Em novo livro, pesquisadores abordam questões psíquicas e sociais relacionadas ao tema
Por Raphael Concli
04/07/2017
Dois homens, por volta de 40 e 50 anos, perderam seus empregos. O primeiro, motorista de caminhão, passou a acordar às madrugadas para ir à garagens buscar uma nova oportunidade. Num dia em que chovia forte, resolveu voltar pela manhã para casa e ajudar a esposa. Mas ouviu que ali não era lugar dele, e que deveria voltar a procurar trabalho.
O segundo, motorista de ônibus, teve outra experiência. A esposa lhe disse que poderia aumentar suas horas de trabalho como enfermeira enquanto ele poderia cuidar do trabalho doméstico. Com esta mudança, aprendeu a cozinhar e tomou gosto pela atividade, chegando a preparar um jantar para a mulher e as amigas.
Estas breves narrativas do desemprego ilustram formas distintas das famílias lidarem com este problema em seu interior. A partir de situações simples com estas, muitas dimensões estão em jogo: os papéis de gênero, o lugar de cada um na família, a tentativa de se ressituar após perder o emprego, a flexibilidade com que a situação pode ser enfrentada.
Tomar o fenômeno do desemprego a partir desta perspectiva mais ampla, recorrendo inclusive à histórias de vida que mostrem como indivíduos e famílias lidam com as dificuldades desta condição, é o que o livro Desemprego: uma abordagem psicossocial se propõe a oferecer.
Escrito por Belinda Mandelbaum e Marcelo Afonso Ribeiro, professores do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia (IP) da USP a obra é publicada pela editora Blucher, com lançamento em 28 de junho, às 19 horas, na Livraria da Vila da rua Fradique Coutinho em São Paulo.
Desemprego afeta vínculos sociais
A exclusão e isolamento da pessoa desempregada depende em boa medida do acolhimento familiar – Detalhe de Morning Sun, de Edward Hopper
Os autores partem de uma análise do contexto econômico neoliberal e de como este afeta as condições de trabalho e emprego para então trazerem à tona a questão central de sua abordagem, os problemas psíquicos e sociais que tanto o desemprego como também a precarização das condições de emprego produzem.
Como afirma a professora Mandelbaum, é preciso considerar que o trabalho não é só fonte de renda ou de sustento, mas tem também um papel central na saúde mental e inserção social das pessoas: “Ele é formador de uma rede social que me confere um certo lugar, que me permite estabelecer vínculos que se desdobram em outras coisas”
É justamente esta capacidade de construção de vínculos sociais que o desemprego compromete, produzindo o que se chama de condição de vulnerabilidade psicossocial. Esta é a noção a partir da qual os autores desenvolvem a abordagem dos problemas vivenciados pelos desempregados.
Para além dos vínculos há diversos outros motivos pelos quais o trabalho é importante, como ressalta a professora. Trata-se, por exemplo, de uma atividade fundamental para a manutenção de uma certa rotina no cotidiano. “O trabalho é uma inserção no tempo, na cidade. Em especial o trabalhador pobre, quando perde o emprego, fica isolado em casa”.
A pesquisadora destaca também o fato de o trabalho ser parte de como as pessoas veem e concebem a si mesmas: “ele é um elemento constitutivo da identidade. Aquilo que você faz tem uma incidência profunda na sua identidade, tanto para si mesmo, como perante o social. Freud disse que sobre dois grandes pilares se assenta a saúde mental: sobre o amor e sobre o trabalho”.
Muitas vezes na academia as pessoas têm uma concepção de psicanálise como uma prática burguesa, de consultórios particulares, inacessível para as pessoas que não têm condições financeiras. Mas eu acho que uma psicanálise que possa pensar o impacto dos dos fenômenos socioeconômicos na vida das pessoas, na sua identidade, no seu sofrimento, nas dinâmicas familiares, é uma psicanálise que pode dizer algo para o social.
Mas e a economia informal, ela não poderia ser uma forma de inserção no mundo do trabalho e de propiciar vínculos? A pesquisadora nota que de fato trata-se de uma alternativa que pode diminuir a vulnerabilidade, mas aponta que falar em termos gerais é difícil.
Afinal, considerar a dimensão psicossocial não quer dizer ignorar os aspectos econômicos. É preciso conhecer caso a caso quais garantias e proteções e quais forma de precariedade cada trabalho oferece, lembrando que a economia informal não garante direitos como férias, seguridade social ou 13º salário.
A família e seus papéis
A manutenção de uma rotina e a inserção na cidade são elementos essenciais que o trabalho pode prover – O enigma do horário, de Giorgio de Chirico
A situação de desemprego muitas vezes coloca em jogo estas identidades, inclusive quando ela produz transformações nos papéis que cada pessoa ocupa na família. “Numa cultura machista e patriarcal como a nossa, a identidade do homem está atrelada a sua identidade como trabalhador e provedor”, diz Belinda.
Entretanto, as mulheres se encontram numa posição mais maleável para conseguir trabalho, dada a própria condição precarizada de atividades a elas atribuídas, com baixa remuneração e pouca garantia de direitos, lembra a professora.
A mulher assumir o protagonismo do sustento financeiro da família pode produzir uma ferida na identidade masculina de muitos homens, ou ferida narcísica, como afirma Belinda. Com isso haverá dificuldade em reconhecer as mudanças de papéis, o que pode levar inclusive a dupla ou tripla jornada da mulher caso o marido continue atribuindo a ela a responsabilidade das tarefas domésticas e do cuidado com os filhos.
O espaço da família é também onde muitas vezes se reproduzem outras formas de lidar com o desemprego que podem gerar tensões, conflitos e estresse, como responsabilizar o indivíduo sem emprego por sua condição.
“Uma ideologia muito corrente é que o desemprego é um problema pessoal. Se a pessoa está desempregada é porque ela tem algum problema, porque quer, não se organiza, não tem força de vontade, não estuda o suficiente e deveria voltar para a faculdade, etc. Isso coloca no indivíduo a causa principal do seu desemprego”. O problema, diz Belinda, é que esta maneira de entender a questão não só ignora o papel mais geral da economia, mas pode acabar apenas culpando a pessoa desempregada sem que haja o acolhimento e diálogo que poderiam ajudá-la a enfrentar sua situação.
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