Resumo: Analisa a execução das medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, com ênfase na medida de internação, buscando compreender os princípios informadores na execução dessas medidas de modo a aplica-las antes do transito em julgado da decisão judicial.
1. Ato Infracional e Medida Socioeducativa
A disciplina do ato infracional é tratada pelo ECA – arts. 171/186-, e pelo SINASE (Lei n. 12.594/12).
Ato infracional é a conduta praticada por criança ou adolescente equiparada, na esfera penal, a crime ou contravenção. Várias são as teorias que definem o crime, sendo que as mais utilizadas pela doutrina é abipartite, isto é, crime é constituído por um fato típico e ilícito, e a tripartite, atualmente predominante, em que é considerado criminoso o comportamento típico, ilícito e culpável.
O ato infracional, para sua configuração, deve ser típico e ilícito, não preenchendo o requisito da culpabilidade (imputabilidade). Aplica-se ao menor, uma absoluta presunção de incapacidade para entender e determinar-se, utilizando-se do critério biológico.
A apuração da autoria e materialidade do ato infracional, bem como a aplicação da medida jurídica pertinente, é função jurisdicional, dependendo, para sua atuação, de provocação realizada por meio do direito de ação. É por meio da ação socioeducativa (também conhecida como ação socioeducativa pública), que o MP (único legitimado) instrumentaliza a sua demanda na representação e requer ao Estado-Juiz que apure a autoria e a materialidade do ato infracional praticado pelo adolescente, bem como bem como que, ao final, seja este inserido em medida socioeducativa apropriada à ressocialização.
O processo de apuração dos atos infracionais encontra-se regulado no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, aplicando-se, subsidiariamente, o Código de Processo Penal.
Como ato infracional não é crime, a sanção correspondente também não é uma pena, mas sim medidas de proteção e medidas socioeducativas, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente.
As medidas de Proteção podem ser definidas como ações ou programas de caráter assistencial aplicadas quando a criança ou adolescente estiver em situação de risco, ou quando da prática de ato infracional.
As medidas socioeducativas, por sua vez, são aplicadas, exclusivamente, ao adolescente infrator, e previstas na legislação menorista de forma taxativa. São medidas judiciais de caráter pedagógico e sancionador, cuja eleição deve atender a três elementos: Capacidade do adolescente para cumprir a medida, circunstancias e gravidade da infração.
São medidas socioeducativas elencadas pelo ECA, a advertência, a obrigação de reparar o dano, prestação de serviços a comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. Para o presente trabalho, limita-se a análise das medidas tão somente a medida de internação.
O ECA prevê três modalidades de internação: Provisória, decretada pelo Magistrado, ainda em fase processual e antes da sentença, limitada ao prazo de 45 dias; Prazo Indeterminado, decretada pelo Magistrado ainda no processo de conhecimento, com prazo máximo de três anos; Prazo Determinado, decretada no processo de execução, em razão do descumprimento de medida anteriormente imposta, possuindo o prazo máximo de três meses.
Sendo assim, sendo o caso de aplicação da medida socioeducativa de internação pelo magistrado, resta saber sobre a possibilidade de execução provisória dessa medida, ou seja, a execução da medida ainda pendente de recurso.
O tema ainda está longe de se tornar pacifico, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, havendo diversos argumentos para sustentar uma posição ou outra.
2. Princípio da Presunção de Inocência
Um dos argumentos utilizados para afastar a execução provisória da medida de internação é o de que afrontaria o princípio da presunção de inocência, previsto no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, visto como uma garantia do indivíduo contra os abusos estatais, proporcionando um julgamento de forma justa, onde só após o transito em julgado de uma sentença é que se poderia atestar a culpa de alguém.
Ocorre que a legislação deve ser interpretada de acordo com os fins a que ela se destina. Não se deve empregar o mesmo tratamento ao indivíduo imputável que pratica uma infração penal com um adolescente, ainda em desenvolvimento, que pratica um ato infracional.
