Na prateleira das histórias ligadas ao mundo do cinema – tanto na vida real, quanto na ficção – existe um grande volume de narrativas sobre garotas simples do interior que chegam à cidade grande para tentar a sorte como modelo, atriz, cantora etc.
Esta espécie de pedra fundamental de Hollywood, a cidade vendida como local onde os sonhos se tornam realidade, é virada do avesso em Demônio de Neon, filme do diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn que tem deixado uma trilha de polêmica por onde passa, desde que foi recebido com vaias no Festival de Cannes deste ano.
Elle Fanning faz a modelo Jesse, a protagonista. Ela é apresentada logo de cara com o olhar paralisado e o pescoço ensanguentado, uma imagem que indica muito do que vem pela frente. A cena é apenas para um editorial de moda, e logo em seguida a garota está se limpando no camarim, onde é abordada pela maquiadora Ruby (Jena Malone). Mais experiente no meio, é ela quem vai servir de guia para a novata, vista como uma estrela em potencial por todos que batem o olho nela.
O conto de fadas vai ganhando contorno de pesadelo à medida que Jesse desperta a inveja de suas colegas. Mas esta é só uma parte da trama bolada pelo cineasta. Não há nenhum personagem de Demônio de Neon que passe incólume pela vida da personagem principal. Ela desperta desejos, obsessões e atos doentios, apenas por sua aparência naturalmente virginal.
A reflexão que Refn parece propor é sobre a busca incessante pelo ideal de beleza, sim, mas também sobre o quanto pode ser perturbador estar diante dela, a ponto de querermos violentar ou sufocá-la.
Não à toa uma das personagens, também modelo, que busca a perfeição em intervenções cirúrgicas, tenta literalmente devorar Jesse, como uma forma de tomar dela justamente aquilo que lhe falta: uma certa aura, uma certa alma. Em pelo menos outros dois momentos a garota chega perto de ser estuprada.
Mas Jesse não é apenas uma menina indefesa e passiva. Pelo contrário, ela toma gosto pelo poder que tem. Beija seu reflexo no espelho e sai figurativamente renascida na sequência seguinte, abrindo esplendorosa as cortinas como se viesse ao mundo pela primeira vez. Porém, como dito anteriormente, este não é um conto de fadas e não demora para eventos trágicos a cercarem.
O cenário artificial cai como uma luva para o estilo do diretor, que gosta de contar suas histórias sempre um tom acima da realidade. Para se ter uma ideia, Drive (2011), seu filme mais famoso e já bastante carregado de afetações (no melhor sentido), é uma obra convencional perto desta. Luzes piscam, glitter voa, contorcionistas aparecem em cena. Há canibalismo, necrofilia, Keanu Reeves como um mal intencionado gerente de hotel e outros horrores que funcionam maravilhosamente bem na atmosfera criada pelo cineasta.
Provocador por natureza – assim como seu compatriota e desafeto declarado Lars Von Trier – Refn poderia ter acabado o filme quando tudo indicava que ele terminaria, com o arco principal se fechando. Mas ele vai além, radicalizando nas simbologias e causando desconforto proposital no público. É neste epílogo que surgem as cenas mais controversas e memoráveis do filme.
As vaias em Cannes não o perturbaram, e nem deveriam. “Criatividade tem a ver com criar uma reação”, é um dos mantras que o diretor repete em entrevistas. E não há como ficar indiferente à Demônio de Neon.
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