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quarta-feira, 3 de julho de 2013

Pop e imortal: A pensadora Rosiska Darcy de Oliveira leva toda a sua rebeldia para a ABL

Mais nova imortal da Academia Brasileira de Letras, Rosiska tem no sangue a defesa do "feminino" e uma ruidosa campanha pela felicidade

Patrícia Zaidan

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Rosiska na sede da ABL: “Já experimentei o fardão para a posse.
É lindo, bordado com fios de ouro. Foi presente da cidade
do Rio de Janeiro”
 (
 Foto:  Daryan Dornelles (Fotonauta)
 
Mais brasileirinho, impossível: feijão-preto, farofa, picadinho e ovo frito no almoço; bolos, biscoitos e broas no lendário chá da tarde. Os olhos de menina brilham para descrever o fetiche gastronômico da Academia Brasileira de Letras (ABL), no Rio de Janeiro, que ela frequenta com assiduidade desde que tomou posse, no último dia 14 de junho, como ocupante da cadeira 10, que disputou com outros três concorrentes. "É um perigo, vou ter de tomar muito cuidado com essas delícias. Mas me arrisco: adoro o cheiro e o gosto de bolo e de doces; me lembram a infância, e a infância não tem cura", diz Rosiska Darcy de Oliveira, 69 anos. Jornalista, uma das mais inquietas feministas que o país já produziu, a agora imortal tem o talento de dar pulsação e transpiração a tudo o que pensa, escreve e cria. Parece fácil para ela saltar da teoria para a prática quando defende a mulher, a humanidade e a sua cidade (é líder do Rio Como Vamos, movimento que inspira políticos e moradores a conferir cidadania à capital). "Falo do que me interroga ou me encanta", afirma a também professora do Polo de Pensamento Contemporâneo, o POP, e autora de livros como Elogio da Diferença, A Natureza do Escorpião e Reengenharia do Tempo. Foi com o último que Rosiska fez o maior rebu, instigando as pessoas a ver que a vida delas virou refém do trabalho e ficou sem respiro para o amor, a alegria e a aventura. Na biblioteca dos acadêmicos, ao lado do centenário salão de chá, ela falou das relações no Facebook, da banda deletéria do Congresso Nacional, das angústias de hoje e, sim, falou de paixões.
Por que disputou a vaga na ABL? Alguns colegas a saudaram dizendo que chegava uma feminista, "mas uma feminista sem sectarismo". Essa visão incomoda?
Não. Quis entrar na casa dos grandes escritores porque sou escritora. Para mim, é retomar o fio civilizatório que vem dos autores que me formaram. Estou perto de Guimarães Rosa e Jorge Amado. Somos mantenedores desse fio numa época em que se vive do imediatismo. A escritora que sou é tributária da trajetória da feminista. Coube às mulheres da minha geração o susto de se perder. Sentimos fugir o chão debaixo dos pés. Esse chão era o feminino construído, na nossa ausência, pelo discurso que o homem fizera sobre nós. Assumimos o risco de nos reinventar e dizer que não queremos ser iguais aos homens nem mimetizar o jeito deles. Então, chega à ABL alguém que dedicou a vida e a escrita à discussão do feminino.
Você diz que o tempo é finito e é preciso se apoderar dele. Agora, imortal, não vai mais duelar com o tempo?
Vou, sim. Mulher, quando não está trabalhando, está cuidando de alguma coisa ou alguém. Para fazer o que gosta, é preciso tempo para si. Virginia Woolf dizia que para ser escritora necessitava de um quarto e algum dinheiro - faltava independência econômica. Hoje, nós a temos, mas não há tempo suficiente. Muitas se queixam de solidão, de não ter uma paixão - algo exigente, que pede muito. Estão infelizes, sem espaço para o amante, os amigos, o lazer. No meu entender, a recuperação da felicidade é prioridade, uma questão de política central. Fico impressionada: raramente se usa a palavra felicidade com seu sentido real. Ouço falar em aumento de renda e consumo. Mas, para a alegria de viver e de imaginar, há pouca chance. E sobre a imortalidade: imortal é a obra, não a pessoa.
Não há como ser imortal para alguém?