A pena, no processo penal, é uma punição, e o princípio da presunção de inocência é visto de forma mais robusta, impedindo que o interesse estatal na aplicação da pena se sobreponha as garantias individuais e processuais do acusado. A medida socioeducativa, por outro lado, não possui natureza punitiva, ou ao menos não é essa sua finalidade, servindo como um instrumento de proteção do adolescente, de natureza pedagógica e ressocializadora.
3. Princípio da Intervenção Precoce
Dispõe o art. 100, parágrafo único, inciso VI, do ECA, que são princípios que regem a aplicação das medidas, dentre outros, o da intervenção precoce, que consiste na intervenção das autoridades competentes tão logo a situação de perigo seja conhecida.
Pelo princípio da intervenção precoce não há impedimento na execução de uma medida socioeducativa de internação antes do transito em julgado da sentença, pois o que se deve analisar é se o adolescente encontra-se em situação de perigo e, constatada essa situação, a execução da medida, que possui natureza protetiva, é adequada mesmo na pendencia de eventual recurso.
4. Execução Provisória da Medida Socioeducativa de internação
Recentemente o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC 346.380-SP, decidiu ser possível que o adolescente infrator inicie o imediato cumprimento da medida socioeducativa de internação, mesmo na pendencia de recurso de apelação, e ainda que durante o processo não tenha sido imposta internação provisória ao adolescente, ou seja, mesmo que durante todo o processo o adolescente infrator tenha permanecido em liberdade.
Nesse sentido é o seguinte julgado “DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. CUMPRIMENTO IMEDIATO DE MEDIDA SOCIOEDUCATIVA INDEPENDENTE DE INTERNAÇÃO PROVISÓRIA. Mesmo diante da interposição de recurso de apelação, é possível o imediato cumprimento de sentença que impõe medida socioeducativa de internação, ainda que não tenha sido imposta anterior internação provisória ao adolescente. Cuidando-se de medida socioeducativa, a intervenção do Poder Judiciário tem como missão precípua não a punição pura e simples do adolescente em conflito com a lei, mas, principalmente, a ressocialização e a proteção do jovem infrator. Deveras, as medidas previstas nos arts. 112 a 125 da Lei n. 8.069/1990 não são penas e possuem o objetivo primordial de proteção dos direitos do adolescente, de modo a afastá-lo da conduta infracional e de uma situação de risco. Por esse motivo, deve o juiz orientar-se pelos princípios da proteção integral e da prioridade absoluta, definidos no art. 227 da CF e nos arts. 3° e 4° do ECA. Desse modo, postergar o início de cumprimento da medida socioeducativa imposta na sentença que encerra o processo por ato infracional importa em "perda de sua atualidade quanto ao objetivo ressocializador da resposta estatal, permitindo a manutenção dos adolescentes em situação de risco, com a exposição aos mesmos condicionantes que o conduziram à prática infracional". Observe-se que não se cogita equiparar o adolescente que pratica ato infracional ao adulto imputável autor de crime, pois, de acordo com o art. 228 da CF, os menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis e estão sujeitos às normas da legislação especial. Por esse motivo e considerando que a medida socieducativa não representa punição, mas mecanismo de proteção ao adolescente e à sociedade, de natureza pedagógica e ressocializadora, não calharia a alegação de ofensa ao princípio da não culpabilidade, previsto no art. 5°, LVII, da CF, sua imediata execução. Nessa linha intelectiva, ainda que o adolescente infrator tenha respondido ao processo de apuração de prática de ato infracional em liberdade, a prolação de sentença impondo medida socioeducativa de internação autoriza o cumprimento imediato da medida imposta, tendo em vista os princípios que regem a legislação menorista, um dos quais, é o princípio da intervenção precoce na vida do adolescente, positivado no parágrafo único, VI, do art. 100 do ECA. Frise-se que condicionar o cumprimento da medida socioeducativa ao trânsito em julgado da sentença que acolhe