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domingo, 17 de março de 2019

Cientista desmoraliza os obcecados com a “sexualidade azul-ou-rosa”

O novo e fascinante livro de Gina Rippon mostra que o cérebro não tem sexo


Você recebe um convite, no qual se destaca uma pergunta: “Um menino saltitante ou uma linda menina?” A pergunta é o instigador para a “festa de revelação de gênero”, à qual você está sendo convidado por uma gestante que, com mais de 20 semanas de gravidez, já sabe o que você não sabe: o sexo da criança. Depois que você chega, explica a neurocientista cognitiva Gina Rippon em seu novo e fascinante livro, The Gendered Brain (O Gênero do Cérebro), a grande revelação estará escondida em algum item, como um bolo com cobertura branca. Quando cortarem o bolo, você verá o recheio azul ou rosa. Se for azul, é… Sim, você adivinhou. Seja qual for o sexo do bebê, seu futuro é predeterminado pela crença tradicional de que homens e mulheres fazem muitas coisas de modo diferente, pior ou melhor, porque têm cérebros diferentes.

“Espere um pouco!”, diverte-se Gina Rippon, que se interessa pelo cérebro humano desde que era criança. “A ciência avançou. Estamos no século XXI!” Sua declaração comedida não combina com a imagem criada por seus críticos, que a chamam de “neuronazista” e de uma “bruxa velha” com “fetiche de igualdade”. Eu, de minha parte, estava preparada para um encontro com uma intelectual que me esnobaria com seu conhecimento. Rippon é paciente, embora haja em sua voz uma certa urgência ao explicar como é vital, como é modificador da vida, que finalmente rompamos – e descartemos – os estereótipos sexistas e a codificação binária que nos limitam e prejudicam.
Para Gina Rippon, que é gêmea, os efeitos da estereotipagem vieram rapidamente. Seu irmão, que tinha dificuldade de aprendizado, foi enviado para um internato católico aos 11 anos. Ela, por sua vez, foi mandada pelos pais para um convento católico. “A escola não ensinava ciência. As alunas eram educadas para ser freiras, esposas de diplomatas ou mães. “A psicologia”, indica ela, “foi o mais perto que eu cheguei do estudo do cérebro. Eu não tinha as matérias necessárias para fazer medicina. Eu queria ser médica.”
“Estamos no século XXI”, diz a doutora Rippon. Tempo de derrubar a tirania do azul-ou-rosa.
Um doutorado em psicologia fisiológica e o enfoque em processos cerebrais e esquizofrenia se seguiram. Hoje, a cientista nascida em Essex (sudeste da Inglaterra) é professora emérita de neuroimagiologia cognitiva na Universidade Aston, em Birmingham (Reino Unido). Seu irmão é artista. Quando ela não está no laboratório usando técnicas avançadas de imagiologia para estudar transtornos do desenvolvimento, como autismo, viaja pelo mundo derrubando o mito “pernicioso” das diferenças entre os sexos: a ideia de que você pode “definir o sexo” de um cérebro ou que haja diferenças entre o cérebro masculino e o feminino.
É um argumento científico que ganhou força, incontestado, desde o século XVIII, “quando as pessoas gostavam de discutir como eram os cérebros do homem e da mulher – antes que se pudesse sequer examiná-los. Eles inventaram ideias e metáforas que se enquadravam à situação geral e à sociedade e deram origem a uma educação diferente para meninos e meninas”.

Há diferença baseada apenas no sexo?

Gina Rippon analisou dados sobre diferenças sexuais no cérebro. Ela admite que, como muitos outros, inicialmente procurou essas diferenças. Mas não conseguiu encontrar nenhuma realmente séria, e outras pesquisas começavam a questionar a existência dessas diferenças. Por exemplo, quando se levavam em conta quaisquer diferenças nos tamanhos dos cérebros, as diferenças sexuais “bem conhecidas” em estruturas-chave desapareciam. Foi quando caiu a ficha: talvez estivesse na hora de abandonar a antiga busca por diferenças entre cérebros de homens e cérebros de mulheres. Há alguma diferença significativa baseada apenas no sexo? A resposta é não, diz ela. Sugerir outra coisa é “neurotolice”.
“A ideia de cérebro masculino e cérebro feminino sugere que cada um é uma coisa tipicamente homogênea e que quem tem um cérebro masculino, digamos, terá o mesmo tipo de aptidões, preferências e personalidades que todos os outros com aquele ‘tipo’ de cérebro. Sabemos que isso não ocorre. Estamos no ponto em que precisamos dizer: ‘Esqueça o cérebro masculino e feminino; é uma distração, é impreciso’. E também possivelmente perigoso, porque é usado como um gancho para dizer: ‘Ora, não adianta as meninas fazerem ciência porque elas não têm um cérebro científico, ou os meninos não devem ser emotivos e devem querer liderar’.”
A pergunta seguinte foi: o que então orienta as diferenças de comportamento entre meninas e meninos, homens e mulheres? Nosso “mundo de gêneros”, diz ela, molda tudo, da política educacional e das hierarquias sociais a relacionamentos, identidade própria, bem-estar e saúde mental. Se isso parece um conhecido argumento de condicionamento do século XX, é mesmo – exceto que hoje é acompanhado de conhecimento sobre plasticidade cerebral, o que só viemos a perceber nos últimos 30 anos.

