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quinta-feira, 14 de março de 2019

Estresse pós-traumático, o drama dos sobreviventes de tragédias



Estudante se emociona em velório coletivo das vítimas do massacre em Suzano
Estudante se emociona em velório coletivo das vítimas do massacre em Suzano REUTERS
Em situações de massacres armados, como o ocorrido nesta quarta-feira em Suzano (SP), não são apenas as pessoas diretamente alvejadas que são afetadas. Outros indivíduos expostos à violência podem enfrentar consequências, mesmo que fisicamente tenham saído ilesos: é o transtorno do estresse pós-traumático. Mas tampouco é obrigatório que isso ocorra, adverte o psicólogo espanhol Miguel Ángel Pérez Nieto, diretor da faculdade de Educação e Saúde da Universidade Camilo José Cela, de Madri. “Nem todos acabam desenvolvendo estresse pós-traumático, porque há fatores de proteção, como o entorno e o apoio social, que podem ajudar a sedimentar o ocorrido, especialmente nas primeiras horas, dias e semanas depois do fato.”

Mas é verdade que muitas vezes as crianças (e também os adultos) que presenciam uma situação na qual percebem que há um risco para sua integridade física – “E isto é muito importante, porque não basta ver algo, é preciso entender que isso poderia ter acontecido com você”, esclarece Pérez Nieto – sofrem um impacto emocional enorme. “A experiência direta é um critério necessário para entender o desenvolvimento desse estresse pós-traumático; especialmente em menores de seis anos, será muito importante que tenham tido uma experiência direta com o fato.”
O primeiro sintoma, segundo o psicólogo, geralmente é a re-experimentação: um alto nível de ideias intrusivas em forma de pensamentos obsessivos, brincadeiras recorrentes contínuas, pesadelos... Também costuma ocorrer uma elevada emotividade negativa, que se traduz em que a criança fique numa posição de hipervigilância contínua, com muitas reações de sobressalto, dificuldades para se concentrar e dormir e, em geral, com surtos de fúria, de irritabilidade etc..
“Também você costuma encontrar, à medida que o problema avança, uma redução do seu estado de ânimo que acarreta um menor interesse em fazer coisas que você gostava de fazer, aumento do medo, da culpa, da tristeza, da vergonha, da confusão... E inclusive socialmente as crianças tendem a ficar mais retraídas ou mais esquivas”, enumera Pérez Nieto. A tendência a evitar ou fugir de tudo aquilo que possa recordar o massacre é outro sintoma. Por último, e não é tão certo que apareça – quando ocorre, é geralmente nas etapas iniciais pós-trauma, “pode se dar certo grau de traços dissociativos, como a sensação de que a pessoa não está onde está, ou de que isso não lhe ocorreu... Tem a ver com a dificuldade em entender que isso realmente ocorreu, devido à alta carga emocional que o indivíduo apresenta.”
Além disso, existe uma variante relacionada à dissociação. “Às vezes a sintomatologia pode começar a aparecer em torno de seis depois do incidente, e é mais comum em pessoas que, quase de maneira automática, controlaram essas emoções; há um momento em que necessitam do processo de aprendizagem, e tudo volta a sair.”
Pérez Nieto observa também que as crianças costumam ter uma capacidade de desenvolvimento e aprendizagem que as faz superar o trauma melhor do que imaginamos. “Conheço menos estudos vinculados a violência e tiroteios; em abusos sexuais, se observou que o percentual de menores capazes de superá-lo é significativo: em torno de 50%”, afirma.
Qualquer indivíduo, e em função de sua capacidade nos primeiros dias de compartilhar o ocorrido, entender o que aconteceu e expressar suas emoções, e do apoio que receba socialmente, pode decantar essa experiência e de alguma forma integrá-la à sua vida, embora isso nem sempre ocorra. “Quem não supera apresenta essa sintomatologia de forma muito continuada e isso costuma ter um impacto muito alto no desenvolvimento cognitivo e social posterior, especialmente no desenvolvimento social e emocional da criança”, explica o psicólogo. “Por isso uma intervenção adequada que permita reintegrar toda a experiência dentro de seu desenvolvimento social é fundamental.”

