Vinte e cinco anos depois, elas ainda nos representam, para o bem e para o mal
Lançado há mais de duas décadas, este foi o primeiro road movie a inovar e apresentar como protagonistas duas amigas interpretadas por Susan Sarandon e Geena Davis, deixando aos homens os papéis coadjuvantes. A nomes como Brad Pitt e Harvey Keitel restaram personagens que servem de apoio às aventuras do dueto de ruivas extremamente cativantes, verossímeis, magnéticas. Os homens adoram porque o filme entretém, e muito bem. Nós adoramos porque, além disso, nos sentimos representadas com o respeito, a força e a dignidade que merecemos – e isso acontece tão poucas vezes que chega a ser triste. Thelma e Louise não são mulheres-objeto criadas com o único intuito de embelezar o filme e satisfazer o ego masculino, elas até parecem gente como a gente. Transformar-se num objeto em prol do universo masculino é tudo o que, naquele dado momento, elas se recusam a fazer, e também o que desencadeia toda a sua aventura. Sarandon e Davis (duas escolhas mais que acertadas – parece até que o filme foi escrito para elas) são notoriamente defensoras de valores feministas em Hollywood, e isso é o que suas personagens vem ensinando a gerações de mulheres, e de homens também, desde 1991 (cuidado, há spoilers):
- A cultura do estupro existe sim.Se uma mulher beber e dançar para esquecer os seus problemas e/ou se divertir, sempre existirá um idiota que acha que pode colocar a mão na sua cintura (e muito mais) e uma sociedade inteira preparada para defender o boçal.
- Não significa não.Estupro não é sexo, é violência em seu mais puro estado. É degradante, ninguém merece passar por isso, mas pode acontecer com qualquer um – tanto se você for mais ingênuo como a Thelma, ou mais “pé-no-chão” como a Louise.
- Assédio é o Ó.Quem não lavou a alma na cena em que elas explodem o tanque do caminhoneiro nojento, que passa o filme inteiro dizendo e gesticulando obscenidades para as duas só porque são duas mulheres “sozinhas” na estrada? É o típico momento “não reproduza isso na vida real”, mas que dá vontade de sair fazendo o mesmo, isso dá – e muita!
- A mulher também nasceu para ser livre.O que as mulheres querem? Liberdade. Tanto do marido opressor, quanto do estuprador, do assediador e de um sistema punitivo surdo e cego que diz que a culpa é dela – mesmo quando obviamente não é. A luta das duas pelo seu direito à liberdade e a convicção de que sem ela a vida não merece ser vivida é comovente e inspiradora.
- Juntas somos mais fortes.Apesar dos conflitos e de situações limítrofes, amigas verdadeiras nunca julgam uma à outra, não existe aquela competitividade nociva, e a fraqueza de uma é o trampolim para que a outra encontre a sua própria força e assuma o controle da situação. Ah, e a sinceridade não ofende. Sempre que assistimos o filme lembramos daquela grande amiga que é a nossa “Thelma” – ou a nossa “Louise”.
- Cale-se, ou enfrente o abismo.O mundo sempre empurra para o abismo as mulheres que não aceitam ser subjugadas ou injustiçadas. As que ousam desafiar a ordem natural e intrinsecamente desigual (e masculina) das coisas são consideradas histéricas, subversivas, perigosas. As duas amigas caem de cabeça erguida, mãos dadas, sorrindo, livres. Mas caem, porque a verdade é que o mundo real também não concebe que as Thelmas e Louises existam.
- É triste, mas violência ainda é poder.A única possibilidade que elas encontram para escapar da brutalidade dos seus agressores é através de mais violência. A pistola, da qual Thelma morria de medo no começo do filme, é o único elemento que permite que elas se coloquem em pé de igualdade com os antagonistas porque, a racionalidade e a justiça não estão a favor das duas. O mundo pertence aos mais fortes, cruéis ou não.
- Ninguém te ouve? Faça o que um homem faria.O marido de Thelma, um bruto, mala sem alça e mal-educado, só presta atenção na esposa quando ela o abandona deixando apenas um bilhete, sem mais satisfações, para ir se divertir com a amiga - exatamente o que ele fazia com ela desde sempre. O Jimmy, aquele namorado/homem-problema da Louise, só vai atrás dela cheio de amor pra dar, com aliança e tudo, quando se dá conta de que ela pode estar em outra e de que não pensa em voltar. A voz e a presença delas são absolutamente irrelevantes para os parceiros até que elas trocam de papel e agem exatamente como eles.
- Podemos.O medo não pode nos levar à inércia. Certos temores são incutidos na mulher desde criança, e nesse sentido, o filme é um convite a sair desse casulo do que se determina social e politicamente para o nosso gênero e explorar novas possibilidades, mudar, permitir-se errar e transgredir. O resultado é maravilhoso: a cada transgressão Thelma e Louise se tornam mais divertidas, mais fascinantes e plenas. Nós não temos talento apenas para coadjuvar, também podemos viver grandes aventuras e arrebatar – basta tomarmos as rédeas da nossa própria vida.
- A culpa do abuso nunca é da vítima.Nunca. E ponto final.
Brasileira, residente em Madrid. Bacharel em Letras pela Universidade de São Paulo e Mestre em Cultura Contemporânea pela Universidad Complutense de Madrid – e com uma graduação não concluída em Cinema. Trabalha com marketing e tradução.
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