O cérebro aprende e muda

“Hoje é um dado científico”, diz ela, “que o cérebro é moldado a partir do nascimento e continua a ser moldado durante o ‘abismo cognitivo’ na idade avançada, quando nossas células cinzentas começam a desaparecer. Então aí vai o argumento da ‘biologia é destino’: efetivamente, você tem o mesmo cérebro desde o nascimento – ele fica um pouco maior e mais conectado, mas você tem o ponto final do desenvolvimento determinado por um projeto biológico que se desdobra com o tempo. Com a plasticidade cerebral, o cérebro é muito mais uma função de experiências. Se você aprende uma técnica, seu cérebro muda, e continuará mudando.”
Essa tese foi demonstrada em estudos com motoristas de táxi negros que têm de aprender os 320 principais trajetos em Londres, por exemplo. “O cérebro aumenta e diminui muito mais do que nós percebemos. Por isso, se você não teve experiências particulares – se quando menina você não ganhou Lego, você não tem o mesmo treinamento espacial que outras pessoas no mundo têm.”
Se, por outro lado, você recebeu essas tarefas espaciais com frequência, você será melhor nelas. “Os caminhos neurais mudam, tornam-se caminhos automáticos. A tarefa realmente fica mais fácil.”
A plasticidade neural atira pela janela do laboratório a polaridade natureza/educação. “Fazer parte de um grupo de interação social é um dos principais motivadores de nosso cérebro.” O cérebro também é previdente e pensa antecipadamente de maneira que não percebíamos antes. Como um GPS, ele segue regras, é faminto delas. “O cérebro é um caçador de regras”, explica Gina Rippon, “e adquire suas regras do mundo exterior. As regras alteram como o cérebro funciona e como a pessoa se comporta.” E o resultado das regras conforme o gênero? “A ‘diferença de gêneros’ torna-se uma profecia que se autorrealiza.”

Comportamentos não são prescritos por sexo biológico

A cientista costuma fazer palestras em escolas. Ela quer que as meninas tenham cientistas importantes como modelos, e quer que todas as crianças saibam que suas identidades, capacidades, conquistas e comportamento não são prescritos por seu sexo biológico. O “bombardeio de gênero” nos faz pensar o contrário. Bebês meninos vestidos com macacões azuis e as meninas de rosa é a codificação binária de uma situação que resiste à evidência científica. A “rosificação”, como diz Gina Rippon, tem de acabar.
Os pais nem sempre gostam do que escutam. “Eles dizem: ‘Eu tenho um filho e uma filha, e eles são diferentes’. E eu digo: ‘Eu tenho duas filhas, e elas são muito diferentes’. Quando você fala sobre identidade masculina e feminina, as pessoas estão muito ligadas à ideia de que homens e mulheres são diferentes. Pessoas como eu não são negadoras da diferença sexual”, continua. “É claro que há diferenças sexuais. Anatomicamente, homens e mulheres são diferentes. O cérebro é um órgão biológico. O sexo é um fator biológico. Mas não é o único fator, ele se combina com muitas variáveis.”
O sexo é um fator biológico, mas não é o único. Variáveis como a educação ajudam a defini-lo.
Eu lhe pergunto sobre um momento comparável, divisor de águas, na história do conhecimento científico, para avaliar a importância do seu insight. “A ideia da Terra girando ao redor do Sol”, ela rebate.
Abandonar certezas ancestrais é assustador, admite ela, ao mesmo tempo otimista e temerosa sobre o futuro. “Estou preocupada com o que o século XXI está fazendo, como está tornando o gênero mais relevante. Precisamos examinar onde estamos mergulhando o cérebro dos nossos filhos.”
Nossa época pode ser a da autoimagem, mas não estamos prontos para deixar a personalidade individual emergir, independentemente das expectativas culturais sobre o sexo biológico da pessoa. Essa desconexão, diz Gina Rippon, é exagerada nos homens, por exemplo. “Sugere que há algo errado em sua autoimagem.” O cérebro social quer se enquadrar. O GPS recalibra-se conforme as expectativas. “Se eles são conduzidos por uma estrada que leva a danos à própria pessoa ou até ao suicídio ou à violência, o que os leva para lá?”
No lado positivo, nossos cérebros plásticos são bons alunos. Só precisamos mudar as lições de vida. Ou, como escreveu  Gina Rippon, num capítulo voltado para o futuro: “Com a contribuição de animadores progressos na neurociência, a distinção clara e binária desses rótulos está sendo contestada – passamos a perceber que a natureza está inextricavelmente ligada à educação. O que costumava ser considerado fixo e inevitável está sendo revelado como plástico e flexível; os poderosos efeitos dos mundos físico e social na transformação da biologia estão sendo revelados. O século XXI não está apenas discutindo as velhas respostas – está contestando a própria pergunta”.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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