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terça-feira, 10 de março de 2020

Brasil ignora os filhos, vítimas invisíveis da violência doméstica e do feminicídio

Crianças e jovens que testemunham a violência diariamente podem reproduzir padrão dos pais em seus relacionamentos no futuro.
(Ilustrações por Helô D’Ângelo)
HuffPost Brasil
Por Andréa Martinelli
Stephanie Aracelis, de 24 anos, diz ter perdido a mãe em um momento muito significativo de sua vida. “Eu tinha 16 anos e precisava muito do apoio dela. Ela sempre dizia que se orgulhava muito das coisas que eu fazia, falava que me via trabalhando, conquistando as minhas coisas. E ela não pode participar de nada disso.”

Stephanie é filha de Andréa Sousa, cuja morte foi um dos casos que serviu de base para a formulação da Lei do Feminicídio no Brasil, que completa exatos 5 anos nesta segunda-feira (9).
Ela é também uma dos milhares de filhos que se tornaram órfãos pelo feminicídio no Brasil. Crianças e jovens não raramente presenciam toda a rotina de violência entre os pais. E, no lado mais perverso desse tipo de crime, perdem a mãe pelas mãos do pai. 
No caso de Stephanie, a mãe foi morta pelo ex-cunhado, seu tio, em 2012. “Eu perdi a minha mãe, mas meus primos também foram agredidos junto com a minha tia. Ele chegou a envenenar o suco deles com veneno para rato. Eles foram também agredidos a vida inteira, desde a infância”, lembra.
Convivem com a violência que não é diretamente praticada contra a criança, mas a atinge de diversas formas. Elas são vítimas e são invisíveis.
Silvia Chakian, promotora de justiça do MP-SP, membro do GEVID (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica)
“Mulheres que sofrem  violência doméstica, muitas vezes, são mães”, destaca Silvia Chakian, promotora de justiça do MP-SP, membro do GEVID (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica). “E os filhos estão dentro desse ambiente doméstico e convivem com a violência que não é diretamente praticada contra a criança, mas a atinge de diversas formas. Elas são vítimas e são invisíveis.”
Quando Edmauro Gamarra, 30, matou a ex-companheira Airyfer Castro, 22 anos, a facadas em 2018, a filha do casal, então com sete anos, presenciou o assassinato brutal. Segundo notícias veiculadas na época na cidade de Aquidauana, no Mato Grosso do Sul, a menina chegou a pedir que o pai parasse. 
“Não tem mais Natal, não tem Ano Novo, não tem aniversário. A criança chora porque quer a mãe. Ela acorda chorando e fala do pai. É muito difícil. Não desejo para o meu pior inimigo”, conta Geyse Ortega, tia de Airyfer. Além da ex-companheira, Edmauro matou Higor Quintana, então namorado de Airyfer.
Um ano e seis meses após cometer o assassinato, ele foi condenado a 62 anos e três meses de prisão por homicídio qualificado duplo com o agravante de feminicídio, sem possibilidade de defesa da vítima. A pena do assassino foi aumentada pela presença da filha no local do crime.
Os avós maternos, após o crime e a condenação do pai, reivindicaram a guarda da neta. Hoje, ela faz tratamento psicológico, pratica esportes e frequenta a escola. 

