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segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Você vai me isolar do mundo

Escritora dá voz a 25 mulheres que confessam detestar a maternidade, apesar de amarem seus filhos

ELVIRA LINDO
2 OUT 2016

“Eu vou me jogar na frente do primeiro caminhão que passar”, “vocês vão sentir saudades de mim quando eu não estiver”, “vocês não são normais”, “vou te devolver para os ciganos que te deixaram na porta”, “se seus amigos pularem de uma ponte, você pula também?”, “um dia vou embora e vocês nunca mais vão saber nada de mim”, “um dia me jogo de um penhasco”, “vou te estrangular”, “vou mandar todos vocês para um internato”, “você é mais burro do que uma porta”, “você vai me isolar do mundo”, “você vai me enterrar”. Essas frases, e alguma outra que sua mãe tenha dito – e que, com certeza, ainda está fresca na sua memória – em momentos de desespero, são declarações brutais que demonstravam o quanto estavam fartas, chateadas com uma condição da qual não podiam escapar.

Eu me dediquei a recopilar essas frases esta semana, incentivada por um livro que comecei a ler com certa apreensão: Regretting Motherhood (Arrependida da Maternidade, em tradução livre), da israelense Orna Donath. Confesso que me estranhava o fato de que a própria autora qualifique seu estudo como radical. Pois bem, enquanto lia as confissões de 25 mães, de distintas idades e condições, que detestam a maternidade, apesar de amarem seus filhos, eu ia perguntando aos meus amigos se, alguma vez, tinham sentido que suas mães os renegavam. E, com frequência, respondiam que sim. As frases mais impactantes provinham das mulheres da geração da minha mãe, que desafogavam sua ira sem se importarem com a nossa sensibilidade. Visto o resultado, não parece que aqueles momentos Magnani tenham deixado nossos corações partidos, porque observo que acabam sendo frases fetiche que os irmãos compartilham mais entre risadas do que com rancor. A alta expressividade mediterrânea servia de válvula de escape para elas, e nós, crianças de uma geração mais calejada do que a atual, as incorporamos ao álbum de recordações.

Ter filhos porque essa era sua função

O estudo de Orna Donath é mais profundo do que eu imaginava, embora pudesse ter 50 páginas a menos. A autora fala de mães que nunca se sentiram tocadas pelo instinto maternal, mas que tiveram filhos porque essa era sua função. Na minha opinião, teria sido aconselhável que ela se estendesse mais sobre a pressão social que existe em Israel para que as mulheres tenham ao menos três filhos e contribuam para que o povo judeu não perca a batalha frente à esmagadora taxa de natalidade do inimigo; e também que recordasse os tempos posteriores ao holocausto, quando os sobreviventes tiveram a lógica reação de procriar para compensar as perdas. Isso explicaria essa pressão sócio-política que tem pesado sobre os ombros das israelenses.

Tenho a sensação de que, na Espanha, um país que tende à tragicomédia, as mães tiveram a possibilidade de expressar uma ambivalência emocional: eu amo você mais do ninguém nesse mundo, mas, às vezes, seria tão feliz sem você.

A literatura explorou esse sentimento descrito por Donath quando Madame Bovary prioriza seus delírios românticos em relação à criação de sua filha. Ou quando, em seus contos, Alice Munro revela as obsessões de mães negligentes, que perdem a cabeça e correm, sem pensar duas vezes, atrás de um homem, esquecendo-se, por algumas horas, dos filhos. Ou que estão em outra, e se escondem, na área de serviço da casa, para preservar algo do que eram quando não estavam à disposição de filhos que provocam tanto amor como angústia. No livro ganhador do prêmio Pulitzer As horas, publicado em 1998, o norte-americano Michael Cunningham mostra, através dos olhos de um menino, as características de uma mulher que não suporta a maternidade. Este último exemplo nos inquieta porque, em algum momento de nossa infância, muitos de nós sentimos essa complexidade dos sentimentos maternos. Ela nos amava, mas, às vezes, queria fugir; ela sonhava, em algumas ocasiões, com outra vida, da qual nós não éramos parte.

Algumas resenhas enfatizam que esse livro sobre as mães arrependidas, Regretting Motherhood, rompe “o último tabu”. Eu acho que qualquer pessoa perspicaz detectará, em algumas mulheres, o desconforto provocado por esse papel. Os primeiros que farejam essa estranheza são os filhos, que, apesar de tudo, as amam, e a recíproca é verdadeira em relação às mães sem vocação.

Vivemos em uma época em que surgiu um talibanismo maternal que tende a qualificar como ruins as mães que não desejam assumir a maternidade como uma religião. Pobres daquelas que se veem presas a esse fanatismo; acredito que os filhos se sentiriam mais livres crescendo com uma mãe um pouco negligente do que com uma asfixiante. De qualquer forma, a sociedade começa a entender que há mulheres que não precisam procriar para se sentirem plenamente realizadas. No entanto, suspeito de que o maior problema, na Espanha, seja o das jovens que querem ser mães, mas não encontram o momento certo.

El País

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