado no setor têxtil e representavam cerca de um terço da força de trabalho urbana – dos menores explorados pela indústria, as meninas eram a maioria. “Quando trabalhadores e trabalhadoras se ergueram em numerosas greves a partir de 1917, emergiu a noção de que os direitos sociais não são neutros e deveriam abarcar a condição das mulheres”, conta Glaucia.
A luta levou a conquistas no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945). Nesse período, a atuação política de Bertha Lutz foi influenciada indiretamente por demandas da classe trabalhadora. “Mulheres do Partido Comunista Brasileiro denunciavam na imprensa a falta de preocupação da FBPF com as trabalhadoras”, lembra Glaucia, “enquanto a rede transnacional na qual a federação se inseria impôs uma agenda que envolvia licença-maternidade, a proibição do trabalho noturno das mulheres e o direito ao voto”. As pressões exercidas pelos movimentos levaram Vargas a aprovar em 1932 um decreto que atendia a essas demandas, incluindo a lei por igualdade salarial, que nunca foi cumprida.
Projeto
50 anos de feminismo (1965-2015): Novos paradigmas, desafios futuros (nº 12/23065-8); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Eva Alterman Blay (USP); Investimento R$ 273.280,93.
Livros
BLAY, E. A. e AVELAR, L. (org). 50 anos de feminismo: Argentina, Brasil e Chile: A construção das mulheres como atores políticos e democráticos. São Paulo: Edusp, 2017.
ABREU, M. Feminismo no exílio. São Paulo: Alameda Editorial, 2016.
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