Sim. Você existe com uma aura de imortalidade para os que a amam, para aqueles que conseguiu fecundar de algum modo. Duas figuras são imortais para mim. Mário Pedrosa (morto em 1981), crítico de arte, um pai cultural que me introduziu no mundo dos pintores. Converso com ele toda vez que vejo algo bonito. Minha mãe é a outra. Com as limitações de sua geração, ela foi original, saía para trabalhar. Aos 6 anos, eu a ouvia dizer: "Não dependa de um homem, estude". Ela morreu nos meus braços, e isso foi reconfortante. Por 15 anos, vivi exilada na Suíça, sem poder pisar no Brasil. Temia que ela ou meu pai morressem nesse período. O telefone tocava de madrugada, eu pulava, sobressaltada, esperando notícias de morte. Não queria perdê-los à distância. Poder enterrar os que a gente ama é essencial.
Reengenharia do Tempo é um marco. O livro provocou mudanças no mundo das mulheres? As empresas agora invadem menos a vida pessoal?
Muitas leitoras entenderam que o problema não é delas. É um drama público, envolve empregadores, o Estado, os tempos da sociedade. Uma mulher veio me contar que achava que era deficiência pessoal não saber se organizar, que tinha feito a opção errada; passava dez horas trabalhando. Queria voltar atrás, abandonar seu projeto profissional por amar os filhos. Ela disse: "Foi lendo seu livro que vi que não tenho de renunciar a nada". Tomei como vitória pessoal. Empresas me pedem consultoria para ajudar a "reengenharizar" o tempo - o que não significa trabalhar menos, e sim de forma diferente. Na era virtual, em que se deve produzir por metas, é um atraso de vida se trancar no emprego. Todos estão reclamando, nunca houve tanto rebuliço entre o trabalho e a vida privada - e eu a defendo para homens e mulheres. É o ponto de virada.
Quais são os sinais de virada, de mudança?
Faço parte de um grupo da Rede de Mulheres pela Sustentabilidade (do Ministério do Meio Ambiente) composto de empresárias. Elas concordam com as teses do livro. Temos buscado formas de "reengenharizar" as empresas. Um problema só encontra solução quando é chamado de problema - e ele nunca tinha sido visto assim. O mundo corporativo foi organizado, há décadas, para a família que tinha a mulher em casa. A Lei das Domésticas pôs a nu um equilíbrio quebrado desde a entrada da mulher no mercado de trabalho. Parecia que só a divisão de tarefas seria suficiente. Não é. O homem provedor acabou - 25% das famílias se sustentam com o salário de uma mulher e 50% com os ganhos do casal. Agora, quem vai fazer o que em casa? Essa configuração familiar interpela as empresas no que concerne ao uso do tempo. A reengenharia vai se impor por ordem da sobrevivência social. Queiram ou não os empresários. Eles se opunham à licença-maternidade, alegavam que abalaria as finanças da empresa e que não arcariam com isso. Mas arcaram.
Existe o discurso do empresariado moderno, que se preocupa com o social, o sustentável... É mais um sinal?
Para serem modernas, as empresas anunciam valores éticos. Passam por contradições: se preocupam, mas não se ocupam das coisas. É mais fácil o discurso que a construção do espaço humanizado de trabalho. Humanizar pede mudanças essenciais, algumas renúncias que as empresas não estão dispostas a fazer. Mas elas chegarão lá. Do contrário, a felicidade permanecerá comprometida.
E tanta gente permanecerá no Facebook tentando, a todo custo, ser feliz - embora sem o contato físico. Ele ficou esvaziado de sentido?
Isso me aflige. As pessoas estão muito virtuais. Por mais vantagens que a virtualidade nos dê, a imaterialidade produz relações que deixam a desejar. Prefiro os contatos concretos, com o outro de carne e osso e perfume. É preciso tempo e esforço para o encontro. Eu me esforço. A teia humana é a grande atração para mim. O amor e a invenção do futuro são as coisas que conferem real sentido à vida. Vou atrás deles.
O que quer dizer com invenção do futuro?
