04/04/2016 por Valéria Diez Scarance Fernandes
“Fui assassinada. Fui morta moralmente. Hoje, eu ainda estou em recuperação, dia a dia. Não vai passar”
(Rose Leonel, vítima de “revenge porn” pelo ex-namorado, criadora da ONG Marias na Internet)
A internet reescreveu o mundo com a caneta da conectividade. Barreiras espaciais e temporais foram e são rompidas em segundos. Hoje, é possível teclar, conversar e compartilhar com qualquer pessoa do mundo.
Para essa conectividade, há um elemento fundamental – a instantaneidade. As postagens, mensagens e compartilhamentos não estão sujeitos a um controle prévio. Tudo pode ser postado e compartilhado em segundos. Após a publicação – somente neste momento - ocorre eventual retirada de material inadequado e responsabilização da pessoa que publicou.
Mas, o que acontece se a publicação for ofensiva? E se não for retirada a tempo? E se a pessoa que publicou não responder por nenhum crime?
O alcance potencial dessas postagens é gigantesco. No Brasil
- 81,5 milhões de pessoas com mais de 10 anos acessam a internet pelo celular;
- 29,7 horas/mês é o tempo médio de conexão
- 92% dos jovens têm redes sociais
- 76 milhões são usuários de redes sociais
Na era digital, os compartilhamentos ocorrem sem nenhum critério por parte dos usuários, ainda que sejam de cunho nitidamente íntimo e de pessoas conhecidas. Há a sensação do anonimato e da impunidade, como se fosse uma “terra sem lei”.
Imagens e vídeos sensuais e sexuais proliferam sem a anuência das pessoas envolvidas, em sua maioria mulheres, transformando-as em objeto de diversão, piadas e desejo.
A pesquisa “Violência contra a Mulher: o Jovem está ligado”, realizada pelo Instituto Avon e Data Popular revelou que
- 59% dos homens receberam fotos/vídeos de mulheres nuas desconhecidas;
- 41% dos homens receberam fotos/vídeos de mulheres nuas conhecidas;
- 28% repassaram essas imagens.
A pornografia não consensual consiste nessa divulgação de imagens ou vídeos sem consentimento da pessoa e está normalmente associada às condutas de “sexting” e “revenge porn”.
“Sexting” (“sex” – sexo e “texting” – escrever texto) consiste em enviar fotos, frases ou vídeos sensuais para parceiros ou colegas. Essa prática, em si, não constitui qualquer infração. Contudo, os vazamentos de conteúdo, as chantagens e até as extorsões são comuns. Esses vazamentos em regra atingem mulheres – 81%, muitas delas com idades de 13 a 15 anos, conforme noticiado pelo BrasilPost (Disponível em:. Acesso em 22.03.2016).
Nos Estados Unidos proliferam relatos de que hackers e traficantes sexuais usam esses arquivos como forma de extorsão ou submissão das vítimas.
Após a divulgação, é muito difícil excluir as fotos de todos os sites, em razão dos inúmeros e sucessivos compartilhamentos. No Brasil e no exterior, há relatos de jovens que cometeram suicídio após terem suas fotos divulgadas e sua vida pessoal devassada.
Em 2013, duas jovens enforcaram-se após serem vítimas de divulgação íntima não autorizada e deixaram em suas redes de relacionamento mensagens de despedida:
“Hoje a tarde dou um jeito nisso, não vou ser mais um estorvo para ninguém” (Giana Laura Fabi, 16 anos)
“É daqui a pouco que tudo acaba. Eu te amo. Desculpe não ser a filha perfeita, mas eu tentei... Desculpa, eu te amo muito. Eu to com medo, mas acho que é tchau pra sempre” (Julia Rebeca, 17 anos).
Outra prática muito comum é a “revenge porn”, ou pornografia de vingança. Consiste na divulgação de fotografias ou filmes de conteúdo íntimo, obtidos com ou sem o consentimento da mulher, em regra como vingança pelo término do relacionamento.
A “revenge porn” no âmbito afetivo ocorre por um motivo: porque o homem não aceita o NÃO da parceira. Então, para se assegurar de que ela pague pelo que fez, em uma versão cibernética da tradicional ameaça “se não for minha não será de mais ninguém” – o homem esmera-se em preparar mensagens, postar fotos ou vídeos em sites pornográficos, emails de amigos, conhecidos, até no ambiente escolar dos filhos, para denegrir e macular de morte a imagem da ex-parceira.
Mais do que uma ofensa, é uma morte em plena vida. Esses assassinos virtuais causam consequências tão graves que, se a vítima não comete suicídio, guarda sequelas e consequências por toda sua história.
No documento Drafting An Effective ´Revenge Porn´ Law: A Guide for Legislators, há uma descrição das consequências para as vítimas:
Violência na Internet
(Pornografia de vingança)
|
Consequências para as vítimas
|
51%
|
Pensamentos suicidas
|
49%
|
Sofrem assédio ou perseguição on line
|
30%
|
Sofrem assédio ou perseguição fora da internet
|
93%
|
Intenso sofrimento
|
82%
|
Forte impacto na vida social e profissional
|
54%
|
Dificuldade de trabalhar e estudar
|
42%
|
Necessitam de auxílio psicológico
|
38%
|
Prejuízo nas relações com amigos
|
34%
|
Prejuízo nas relações familiares
|
Fonte: Drafting An Effective ´Revenge Porn´ Law: A Guide for Legislators. Disponível em: <http://www.endrevengeporn.org/guide-to-legislation/>, Acesso em 22.03.2016.