Epidemia americana

Episódios trágicos como o desta semana na Grande São Paulo são especialmente comuns na sociedade norte-americana. Desde o início do século XXI, ou seja, nos últimos 18 anos, foram registrados 220 incidentes com armas de fogo em escolas primárias e secundárias dos Estados Unidos, aos quais estiveram expostos mais de 218.000 estudantes, segundo um levantamento publicado pelo jornal The Washington Post com dados colhidos até maio de 2018 e complementado com uma pesquisa do EL PAÍS abrangendo até 31 de outubro do ano passado. Esse número não inclui ataques que, embora envolvessem estudantes, ocorreram em espaços não educacionais, como o recente atentado em um bar de Califórnia durante uma festa universitária. Ao todo, desde o começo do século foram registrados em média 10 tiroteios por ano nas escolas dos EUA. O ano mais tranquilo nesse sentido foi 2002, com cinco incidentes, e o mais violento foi 2018: 23 casos nos 10 primeiros meses.
Esses ataques custaram a vida de 128 pessoas e deixaram 258 feridos, a maioria estudantes. Além disso, em 29 ocasiões o próprio atirador também morreu porque se suicidou. Somente no ataque ao colégio público Oxnard Honor High, em 10 de janeiro de 2001, na Califórnia, o autor foi abatido pela polícia. Tratava-se de um garoto de 17 anos que não era aluno do local, mas frequentemente o rondava, conforme indicaram fontes da investigação na época.
Os Estados Unidos são um país com 326 milhões de habitantes e 393 milhões de armas pequenas, segundo levantamento de 2018 da ONG Small Arms Survey. Isso representa 40% do total mundial, num país com apenas 4% da população da planeta. Possui-las é um direito contemplado na segunda emenda à Constituição dos EUA, e um terço da população adulta afirma ter pelo menos uma arma, e outros 11% dizem que não possuem nenhuma, mas não descartam adquirir no futuro.
Diversos estudos vinculam a adoção de regras mais rigorosas a uma redução no número de homicídios e assassinatos de crianças. Mas, apesar da crescente pressão social para que se restrinja o comércio de armas nos EUA, o fato é que até agora a lei não foi modificada. Quem defende seu uso argumenta que muitas das matanças são cometidas com arsenal adquirido ilegalmente, e que por isso modificar a lei não serviria de muita coisa.

Os mais graves

A maior matança registrada desde a ocorrida em Columbine, em 1999, foi a do colégio Sandy Hook, numa pacata localidade de Connecticut, em 14 de dezembro de 2012. Naquela manhã, o atirador Adam Lanza, de 20 anos, matou 20 alunos e 6 funcionários da escola e tirou a própria vida em seguida. Anos depois, uma investigação da revista Science revelou que uma das consequências daquele tiroteio foi um aumento nas vendas de armas: até três milhões de unidades acima do esperado nos cinco meses posteriores à tragédia. Esse incremento coincidiu com um maior número de mortes por disparos acidentais, embora não tenha sido possível estabelecer uma relação de causa e efeito.
O segundo ataque com mais vítimas ocorreu em 14 de fevereiro de 2018 no colégio Marjorie Stoneman Douglas, em Parkland, Flórida. O autor foi Nikolas Kruz, um ex-aluno de 19 anos que havia sido expulso por indisciplina. Entrou no local munido de bombas de fumaça e um fuzil de assalto com o qual disparava indiscriminadamente. Matou 17 alunos e feriu outros tantos: ao todo, 34 afetados. Em março, promotores pediram a pena de morte para ele.

Idades precoces

Embora em um pequeno número de casos não haja informações sobre a idade do atirador, com base nos dados disponíveis é possível observar que a idade média dos menores de idade é muito baixa: 15 anos, ou 16 se os adultos são incluídos na conta, pois só 44 dos 220 agressores tinham mais de 18 anos no momento do ataque.
Os mais jovens são dois meninos de seis anos. Um deles provocou um acidente no qual feriu dois colegas no refeitório da escola primária Betsy Ross, em Houston (Texas), em 19 de abril de 2011. O menino levou uma arma carregada de casa (que é onde a maioria as encontra, segundo a análise do Post) e, ao se sentar para almoçar, ela caiu do seu bolso. O menino também se feriu, mas sem gravidade. O outro incidente ocorreu em 29 de fevereiro de 2000 no colégio Buell, em Flint (Michigan). O menor matou um colega de classe diante de outros 22 estudantes, aparentemente porque não simpatizava com a vítima, embora os motivos não tenham sido completamente esclarecidos.
Apesar de tudo, uma pesquisa do Pew Research Center feita no começo de 2018 concluiu que apenas uma ligeira maioria das pessoas consultadas (55%) se oporia a que os professores e funcionários portassem armas, incluindo 36% que disseram que se oporiam energicamente. “Ainda assim, uma minoria considerável (45%) disse que era partidária de permitir que os professores fossem armados aos colégios”, diz o estudo.
Re-experimentação, alta emotividade negativa, tendência a evitar situações e dissociação são os sintomas mais frequentes entre as vítimas e testemunhas de um massacre

Perfil do atirador: estudante e homem

Outro dado significativo tem a ver com a cor de pele: embora só 16,6% dos alunos norte-americanos sejam negros (o restante é composto por brancos, hispânicos e outras etnias), eles representam 34,4% dos alunos que vivenciaram um tiroteio como testemunhas ou que foram feridos ou morto nesses incidentes.
Como no caso de Suzano, quase sempre os autores dos massacres eram alunos ou ex-alunos das escolas atacadas. Os que não correspondem a esse perfil são exceções muito variadas: o namorado ou ex-namorado de uma aluna, pais, irmãos, o marido de uma professora, pessoal administrativo, guardas de segurança e policiais, um professor demitido ou alunos de escolas rivais.
Da investigação também se depreende que 29 casos foram de disparos acidentais, 48 indiscriminados, 7 suicídios públicos, 7 incidentes não esclarecidos, e os demais (129 casos) foram planejados contra uma pessoa ou pessoas específicas. Na maioria das vezes, o agressor era do sexo masculino – só houve 10 casos cometidos por mulheres, das quais cinco eram menores de idade.

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