Os projetos que você faz, o amanhã, o sonho. Os escritores, que lidam com o imaginário, têm em mente que só uma vida é muito pouco; por essa razão inventam várias. Mario Vargas Llosa chamou isso de intenção de corrigir o mundo. Como ele não é como você quer, invente outro.
É o que as pessoas fazem nas redes sociais: postam uma foto da alegria que não têm e desejam, inventam mundos...
Há um elã generoso nas redes. É uma tentativa de partilhar o melhor a que se aspira. Ou de contar algo real, o filme e a viagem de que gostou. Mas a impressão é de que mostrar tudo ali substitui a vida. Isso não é viver.
Como foi sua infância? Por que diz que ela não tem cura?
Sou uma grande carnavalesca. Digo que não nasci numa família, mas num bloco. O verão era vital: o começo das férias, a chegada das cigarras e do Natal... Logo se ouvia o batuque das escolas de samba e, lá em casa, começava a farra, a costura das fantasias. A infância não tem cura, é uma marca profunda, para o bem e para o mal. Eu vi muitas infâncias difíceis. Por mais que se possa resolver depois, as experiências inaugurais impactam e sempre voltam. O primeiro medo ou prazer persiste em nós. Carregamos uma menina por onde vamos. Muitas não tiram proveito, com vergonha da origem ou medo de ser piegas. Fogem dos sentimentos por pudor. Respeito, mas lamento. Estar perto de si é o melhor jeito de fazer as coisas fluírem. Em contato com o lado saudável da infância, crescemos.
Por que considera o corpo um traidor e diz que o Botox e a plástica são como reformas na casa demolida?
Amamos nosso corpo, fonte de prazer e de dor, abrigo de que dispomos. Mas sabemos: o nosso melhor amigo vai nos trair. Eu quererei viver e ele não viverá. É uma tensão que se anuncia, aos poucos, com perdas na estética e na saúde. Mas não tenho a melancolia do envelhecimento, não.
Intervenções de beleza podem ser tentativas de adiar a traição...
Inútil. Guerra perdida. Não tenho, porém, que julgar quem pensa diferente. O movimento feminista se construiu sobre uma ideia extraordinária: "Nosso corpo nos pertence". Quer Botox? Faça - nos pertence.
Você virou uma pensadora pop, seus textos em O Globo, sobre união gay, aborto, violência, são replicados nas redes sociais e provocam os políticos. Eles reagem?
Há um equívoco no Congresso que tem de ser estudado: o fundamentalismo não rima com um país feito da coexistência pacífica de religiões e raças. A sociedade brasileira é infinitamente mais dinâmica e tolerante que seus representantes. Tudo no Brasil é junto e misturado. O mundo não reconhece poder no nosso Exército ou na nossa economia, mas identifica a força da nossa cultura. São deletérias as opiniões do senhor Marcos Feliciano (deputado federal) e do seu grupo. Regina Casé, minha amiga, diz que devemos trabalhar na linha do encontro. Do encontro de tudo o que é diferente e do que está afastado. A ideia é de aproximação, não de rejeição, como quer o Congresso.
O que é a busca de sentidos, que você defende tanto?
É a mescla da razão de ser: por que vivemos? Para que e para quem? No meu caso, a busca é pela alegria. Distanciar-se dela é, por exemplo, por um preço em tudo. A alegria provém de certa gratuidade. Vejo mulheres de 30, 40 anos com pouca aventura e tristes. É como se não tivessem uma existência para viver, mas mantivessem um plano de carreira. É da aventura que surgem os novos caminhos.
Como é o seu chão hoje? Você tem bichos? É casada?
Eu fiz a foto da capa do livro Chão de Terra. São folhas de buganvílea no quintal de casa, a mesma em que nasci. Sou vizinha do meu irmão, meu melhor amigo, e estou casada com o mesmo homem há 45 anos. Todo mundo acha estranho, mas são muitos casamentos num só - e é prazeroso. Preservamos o que ele é e o que eu sou. O projeto de não ter filhos é comum. Bichos? Só cães de guarda. Tive um buldogue inglês amassado, parecia o Churchill (que foi primeiro-ministro britânico). Eu o amei demais.

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