Quando a violência é testemunhada na infância

De acordo com um levantamento realizado nas capitais do Nordeste e publicado em 2016, cada vítima de feminicídio deixa, em média, dois órfãos. A Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, publicado pela Universidade Federal do Ceará (UFC), em parceria com o Instituto Maria da Penha, é o único sobre o tema no País e avalia a relação da violência com os filhos das vítimas e as suas consequências.
Um dos resultados mais alarmantes aponta a chamada “transmissão intergeracional da violência”: ou seja, o quanto a violência observada e testemunhada na infância pode ser perpetuada na vida adulta. Segundo o estudo, a criança passa por um processo de aprendizagem em que compreende a violência como a única resposta a uma situação de conflito.
″É muito comum a gente ver, por exemplo, crianças que presenciam a violência doméstica dentro de casa e, mesmo na infância, elas se manifestam, também, de uma forma muito violenta. Elas entendem que essa é a forma de se relacionar”, explica Alessandra Cássia da Silva, psicóloga do CNRVV (Centro de Referência às Vítimas da Violência do Instituto Sedes Sapientiae), que trabalha no atendimento direto a crianças e adolescentes.
Segundo a sondagem, 4 em cada 10 mulheres que cresceram em um lar violento sofreram o mesmo tipo de violência na vida adulta, o equivalente a 42%. Entre as que não lembravam se a mãe sofreu violência, 22% foram agredidas.
De acordo com o estudo, 20,1% de mulheres souberam de agressões sofridas pelas respectivas mães durante a infância. Desse grupo, 88,7% presenciou efetivamente a violência. Além disso, 12,3% das mulheres reportaram que o parceiro ou ex-parceiro sabia que a própria mãe foi agredida.
Chakian destaca a diferença de impacto para meninos e meninas: “Existem alguns estudos identificando que essas crianças podem ter algum tipo de transtorno, dificuldade de relacionamentos - de meninas entenderem isso como algo natural na relação e buscarem relacionamentos com esse padrão abusivo e que meninos reproduzem esse padrão de comportamento violento nos seus relacionamentos futuros”.
Também nesse aspecto, a diferença racial está presente na pesquisa da UFC. Uma a cada 4 entrevistadas negras afirmou se lembrar de episódios de violência contra sua mãe. Já entre as entrevistadas brancas, o número é de 1 a cada 5.


Em média, cada morte provocada por violência doméstica deixa dois órfãos, mas em 34% dos casos, o número é maior ou igual a três crianças. Além disso, 55,2% das mães agredidas contaram que os filhos presenciaram a cena de violência ao menos uma vez. Nesse grupo, 24% das mulheres afirmaram que os filhos também foram agredidos pelo parceiro ou ex-parceiro.
“Existe a violência que a gente reconhece como testemunhal. A criança é testemunha de um ato violento e entra também como um tipo de violência psicológica. A criança e o adolescente vivenciam a violência. Em si, ela não é alvo, mas vive isso dentro do quotidiano dela”, afirma a psicóloga.
A pesquisa recomenda priorizar ações que busquem minimizar o impacto desse problema nas futuras gerações e “considerar a família e suas complexas interrelações econômicas e sociais como o locus fundamental onde se criam e perpetuam as relações de poder que determinam o uso de violência doméstica como estratégia ‘instrumental’ do patriarcalismo”.
“O principal ponto deveria se concentrar na questão dos relacionamentos e de como essa criança, esse adolescente, vai conseguir se relacionar com o mundo a partir dessa vivência de violência”, aponta Alessandra. ”É preciso, também, pensar na criança. Senão a gente não trabalha com a causa, só com o sintoma. E se a gente não faz um trabalho com essas crianças, com esses testemunhos, talvez no futuro eles se tornem agressores.”
Alice Bianchini, integrante atual do consórcio que ajudou a elaborar a Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006 e vice-presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), no entanto, pontua que a criança não necessariamente vai repetir o padrão visto entre os pais. “Ela também pode ter outros exemplos. Quando ela percebe que é mais feliz fora de casa, ela consegue distinguir que a violência não é legal.”

‘Tive muito medo de ter um relacionamento violento com alguém’

Stephanie diz ter sido “muito difícil” se relacionar com alguém depois do que aconteceu com sua mãe e com sua tia. “O que aconteceu com a minha mãe e com a minha família mudou a minha vida em diversos aspectos. Eu tive muito medo de ter um relacionamento violento com alguém”, conta.
Sua mãe, Andréa, foi morta pelo ex-cunhado quando foi socorrer a irmã após uma série de agressões e ameaças. Casada há 20 anos, a tia de Stephanie, mãe de três filhos, vivia uma rotina de violência doméstica e tinha decidido pela separação.
“Ele [marido da tia] foi criando um ciúme doentio, já tinha feito várias ameaças. Minha tia sempre contava com a ajuda da minha mãe e do irmão mais novo delas. Eu lembro que, junto com os meus primos, eu ficava muito assustada. Em vários momentos minha mãe trazia meus primos para casa, porque as situações de violência eram muito intensas”, conta. 
O assassino atropelou Andréa - quando tentava, na verdade, atingir a ex-mulher. Após o atropelamento, ele fugiu com o carro. Ferida, Andréa foi levada ainda com vida ao hospital, mas dias depois teve morte cerebral.
“Na época do cursinho, várias vezes eu me trancava no banheiro para chorar. Mas foi só depois de um ano e meio, quando eu passei na faculdade e comecei a trabalhar, que eu consegui sentir, de fato, a morte da minha mãe. Foi a minha fase de luto mais intensa”, conta Stephanie. 
No caso de Andrea, o julgamento do agressor demorou cerca de um ano e meio. Ele foi condenado a 29 anos de prisão por tentativa de homicídio contra a ex-mulher e pelo homicídio da ex-cunhada.
“Se minha mãe não tivesse morrido, teria sido a ex-mulher dele. No fim das contas, a intenção dele foi uma só”, diz. “Saber que a história da minha mãe contribuiu para uma vitória, de certa forma, me conforta.” 

