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segunda-feira, 10 de julho de 2017

Laerte: heroína trans ou homem vestido de mulher?

Estudo mostra como foi a cobertura da imprensa durante a transição de gênero da cartunista Laerte Coutinho

Por Redação
29/06/2017

Você está louco, Laerte? Essa pergunta foi feita à cartunista Laerte Coutinho em entrevista à Folha de S.Paulo, em 2010. À época, ela estava começando a tornar pública sua transição de gênero que já estava presente explicitamente em seu trabalho.

A partir de então, passou a ser personagem de reportagens sobre transgêneros, sendo retratada pela grande imprensa, sem aprofundamento dos debates, como causadora de polêmicas, um homem vestido de mulher e outros estereótipos. Por outro lado, virou uma espécie de heroína da causa trans em algumas mídias alternativas, onde a questão foi mais desenvolvida.

Essa cobertura foi analisada em uma pesquisa de mestrado defendida no Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), em novembro de 2016. O autor, Tulio Heleno de Aguiar Bucchioni, utilizou dois recortes de publicações entre 2012 e 2015: imprensa hegemônica (jornais brasileiros de grande circulação) e mídias alternativas (portais, blogs e veículos ligados a direitos humanos).

Na ocasião, Laerte era um homem com mais de 60 anos, com uma namorada mulher, em um processo de transição sem intenções de fazer cirurgias. Bucchioni conta que viu uma oportunidade de levantar um debate qualificado sobre gênero: “Havia ali uma pessoa pública experimentando uma desconexão entre sexo biológico, identidade de gênero e desejo sexual”.

Segundo o pesquisador, seu objetivo era entender como as diferentes mídias podem ou não contribuir com o debate de gênero no Brasil. Bucchioni reforça: “Não foi uma pesquisa sobre a Laerte, mas sobre como as mídias representaram esse processo em que ela publicamente foi se afirmando como uma mulher transgênero e vivendo uma série de entendimentos sobre si mesma”.

Esse entendimento foi progressivo. Laerte começou como crossdresser (homem que veste roupas de mulher, mas não é, necessariamente, homossexual), passando depois a se entender como travesti, mulher transgênera, até se denominar atualmente uma mulher social ou uma mulher possível. “Ela criou esse termo, não é uma coisa da academia. Na antropologia, buscamos trabalhar com os conceitos dos nossos interlocutores. Partimos dessas categorizações deles e buscamos entender como eles próprios articulam isso”, esclarece o antropólogo.

Banheiro feminino


O caso do banheiro – no qual Laerte foi repreendida ao utilizar o banheiro feminino em um restaurante – foi um dos abordados na pesquisa. Para o antropólogo, a grande imprensa tratou a cartunista como a causadora da polêmica. “Ela passou de vítima de uma proibição para sujeito de uma polêmica”, avalia.

O pesquisador observou que a grande imprensa cobriu o episódio privilegiando discursos cisnormativos e heteronormativos, caracterizando Laerte como um homem que se veste de mulher, por exemplo. “Ela foi tratada como uma causadora de problema, sendo até associada à pedofilia. A grande imprensa repercutiu muito essa notícia, mas não a problematizou”, explica.


Aqui vale uma explicação: os termos cisnormatividade e heteronormatividade se referem à ideia de que ser cisgênero ou heterossexual é algo normal ou natural, em detrimento de outras sexualidades e identidades de gênero, além de aspectos da vida social desses grupos.

Bucchioni avaliou que há um discurso naturalizado na grande imprensa, no qual há uma associação entre pessoas transgênero e uma suposta anormalidade. “As matérias das mídias hegemônicas caracterizavam a Laerte como alguém que se veste de mulher apenas. E a transgeneridade era resumida a isso, especificamente como um homem que se veste de mulher”, esclarece.


O pesquisador conta que viu uma oportunidade de levantar um debate qualificado sobre gênero: “Havia ali uma pessoa pública experimentando uma desconexão entre sexo biológico, identidade de gênero e desejo sexual”

Uma heroína?

Por outro lado, as mídias alternativas ampliaram o debate além da questão pessoal da cartunista. “As mídias alternativas não a limitaram apenas como uma pessoa trans, mas deram voz a ela por entender que é preciso dar voz de modo complexo às pessoas trans. Então, ela é tida como uma referência no debate dos direitos de pessoas trans”, explica o pesquisador.

A visível ascensão de pautas femininas e de gênero nos últimos anos pode ter contribuído para uma maior exposição da cartunista na imprensa. Por isso, Bucchioni diz que é importante não tomar Laerte como uma heroína, como parte da imprensa alternativa a retratou.

Sua trajetória como figura pública, com alta escolaridade, em um círculo social intelectualizado e progressista não é um caso comum. “Ela tem uma trajetória muito ímpar e individual, mas devemos pensar em como o contexto histórico [de ascensão dos debates de gênero] também propiciou isso tudo”, avalia.

Por Paulo Andrade

USP

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