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sábado, 30 de abril de 2016

Crise política e epidemia têm a mesma origem, afirma especialista em direitos reprodutivos

(Marina Pita/Agência Patrícia Galvão, 29/04/2016) Fatores que contribuíram para a atual crise política – como incapacidade de garantir o direito à saúde e cidades saudáveis – também permitiram o surgimento das epidemias no Brasil
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A cobertura da mídia foi repentinamente tomada por um único assunto que se desdobra em dois: a crise política e a crise econômica. Sobra algum pouco espaço para seguir tratando das epidemias de dengue, zika e chikungunya, mas raramente os dois temas são combinados. E, no entanto, eles têm tudo a ver, os mesmos fatores desencadearam ambos”, defende Sonia Corrêa, pesquisadora da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW, na sigla em inglês). “As falências que explicam a epidemia no Brasil também são aquelas que delineiam uma série de obstáculos e riscos mais contundentes para o futuro do Brasil”, afirma.

“A epidemia de zika não vem sozinha, vem com outras epidemias, em um contexto de outras enfermidades em ascensão, como as síndromes congênitas, em que os casos triplicaram desde 2008. Foram 22 mil casos de síndromes congênitas de sífilis no ano passado. É um escândalo. E nesse cenário politico, com enorme instabilidade institucional, com horizontes obscuros, é quase um pesadelo, em um certo sentido”, analisa Sonia Corrêa. A especialista em sexualidade, direitos das mulheres e saúde salienta, no entanto, que é preciso cautela para garantir uma análise bem informada da situação e não cair em saídas simples.
O Brasil falhou em três frentes
Na avaliação da pesquisadora, o Brasil falhou em enfrentar três desafios e são justamente essas falências que levaram à crise política e à situação de tríplice epidemia. A primeira falência é a de avançar para cidades saudáveis, com implantação de saneamento básico universal, controle de vetores de doenças e garantia dodireito à saúde.
A segunda falha, por mais paradoxal que pareça, diz respeito às falhas estruturais do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. “Se por um lado foi a capacidade técnica instalada no SUS e a capacidade de pesquisa pública que permitiram a descoberta da síndrome congênita, por outro lado, do ponto de vista da assistência, das demandas das pessoas, especialmente das mais pobres, o sistema é muito irregular, varia de local para local. A situação nas grandes cidades é uma tragédia. Uma tragédia decorrente de problemas de financiamento e de gestão e problemas derivados desse movimento de privatização da assistência nos níveis primário e secundário para as organizações sociais, em regimes de prestação precários de controle e supervisão”, diz Sonia Corrêa.
A especialista aponta ainda que a situação calamitosa do Sistema Único de Saúde não é apenas uma questão de recursos. Houve transferência de bilhões para as chamadas Organizações Sociais (OSs) até há pouco tempo, e os problemas já existiam. Com a crise fiscal que assolou o país, no entanto, o que já estava ruim se transformou em “uma cena dantesca”, frisa Sonia Corrêa.
A crise no SUS afeta sobretudo a atenção básica e o nível secundário, o lugar central de implementação das políticas adequadas de saúde sexual e reprodutiva, e em que se deve tratar a questão da transmissão sexual e na gestação. “Houve aumento dos casos de sífilis congênita no país porque a prevenção, a assistência básica em ginecologia e a atenção de qualidade de pré-natal falharam. Saímos de 8 mil casos de síndrome congênita de sífilis, em 2008, para 22 mil casos em 2015 – é um escândalo!”
A terceira falência, aponta Sonia Corrêa, é própria política da saúde sexual e reprodutiva. Apesar de o Brasil ter desenhado nos anos 1980 uma resposta ampla de saúde integral às mulheres – o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) –, enquanto política, esta nunca foi adequadamente implementada, sofreu inúmeros altos e baixos e, nos últimos seis anos, desde o começo do governo Dilma, foi convertida em política materno-infantil. “E, pior, uma política materno-infantil ruim”, opina a especialista.
Política sexual-e reprodutiva versus materno-infantil
O argumento de Sonia Corrêa para criticar a qualidade da política materno-infantil é a alta taxa de mortes maternas: 35 mortes a cada 100 mil nascidos vivos, considerando que 85% dos partos no Brasil são hospitalares. “Se funcionasse a política materno-infantil, não estaríamos vivendo essas respostas tão dramáticas à epidemia. É uma descrição de calvário, peregrinação, impossibilidade de responder. É o Ministério da Saúde que não distribui os testes – algo inaceitável e inexplicável”, salienta.
Claro que houve vitórias neste processo de definição de uma política ampla para a saúde das mulheres, lembra Corrêa. Uma delas, aponta, foi a instalação do serviço de aborto legal, que chegou a ter 80 pontos de atendimento nos anos 2000. Agora, no entanto, são pouco mais de 20 serviços em funcionamento. “Este é um indicador de efetivo retrocesso. Além de que esses serviços têm funcionamento prejudicado pela objeção de consciência na rede pública e as instituições não funcionam para dirimir os efeitos deletérios da objeção de consciência, que às vezes reduz a um único profissional a realizar o procedimento de aborto legal.”
Da boca para fora
Por todos esses fatores, a avaliação de Sonia Corrêa é que os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres mantiveram-se, nos últimos anos, predominantemente como uma “política expressiva”. Ou seja, o Estado declara que vai fazer uma coisa e ganha prestígio político, mas efetivamente nunca foram feitos os investimentos necessários, nem financeiros e nem de estratégia de implementação.
Isso ocorre porque, na lógica do sistema de saúde e da hegemonia biomédica, essa foi uma politica que sempre bateu de frente com a ideologia do materno-infantil. “É uma espécie de vampiro, que sempre volta”, compara Sonia Corrêa, para quem as outras dimensões da saúde sexual e reprodutiva foram esvaziadas. “Isso aconteceu porque o governo voltou-se ao materno-infantil para driblar as forças conservadoras”.
Consideradas no contexto brasileiro dos anos 2000, as políticas de saúde sexual e reprodutiva são políticas controvertidas. Elas atiçaram a ira e os ataques do conservadorismo moral, que ganhou espaço na sociedade brasileira ao longo dos últimos anos, e, sobretudo, no plano institucional, o que é possível ver claramente na atual conjuntura política, conclui Corrêa.

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