Quando o pai é o agressor e a vítima é a mãe

Assim como no caso da filha de Airyfer Castro, os esforços após um crime de feminicídio é para que a guarda da criança continue com a família da mãe. Porém, não há nenhuma garantia legal de que a criança não voltará a conviver com o agressor ― eventualmente solto após a condenação ― ou seja acolhida pela família dele. Caso não haja acolhimento, a depender da idade da criança, ela é encaminhada para a adoção ou para abrigos.
“A guarda pode ser reivindicada por tios, avós, alguém que tenha condições não só financeiras, mas psíquicas de lidar com o que aconteceu com ela. Geralmente, quando a criança não tem um familiar que assuma essa responsabilidade - o que a gente chama de ‘família extensa’ -, ela é direcionada à adoção ou para abrigos”, explica Alessandra. 
Desde a criação da Lei Maria da Penha, há 14 anos, a violência doméstica foi entendida como uma responsabilidade do Estado e muito se discute sobre como prevenir e retirar a mulher do ciclo de agressões. Mas pouco se avançou na discussão sobre como proteger quem está ao lado: as crianças.


Em 2018, o Senado Federal aprovou projeto de lei que garante que agressores que cometerem crimes contra cônjuges perderão a guarda dos filhos. Segundo o PLC 13/2018, que ainda aguarda sanção presidencial, a conduta do homem que pratica crime doloso grave contra a mulher, ex-mulher, companheira ou ex-companheira, torna-o desprovido de condições morais para criar e educar os filhos em comum.
Sendo assim, o único avanço concreto para a proteção das vítimas invisíveis da violência doméstica no País foi a aprovação da Lei 13.431, em abril de 2017, que garante não só a escuta protegida a menores vítimas diretas ou testemunhas da violência, como a aplicação de medidas protetivas.
“Essa é a única legislação sobre o tema. Mas mesmo assim, no Brasil, nós não falamos que a criança [que assiste à violência] é uma vítima indireta. Ela é entendida como testemunha. É como se o fato de ela viver nesse ambiente violento não trouxesse consequências”, diz Bianchini.
Mas como toda lei no Brasil, ela é muito bonita, mas só na teoria. E assim é com a Lei Maria da Penha. Nós não temos os instrumentos necessários para a efetivação das leis. Isso é um problema seríssimo.
Alice Bianchini, vice-presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil)
Na prática, a lei apenas determina que crianças e adolescentes deem seu depoimento uma única vez, em um lugar acolhedor e com profissionais capacitados, evitando que traumas sejam revividos e que passem pela revitimização. Também garante que ela não tenha contato com o agressor.
Anterior a esta medida, o artigo 30 da Lei Maria da Penha já estipula a proteção integral de crianças e adolescentes em casos de violência doméstica. Ele afirma que deve haver atendimento multidisciplinar para ”desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes″.
“Mas como toda lei no Brasil, ela é muito bonita, mas só na teoria. E assim é com a Lei Maria da Penha. Nós não temos os instrumentos necessários para a efetivação das leis. Isso é um problema seríssimo”, aponta Bianchini. “Existem casos dramáticos de crianças que viram o pai matando a mãe e que precisam de atendimento psicológico e não conseguem ou são direcionadas para um local muito distante. A questão das políticas públicas é o mais importante da Lei. Mas também é o ponto de maior fragilidade do Estado.”

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