A narrativa da mulher famosa 'desencaminhada' não é novidade. E é tema de um livro da americana Sady Doyle
O noticiário de celebridades construiu um repertório relativamente comum à maioria das pessoas de momentos degradantes de famosos. A exposição se intensificou com a internet, e, apesar de escândalos atingirem tanto homens quanto mulheres, há razões para olhar com mais atenção para como os maus momentos das figuras públicas femininas são vistos e registrados pela cultura.
O livro “Trainwreck: The Women We Love to Hate, Mock, and Fear...and Why” (“Trem desgovernado: as mulheres que amamos odiar, ridicularizar e temer...e por quê”, em tradução livre), lançado em setembro de 2016 nos EUA e ainda sem tradução para o português, reflete sobre como os parâmetros do que é um escândalo podem ser diferentes para homens e mulheres com vida pública - e como elas podem ser penalizadas de forma mais permanente por isso.
“Há, sim, homens que se atolam em escândalos. Mas eles têm que se esforçar muito mais pra isso. (...) Quando se trata de uma mulher, não existe tanta margem de erro. Você não precisa ser violenta ou abertamente preconceituosa. Você não precisa ser uma ameaça para quem está ao seu redor. Basta ter um problema com álcool ou estar solteira há muito tempo (...).”
Autora de “Trainwreck: The Women We Love to Hate, Mock, and Fear...and Why”
Em entrevista ao site “Literary Hub”, a autora citou os exemplos do cineasta Roman Polanski, acusado de estuprar uma menor de idade nos anos 1970 e nunca condenado, e do ator Mel Gibson, envolvido em um escândalo de violência doméstica do qual ninguém se lembra.
Ela aponta que, na maioria das vezes, a exposição sofrida pelas celebridades mulheres tem mais a ver com comportamentos autodestrutivos do que destrutivos para outros.
“O distúrbio alimentar de Amy Winehouse não era relevante para ninguém a não ser ela mesma em termos de quem ela estava machucando, mas foi incrivelmente relevante no que diz respeito ao tanto de crueldade e julgamento com que as pessoas inspecionavam o corpo dela e falavam sobre isso”, diz.
O processo ‘trainwreck’
Sady Doyle ficou conhecida nos Estados Unidos quando seu blog “Tiger Beatdown”, que foi criado em 2008 e tratava principalmente de feminismo e comportamento, começou a ganhar projeção.
A partir desse momento, ela passou a sentir o peso de se tornar uma figura pública, muito amplificado pela internet. E a se interessar pelo que considera a transformação do culto às celebridades em uma arma misógina.
| DIRIGIR EM POSSE E SOB INFLUÊNCIA DE COCAÍNA E FURTAR UMA JOIA DE UMA LOJA SÃO ALGUMAS DAS ACUSAÇÕES QUE LEVARAM LINDSAY LOHAN A SER PRESA FOTO: DAVID MCNEW/REUTERS |
Os exemplos de mulheres famosas que passaram por situações de vulnerabilidade intensamente espetacularizadas - o “trainwreck” de que trata o título do livro - são vários. As americanas Lindsay Lohan e Britney Spears são dois casos emblemáticos dessa exposição.
Sua visibilidade gera uma espécie de vigilância e julgamento que policiam os comportamentos e corpos dessas mulheres, como explica Doyle. Para ela, esse controle impõe uma fronteira para a feminilidade e determina que tipo de história é “permitido” a uma mulher viver.
“Mulheres que são figuras públicas são chamadas de loucas, ou falidas, sexuais demais ou não o suficiente” escreveu o editor Noah Berlatsky para o “Literary Hub”.
Figuras históricas
Embora, como Sady Doyle escreve no prefácio de seu livro, a “cara” da celebridade desastrosa contemporânea seja uma mulher jovem, provavelmente loira e estrela de comédias românticas leves, “bêbada, nua ou chorando”, fotografada para a eternidade como a expressão do descontrole, essa narrativa não é nova.
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| A LENDA DO JAZZ BILLIE HOLIDAY FOI PERSEGUIDA POR SEU ENVOLVIMENTO COM DROGAS E SOFREU COM A EXPOSIÇÃO NA IMPRENSA FOTO: REPRODUÇÃO |
Billie Holiday, Marilyn Monroe, Sylvia Plath, Mary Wollstonecraft e Charlotte Brontë, cada qual em sua época, foram pintadas dessa maneira e julgadas avidamente pela opinião pública por conta de seus comportamentos.
No livro, Doyle trata do escândalo que, na época, manchou a reputação de Mary Wollstonecraft, ativista precursora dos direitos das mulheres na Inglaterra do século 18. Wollstonecraft teve um filho sem ser casada e por isso tentou o suicídio.
A autora explica que isso forneceu uma arma muito conveniente a quem argumentava que mudar papéis de gênero corromperia as mulheres. E fez com que, por algum tempo, aquelas que queriam levar adiante as reivindicações de Mary Wollstonecraft fizessem isso de uma forma mais discreta, sem radicalizar no campo da sexualidade, na tentativa de se desassociarem de sua figura.
“As pessoas tentam contornar as partes escandalosas das vidas dessas mulheres ao escrever sobre elas porque elas se tornaram figuras canônicas e respeitadas. E eu acho que mergulhar no sumo, na crueza e na sujeira de suas vidas, no fato de que elas foram seres humanos que estavam tentando moldar um novo tipo de política de gênero em um mundo incrivelmente hostil para elas as torna ainda mais relevantes para nós”
Sady Doyle
Em entrevista ao Literary Hub
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