Na iniciativa criada na Dinamarca, voluntários são os livros usados para combater preconceito e promover empatia
por Vinícius de Oliveira 15 de abril de 2016
Por mais que demonstrações de intolerância ganhem cada vez mais espaço no noticiário, ainda existem aqueles preocupados em fazer o bem. Para mudar a sociedade e tentar evitar que indivíduos julguem uns aos outros por sua aparência, ou melhor, um livro por sua capa, a Human Library (Biblioteca Humana, em inglês) avança em universidades e espaços públicos do mundo todo oferecendo chance ao diálogo. Em formato de conversa, e não de palestra, um voluntário faz o papel de livro e dá chance a um visitante, que será conhecido como leitor, de abrir uma conversa de pelo menos 30 minutos e conhecer toda a sua experiência de vida. As perguntas são livres e cada um dos lados pode interromper a sessão quando bem entender.
A iniciativa nasceu em Copenhague (capital da Dinamarca), no ano 2.000, por iniciativa da ONG (Organização Não Governamental) Stop the Violence, formada por Ronni Abergel, Erich Kristoffersen, Asma Mouna, Thomas Bertelsen e Dany Abergel. Após o assassinato de um amigo em comum, os cinco jovens se uniram em uma campanha durante Roskilde Festival, um dos maiores festivais de música da Europa, para combater estereótipos atribuídos à juventude. Em menos de um ano, mais de 20.000 voluntários se juntaram à causa.
Em conversa com o Porvir, Ronni Abergel diz que apesar da expansão de filiais, o fenômeno de julgar um livro por sua capa ainda é muito comum por ser parte da natureza humana. “As pessoas ficam o tempo todo rotulando as demais de acordo com suas diferenças e sua diversidade e, mais tarde, podem descobrir que tudo o que se pensava estava errado”, diz Abergel. Ele atribui esse comportamento a dois fatores: falta de tempo e de acesso a determinados grupos da sociedade. E é aqui que a Human Library mostra a que veio: conecta indivíduos com diferentes trajetórias de vida para derrubar preconceitos que podem levar à discriminação dentro de uma comunidade, cidade ou país.
Em 16 anos de existência, a entidade já deu origem a uma série de voluntários de sucesso, chamados de best-sellers. “Em cada país, a lista possui diferentes livros. É tudo uma questão de contexto, mas, de maneira geral, livros como refugiados, transexuais, sem-teto e que falam sobre doenças mentais podem ser vistos em qualquer lugar porque sempre haverá leitores interessados em encontrá-los”.
Entre seus livros favoritos, Arbergel cita o caso de um policial que teve contato com três jovens leitores pertencentes a grupos anarquistas que promovem manifestações durante eventos da União Europeia. Um amigo do grupo não gostou de saber da história e começou a ofender o agente de segurança. “Antes mesmo que o policial pudesse responder, os três amigos intercederam e pediram para que o exaltado se sentasse e ficasse quieto, pois não conhecia aquela pessoa. Eles sim. Após uma hora de empréstimo [sessão de conversa], eles foram capazes de levantar e defender seu livro”, conta Abergel. Episódios como esse pouco a pouco foram mostrando aos jovens o poder do encontro cara a cara para a construção de uma relação positiva.
“Nós não estamos preparados para fazer isso nas ruas. Nós precisamos estar mentalmente prontos. As pessoas que vem à Human Library têm a chance de serem preparadas, saber o que vai acontecer e perguntar. Você não conseguiria fazer isso no caminho de volta para casa”.
Como funciona
Um evento Human Library pode ser organizado por qualquer interessado em promover respeito à diversidade em sua comunidade. Geralmente, eles acontecem em bibliotecas públicas, festivais, escolas, universidades.
A quantidade de livros pode ir de cinco a sete ou até mesmo superar a casa dos 70, mas, para a organização, o importante é garantir uma variedade de temas para que a ideia de biblioteca não se resuma a uma “coleção especial”. Além disso, é necessário atender pelo menos cinco de sete categorias: etnia, religião, sexualidade, ocupação profissional, condição social, estilo de vida e saúde/deficiência.
Antes que o voluntário seja aceito a receber interessados em conversar, ou seja, publicado como livro, é recomendável que os responsáveis pelo evento estabeleçam uma conversa prévia para definir o conteúdo e verificar experiências. “A pessoa pode estar enfrentando grandes dificuldades ou convivendo com doenças graves, então você precisa ter certeza que ela está bem”, diz Abergel.
Uma história diferente em cada lugar
Apesar de trabalhar em torno de sete temas, é tarefa quase impossível encontrar um livro igual ao outro em eventos, cidades e países diferentes. Títulos podem até ser parecidos, mas como diz Marlena Johnson, presidente da Human Library de Chicago, nos Estados Unidos, os enredos são únicos. O capítulo local começou em 2014 e, desde então, já realizou eventos em festivais de rua, abrigos para desabrigados e, neste mês, vai acontecer pela primeira vez em um museu.
Johnson diz que ao participar pela primeira vez de um evento, os leitores são orientados por bibliotecários, que apresentam os livros disponíveis para conversas que duram em média 30 minutos. “Também criamos uma cabines fotográficas onde leitores podem tirar fotos com seus livros. Por exemplo, ‘Eu sou mais que minha deficiência’ ou ‘Eu sou mais que meu gênero’. Essa tem sido uma das melhores maneiras de atrair a participação dos leitores”, descreve.
Entre as histórias que podem ser conhecidas em Chicago está a de Meosha, uma veterana da guerra do Iraque. Johnson conta que a voluntária integrava a Marinha até que um dia o veículo onde estava com a tropa foi atingido por um explosivo improvisado. Meosha foi a única sobrevivente e hoje tem que reaprender a andar. Entre outras iniciativas, busca levantar recursos para outras mulheres que estiveram no front.
Também destaque nas conversas promovidas pela Human Library em Chicago, o professor Alfredo Peralta proporciona aos seus leitores uma imersão no ensino público da cidade, que já enfrentou duas greves nos últimos quatro anos. Ao Porvir, Peralta diz que atendeu um convite de um amigo que participa da organização por ter a possibilidade de oferecer ao público (especialmente para idosos, que sentem falta de contato mais próximo) uma interação “orgânica” com um livro. “Existe uma diferença significativa entre conversar com alguém como indivíduo, permitindo que o papo siga com liberdade, e ter algo pré-determinada. Isso permite uma interação mais profunda e significativa, com algumas perguntas servindo como estrutura e também com expectativas diferentes de cada lado. O leitor sabe que o tema não é o tabu ou ofensivo porque ele já é o próprio título do livro”, afirmou o professor.
Mais que mudar a mentalidade de seus leitores, Peralta diz que o importante é conscientizá-los sobre as complexidades do ensino público e da realidade dentro da rede de Chicago – que recentemente sofreu corte de investimento. “A maior parte é simpática aos professores, mas não entende as experiências dos alunos. A narrativa diz que os estudantes do centro são todos pobres, têm baixa escolaridade, são vítimas de violência, mal disciplinados e violentos. Isso é impreciso. Por mais que seja verdade que existam gangues e diversas outras dificuldades para o sistema de ensino, também há coisas maravilhosas. Muitos de nossos estudantes são muito inteligentes, criativos, esperançosos e desejam proporcionar um impacto positivo aos seus pares e à sociedade. Para isso, é necessário apoio e financiamento”.
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