O governo brasileiro se posicionou contra menções ao direito ao acesso universal a serviços de saúde reprodutiva e sexual presentes em um documento elaborado por uma conferência da ONU (Organização das Nações Unidas) por entender que estas expressões podem dar margem à "promoção do aborto".
O posicionamento foi proferido na sexta-feira (22), durante o encerramento da 63ª sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher, o maior e mais importante encontro das Nações Unidas sobre direitos femininos, que reuniu mais de 5.200 representantes da sociedade civil e 1.800 delegados de governo em Nova York entre 11 e 22 de março.
O texto lido pela diplomacia brasileira na sessão de sexta-feira faz críticas ao rascunho das conclusões que foram fruto dos debates na comissão. O governo brasileiro, no entanto, decidiu, apesar das ressalvas, aprovar essas conclusões, embora tenha ressaltado que as veja apenas como uma "solução de compromisso, que não reflete bem as posições de todos os Estados-membro, incluindo o nosso (Brasil)".
Nas ressalvas apresentadas pelo Brasil, o país se coloca - entre outros pontos - contra trechos da conclusão que incluem as frases "garantir acesso universal a serviços de saúde sexual e reprodutivos", por entender que essas expressões também podem ajudar a promover o aborto.
Em outro trecho, o Brasil também afirma ser necessário evitar qualquer "interferência do Estado que tenha o objetivo de dissolver ou enfraquecer a estrutura da família tradicional".
No posicionamento, a diplomacia brasileira também adota outras posturas críticas a políticas de liberalização do aborto, dizendo "afirmar a necessidade de proteção da mulher durante a gestação e a vida intrauterina de mulheres e homens".
Gênero e mortalidade materna
O rascunho das conclusões da 63ª sessão da Comissão sobre o Situação da Mulher foi objeto de longas discussões entre os delegados do encontro, que tinha como objetivo declarado debater os meios para que os países garantam "proteção social, serviços públicos e infraestrutura sustentável para promover os direitos e igualdade para mulheres e meninas".
Uma versão do rascunho com as conclusões negociadas circulou entre os participantes em 17 de março. Rascunhos do tipo são avaliados, então, por governos e demais participantes, como integrantes de ONGs, para que se chegue a um acordo sobre a versão final do texto da conferência.
A adoção das conclusões dessa Comissão não é obrigatória para os países-membros, mas elas servem como recomendação aos respectivos governos, além de organismos internacionais e entidades civis.
Em uma instrução enviada a seus diplomatas antes da sessão final, o governo brasileiro avaliou o rascunho das conclusões, afirmando que "a delegação brasileira deverá unir-se ao consenso em torno das conclusões acordadas" na sessão, mas determinou que fossem feitas ressalvas a elas, elencando uma série de explicações.
Uma das versões das instruções enviadas pelo Itamaraty aos diplomatas das missão brasileira na ONU continha ressalvas ainda mais duras contra as conclusões da conferência. No documento a que a BBC News Brasil teve acesso e que foi posteriormente alterado, o governo brasileiro chegava a rejeitar um trecho das conclusões que dizia que "prevenir a mortalidade e morbidade (quando quase há morte) maternas é uma das prioridades em direitos humanos para todos os países", por entender que tal "expressão pode dar margem à promoção do aborto". Esta menção, no entanto, foi suprimida do discurso do representante brasileiro.
Migração e mudança climática
Além das questões do acesso à saúde reprodutiva, o governo brasileiro também se colocou contra menções às mudanças climáticas no texto discutido na ONU, por entender que essa questão "não tem correlação com o objeto" de discussão da conferência.
A presença de trechos que discutiam imigração também gerou oposição por parte do governo brasileiro.
No posicionamento lido na ONU, o Brasil diz rejeitar um trecho das conclusões que diz "reconhecer a importância das mulheres trabalhadoras migrantes com todos os níveis de habilidades, independente de seu status migratório".
Para o Itamaraty, a expressão "independente de seu status migratório" pode "incentivar a prática de imigração ilegal e questionar o direito dos Estados de regular suas leis e políticas migratórias".
Insatisfação com comissão da ONU
No texto lido pelo representante brasileiro na sessão final da Comissão, na sexta, o governo disse não estar satisfeito com o resultado do encontro.
"Durante as negociações do rascunho, a delegação brasileira buscou, de boa-fé, atingir um texto justo e equilibrado, que reflita nossas visões comuns sobre os temas desafiadores em discussão. Mas devo enfatizar que não estamos satisfeitos com o resultado", disse o representante brasileiro.
O governo, então, se compromete "em um esforço de boa vontade" a se juntar ao consenso sobre o rascunho, dizendo, no entanto, considerar as conclusões "na melhor das hipóteses" como uma "solução de compromisso, que não reflete bem as posições de todos os Estados-membro, incluindo o nosso (Brasil)".
"Nós enfatizamos a insatisfação com a perspectiva geral adotada ao longo do documento, que tende a favorecer abordagens focadas no papel do Estado no lugar de (favorecer) o papel do setor privado, família e indivíduos".
"Nós também nos preocupamos com o desvio de pontos-chave do texto, que buscam estimular uma agenda com a qual não concordamos. O governo brasileiro não vai mais apoiar o uso de termos e expressões dúbios que causaram confusão e desentendimentos", diz o posicionamento brasileiro.
Em outro trecho, o governo brasileiro critica o "uso alternado das expressões 'gênero' e 'sexo'".
"Nós consideramos que, para esses propósitos, gênero é sinônimo de sexo, e sexo é definido biologicamente como homem e mulher."
Nova posição pró-Israel
Este não foi o primeiro posicionamento brasileiro expresso nos últimos dias que vai de encontro a posições adotadas anteriormente pelo país, em um sinal das mudanças promovidas na política externa pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo chanceler, Ernesto Araújo.
Na semana passada, em uma mudança histórica na sua diplomacia, o Brasil votou a favor de Israel em distintas resoluções em pauta no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra.
Em uma das votações que mais chamaram a atenção de diplomatas, o Brasil foi um dos oito países a votarem contra a adoção de um relatório que apura denúncias de violações aos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados, incluindo a resposta das tropas israelenses a manifestações ocorridas em 2018 na Faixa de Gaza.
Os protestos se estenderam por meses e, em seu dia mais mortífero, 14 de maio, deixaram 78 palestinos mortos. O relatório acabou aceito pelo Conselho de Direitos Humanos com 23 votos a favor, 14 abstenções e os oito votos contrários.
Em uma segunda votação, o Brasil votou contra resolução que tratava da ocupação israelense das Colinas de Golã, consideradas território sírio. E, por fim, o Brasil se absteve na votação que tratava da expansão de assentamentos israelenses em territórios reivindicados pela população palestina.
O governo brasileiro, no entanto, manteve posicionamento favorável na votação a respeito do direito à autodeterminação dos palestinos.
"Apoiar o tratamento discriminatório contra Israel na ONU era uma tradição da política externa brasileira dos últimos tempos. Estamos rompendo com essa tradição espúria e injusta, assim como estamos rompendo com a tradição do antiamericanismo, do terceiromundismo e tantas outras", escreveu o chanceler Araújo em seu perfil no Twitter na sexta-feira.
*Colaborou Matheus Magenta, da BBC News Brasil em São Paulo
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