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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Escolas avaliam traços de personalidade

Pesquisas comprovam que eles são decisivos para o sucesso na educação e no trabalho. Agora, instituições se ensino se preparam para ensiná-los e avaliá-los

CAMILA GUIMARÃES

Priscilla Gil, essa jovem de olhar confiante e tranquilo que aparece na foto abaixo, tinha apenas 6 anos quando passou pelo o que considera a maior frustração de sua vida. No 1º ano do ensino fundamental, quando deveria ser alfabetizada, ela não aprendeu a ler e escrever como seus coleguinhas. Repetiu o ano. Estudava num colégio particular num bairro de classe média alta, em São Paulo, perto de casa. “Lembro até hoje a vergonha que senti. Saí da escola depois de saber da má notícia e fui chorar na rua, sentada na calçada. Não me conformava”, diz ela. Seu pai também não se conformou com o diagnóstico da escola para justificar o fracasso da filha: dislexia. Foi procurar ajuda em outro colégio, o Vértice, um dos mais puxados do país, que a acolheu. Com a ajuda de uma professora, Priscilla trabalhou duro e, em um mês, já lia e escrevia. Perfeitamente? Não. As dificuldades e o embaraço causados pela alfabetização desastrosa acompanharam Priscilla pelo resto daquele ano e por todos os outros, até o ensino médio. Nunca foi boa aluna de português. No resto, ia melhor. Seu rendimento, no geral, ficava entre 55% e 65%. “Minha vida de estudante era assim: estudava para tirar 10, mas conseguia 6. Muitas vezes fiquei abaixo da média e tive de me recuperar”, diz.


Tirar uma nota 6 na prova pode ser suficiente para muitos. Outros podem não achar bom, mas se conformam. Para Priscilla, que desde pequena queria ser médica, sempre foi uma frustração. A maioria desistiria. Ela sempre voltava para os livros para tentar entender o que errara, para fazer melhor da próxima vez. Aprendeu a organizar seus estudos e desenvolveu uma disciplina difícil de encontrar em alunos de qualquer idade. Raramente faltava às aulas. Em classe, não era de conversar. Virou frequentadora assídua dos plantões de dúvidas. Depois de passar o dia na escola, chegava em casa e estudava mais uma ou duas horas. Perdeu as contas de quantas vezes deixou de sair com as amigas ou viajar no final de semana para estudar. “Eu tinha duas opções: me entregar à tristeza e me conformar toda vez que tirava uma nota ruim, ou batalhar para conseguir realizar meu sonho de ser médica.”
Perseverança e Autocontrole (Foto: ÉPOCA)
Quem resume bem a escolha de Priscilla é o diretor do Vértice, Adilson Garcia: “A garota é uma guerreira”. Ela nunca mais repetiu o ano. Nem sequer pegou recuperação. Passou no vestibular e está no último ano de medicina. Faz estágio num grande hospital de São Paulo, das 6 às 16 horas, e ainda tem mais um período de estudos à noite, em casa. As amigas vão visitá-la no hospital. No final do ano, Priscilla prestará a prova para residência de anestesia. É a segunda modalidade mais concorrida, com 70 candidatos por vaga (só perde para dermatologia e empata com radiologia). Pergunto a ela se acha que conseguirá. “É claro que sim! Se é anestesia que quero, então é anestesia o que vou fazer.”


O que levou Priscilla para a faculdade de medicina? Que habilidades dessa jovem de 24 anos a colocaram a um passo de realizar o sonho de sua vida? Pais, professores e escolas estão atrás do segredo do sucesso dos alunos há tempos. Nas duas últimas décadas, acreditou-se que bastava ser inteligente e aprender a fazer cálculos, interpretar textos e gráficos, relacionar fatos e analisá-los criticamente. Os vestibulares e as avaliações de desempenho cobram isso. Há um novo movimento de estudos de educadores, psicólogos e economistas que começa a olhar para o sucesso (e o fracasso) dos alunos de outro jeito. Sim, um bom colégio e notas acima da média credenciaram Priscilla a fazer um dos cursos mais difíceis da universidade. Mas ela teria conseguido chegar lá se não tivesse sido disciplinada? Sem a garra de perseguir sua meta? Se tivesse cedido ao medo de errar e de fracassar? Se tivesse desistido diante de obstáculos? A resposta é não. Há evidências cada vez mais fortes de que certos traços de caráter e personalidade, como persistência e autocontrole, são tão determinantes para a vida estudantil e profissional quanto saber português e matemática. São fatores que também ajudam a melhorar as notas dos alunos. Essa nova visão de educação pode mudar a forma como famílias orientam os jovens e escolhem as escolas. Além de importantes, esses traços podem ser ensinados e desenvolvidos na sala de aula, com as aulas de física, biologia e todas as demais.
Há vários jargões científicos para definir essas habilidades. Na psicologia, elas são estudadas como “traços de personalidade” ou “de caráter”. Os economistas que estudam educação as chamam de “habilidades não cognitivas”. Os educadores, de “características socioemocionais”. No mercado de trabalho, viraram as “habilidades do século XXI”. Por trás desses rótulos, está um grupo de fatores, entre eles personalidade, atitudes, comportamentos e crenças dos alunos, que não podem ser medidos pelos testes de Q.I. ou pelas avaliações educacionais tradicionais. É o jeitão da pessoa. Não há uma lista definitiva desses fatores, mas eles podem ser agrupados assim: perseverança (perseguir uma meta, ser disciplinado e resiliente), autocontrole (não ceder a impulsos, como ligar a TV na hora de estudar), extroversão (não ficar apenas no campo das ideias, conseguir realizar o que planeja), curiosidade (estar aberto aos erros, sem medo de assumir riscos), protagonismo (acreditar que, com esforço, é possível mudar o que está ruim) e cooperação (habilidade de trabalhar em equipe).
Extroversão e Protagonismo (Foto: ÉPOCA)
Essa lista foi montada pelo Instituto Ayrton Senna (IAS), entidade que há dois anos trabalha em parceria com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), responsável pelo principal índice de qualidade na educação internacional, o Pisa. Juntos criaram uma prova para medir tais habilidades. Ela foi aplicada em larga escala pela primeira vez no mundo em 55 mil estudantes da rede pública de ensino do Rio de Janeiro, no início de outubro. “Teremos um time de especialistas internacionais para ajudar a avaliar os resultados”, diz Tatiana Filgueiras, responsável pela área de avaliação do IAS. A prova será usada pela OCDE para avaliar estudantes de outros países. “Todo mundo sabe que saber fazer contas e interpretar textos é importante”, afirma Koji Miyamoto, diretor do Centro de Inovação em Educação da OCDE. “Mas, sem essas características, não há como garantir que os alunos de hoje terão sucesso no futuro.”