a representação - apenas porque não se encontrava o adolescente já segregado anteriormente à sentença - constitui verdadeiro obstáculo ao escopo ressocializador da intervenção estatal, além de permitir que o adolescente permaneça em situação de risco, exposto aos mesmos fatores que o levaram à prática infracional. Ademais, a despeito de haver a Lei n. 12.010/2009 revogado o inciso VI do art. 198 do referido Estatuto, que conferia apenas o efeito devolutivo ao recebimento dos recursos - e não obstante a nova redação conferida ao caput do art. 198 pela Lei n. 12.594/2012 - é importante ressaltar que continua a viger o disposto no art. 215 do ECA, o qual prevê que "O juiz poderá conferir efeito suspensivo aos recursos, para evitar dano irreparável à parte". Ainda que referente a capítulo diverso, não há impedimento a que, supletivamente, se invoque tal dispositivo para entender que os recursos serão recebidos, salvo decisão em contrário, apenas no efeito devolutivo, ao menos em relação aos recursos contra sentença que acolhe representação do Ministério Público e impõe medida socioeducativa ao adolescente infrator, sob pena, repita-se, de frustração da principiologia e dos objetivos a que se destina a legislação menorista. Pondere-se, ainda, ser de fundamental importância divisar que, ante as características singulares do processo por ato infracional - sobretudo a que determina não poder o processo, em caso de internação provisória, perdurar por mais de 45 dias (art. 183 do ECA) - não é de se estranhar que os magistrados evitem impor medidas cautelares privativas de liberdade, preferindo, eventualmente, reservar para o momento final do processo - quando, aliás, disporá de elementos cognitivos mais seguros e confiáveis para uma decisão de tamanha importância - a escolha quanto à medida socioeducativa que se mostre mais adequada e útil aos propósitos ressocializadores de tal providência. Sob outra angulação, não seria desarrazoado supor que, a prevalecer o entendimento de que somente poderá o juiz impor ao adolescente o cumprimento imediato da medida socioeducativa de internação fixada na sentença se já estiver provisoriamente internado, haverá uma predisposição maior, pela autoridade processante, de valer-se dessa medida cautelar antes da conclusão do processo. Em suma, há de se conferir à hipótese em análise uma interpretação sistêmica, compatível com a doutrina de proteção integral do adolescente, com os objetivos a que se destinam as medidas socioeducativas e com a própria utilidade da jurisdição juvenil, que não pode reger-se por normas isoladamente consideradas. HC 346.380-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Rel. para acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 13/4/2016, DJe 13/5/2016. (Inf. 583 do STJ)”.
Apesar da decisão supra, tomada pela 3ª Seção do STJ, em decisão apertada de cinco votos favoráveis e quatro contra, é importante frisar que o tema é polêmico, mesmo destro do próprio STJ, onde há julgados anteriores em sentido contrário.
Prevaleceu no julgamento do Habeas Corpus acima mencionado o entendimento de que a natureza da medida socioeducativa é ressocializadora e visa a proteção do adolescente, e não sua punição. Afora isso, a apelação interposta contra eventual sentença de aplicação de medida socioeducativa não possui efeitos suspensivos prima facie, cabendo ao juiz, no caso concreto, decidir pela concessão ou não do efeito suspensivo, conforme prevê o art. 215 do ECA, vejamos “Art. 215. O juiz poderá conferir efeito suspensivo aos recursos, para evitar dano irreparável à parte”.
Observa-se, portanto, que não há impedimento à execução provisória da medida socioeducativa de internação, cabendo ao magistrado, in casu, ponderar o melhor interesse para o adolescente e decidir se é o caso de execução provisória da medida aplicada ou se atribui efeito suspensivo ao recurso interposto e deixa para executar a medida após o transito em julgado da decisão.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande. Analista Judiciário no Tribunal de Justiça de Pernambuco
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