Para potencializar o dano à imagem, à reputação e ao dia a dia da mulher, esse criminoso virtual divulga ofensas e dados pessoais da vítima para que seja facilmente identificada e localizada:
Violência na Internet
(“Pornografia de vingança”)
|
Dados das vítimas divulgados
|
59%
|
nome completo
|
49%
|
perfil ou rede social
|
26%
|
email
|
20%
|
telefone
|
16%
|
endereço residencial
|
14%
|
endereço de trabalho
|
Fonte: Drafting An Effective ´Revenge Porn´ Law: A Guide for Legislators. Disponível em: <http://www.endrevengeporn.org/guide-to-legislation/>, Acesso em 22.03.2016.
Muitas mulheres são atingidas por esta prática e se mantêm em silêncio por vergonha. Preferem o sofrimento anônimo, o isolamento, à revelação.
Apesar disso, nos últimos anos, vítimas iniciaram movimentos para demonstrar a gravidade do problema e exigir mudanças. No Brasil, a jornalista Rose Leonel teve fotos divulgadas pelo ex-noivo e fundou a ONG “Marias da Internet” para ajudar outras mulheres. Cinco anos após os fatos, em entrevista, relatou que ainda sofria intensamente:
“Perdi o emprego, dinheiro, amigos e oportunidades. Perdi tudo, tudo, até a presença do meu filho, que foi morar fora do país. Sofri um processo de exclusão social e fui obrigada a um período de reclusão. Foi muito duro. Só Deus me sustentou. Até hoje tenho pesadelos. Fui assassinada. Os danos são irreparáveis para mim, meus filhos e meus pais” (Disponível em:http://www.tribunadecianorte.com.br/cidades/2011/08/tj-condena-empresario-no-caso-rose-leonel/878868/. Acesso em 23.03.2016).
Ao redor do mundo, aos poucos, as legislações começaram a tipificar a conduta.
Em 2009, nas Filipinas, foi criado o crime de divulgar fotos e vídeos íntimos, com pena de 03 a 07 anos. Nesta lei, há previsão das condutas de fotografar ou filmar pessoas sem o consentimento ou em situações com expectativa de privacidade, bem como copiar, reproduzir, vender e publicar pela internet ou outros meios. Além disso, se a divulgação for feita por pessoa jurídica, revoga-se a licença ou franquia. (Disponível em: <http://www.endrevengeporn.org/guide-to-legislation/>. Acesso em 22.03.2016).
Seguiram-se leis na Austrália (2013), Israel (2014), Canadá (2014), Inglaterra (2015) e Nova Zelândia (2015).
Nos Estados Unidos, em que a legislação Penal e Processual é Estadual, a conduta já está criminalizada em 27 Estados: Alaska, Arkansas, California, Colorado, Columbia, Delaware, Florida, Georgia, Hawai, Idaho, Illonois, Lousiana, Maine, Maryland, Nevada, New Jersey, New Mexico, North Carolina, North Dakota, Oregon, Pensylvania, Texas, Utah, Vermont, Virginia, Washington e Wisconsin.
No Brasil, não existe legislação específica e o enquadramento depende da idade da vítima.
Na hipótese de foto ou vídeo envolvendo menores, aplica-se o tipo penal do art. 241 A do Estatuto da Criança e do Adolescente, para o qual é prevista pena de reclusão, de 03 a 06 anos e multa.
Se a vítima é maior de 18 anos, o fato configura crime de injúria, previsto no artigo 140 do Código Penal, com pena de 01 a 06 meses de detenção, ou multa.
Além da pena ínfima e irrisória, o crime está sujeito à ação penal privada, figura em extinção no Processo Penal tamanha a sua ineficácia. E pior, com prazo decadencial – e portanto – improrrogável – de 06 meses.
No sistema atual, praticar “revenge porn” é um fato praticamente impunível quando a mulher tem mais de 18 anos. Raríssimas são as ações movidas pelas vítimas.
Para uma resposta estatal adequada e proteção efetiva da vítima, necessário criar em nosso país uma legislação com os seguintes parâmetros mínimos:
- previsão das condutas de obter a imagem clandestinamente, quando há expectativa de privacidade, e divulgar ou compartilhar por qualquer meio;
- referência a fotos ou vídeos reais ou montagens, atribuídas à vítima;
- ação penal pública (não privada), preferencialmente condicionada, e pública incondicionada para vítima menor;
- pena proporcional à gravidade do fato e extensão do dano, pois potencialmente milhões de pessoas podem tomar conhecimento do conteúdo das imagens ou vídeo. Além disso, penas leves prescrevem antes que o fato seja apurado;
- previsão de fixação de dano moral na sentença criminal, nos termos do art. 387, IV, CPP. Este aspecto é relevante, pois muitas vítimas são obrigadas a abandonar escola, trabalho, vida social após a divulgação.
Tramitam no Congresso Nacional dois Projetos de Lei sobre o tema: Projeto de Lei 63/2015 do Senado e o Projeto de Lei 5555/2013 da Câmara dos Deputados.
A discussão e votação desses projetos é urgente e pode resgatar muitas pessoas. Essa vanguarda da interatividade deve caminhar de mãos dadas com a proteção de direitos para que se tenha o mínimo de segurança e privacidade.
Sob o aspecto da intimidade e da honra, a internet é uma potencial arma de destruição, acionada por um simples “clique”, por qualquer pessoa e de qualquer lugar. Um “clique” que provoca a morte em plena vida. E essa ofensa se propaga porque se compartilha. E se compartilha. E se compartilha. E se compartilha. Então em que medida não somos todos feminicidas virtuais?
Nenhum comentário:
Postar um comentário