Vestibulares e avaliações de sistemas de ensino, no Brasil e no mundo, medem a capacidade intelectual do aluno. Suas notas são usadas como critério quase exclusivo para definir quem é bom. Isso fortaleceu a ideia de que um aluno bem preparado para a faculdade e para a carreira é aquele que acumulou conhecimento. Mas cresce uma sensação incômoda entre educadores e nos responsáveis pela contratação de jovens recém-formados: falta alguma coisa, mesmo naqueles alunos preparados intelectualmente. “Eles chegam ao mercado de trabalho sem algumas características cruciais, como capacidade de assumir riscos, terminar uma tarefa, conseguir concretizar uma ideia”, afirma Mariciane Gemin, presidente da Asap, empresa especializada em recrutar jovens profissionais e trainees para grandes empresas.
Esse tipo de lacuna na formação do jovem pode comprometer a continuidade dos estudos, não importa quão inteligente ele seja. Fundado em 1999, o Ismart é um instituto que recruta bons alunos da rede pública e financia seus estudos em escolas particulares de alto nível, até a faculdade. Para selecionar esses bolsistas, avaliavam sua capacidade intelectual. “Percebemos que apenas isso não bastava para manter o aluno no programa”, afirma Maria Amélia Sallum, presidente do Ismart. O programa de estudos é puxado. Se o aluno não tem motivação e não consegue superar situações complicadas, a desistência é quase certa. “Na prova de seleção, passamos a avaliar também o potencial dos candidatos para desenvolver essas características”, diz Inês Boaventura, psicóloga responsável pela seleção do Ismart. Uma equipe ajuda a desenvolver as boas características de personalidade entre os aprovados. Juliana Miranda, de 18 anos, foi selecionada quando estava no 8º ano. Era boa aluna, mas não tinha o hábito de estudar em casa. “Não precisava, conseguia ir bem só acompanhando as aulas”, diz. Sua rotina mudou drasticamente com o programa. Pela manhã, assistia a aulas no Colégio Santo Américo, um dos mais concorridos de São Paulo, para eliminar defasagens de aprendizado antes de entrar no ensino médio. À tarde, ia à escola regular, perto de sua casa, no bairro do Capão Redondo, periferia de São Paulo (a uma hora e meia de ônibus do Santo Américo). Como passou a ser cobrada mais do que estava acostumada, Juliana começou a estudar em casa, à noite. Quando entrou para o ensino médio, no Santo Américo, suas notas sofreram um baque. Ela estava habituada a fazer provas com consulta e com professores menos exigentes. “Consegui recuperar, mas isso exigiu de mim um esforço a que eu não estava acostumada.” Nos seis anos como bolsista, Juliana poderia ter desistido 1 milhão de vezes. Foi adiante e está no primeiro ano na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Caráter se aprende na escola (Foto: Letícia Moreira/ÉPOCA (2) e Na Lata)
Os atributos do caráter de Juliana que a ajudaram a chegar à faculdade são universais. Pesquisas fornecem evidências de sua influência. A mais famosa delas, do economista americano James Heckman, Prêmio Nobel em 2000, envolveu alunos de uma escola de ensino médio. Havia três grupos: os que ficaram na escola até o final e se formaram; os que abandonaram a escola, mas fizeram um curso para recuperar defasagens e conseguiram passar na prova de equivalência do colégio e ganhar um diploma; e aqueles que abandonaram e não se formaram. Todos foram acompanhados até a vida adulta. Heckman descobriu que, apesar de os alunos dos dois primeiros grupos terem um diploma na mão, os adultos que fizeram a prova de equivalência – e não frequentaram a escola – ganhavam menos e estavam mais desempregados. A conclusão é que, dentro da escola, aconteceu alguma coisa que não tem nada a ver com a capacidade intelectual de conseguir um diploma. Os alunos que a frequentaram aprenderam algo mais.
Curiosidade e Trabalho em equipe (Foto: ÉPOCA)
A descoberta de Heckman não só é o ponto de partida para as pesquisas que relacionam as tais “habilidades não cognitivas” ao desempenho. Mas também para a ideia cada vez mais comum de que personalidade pode ser aprendida na sala de aula. “O aprendizado acontece com a costura de fatores cognitivos e outros fatores: como nos sentimos, quais as nossas crenças, o que nos motiva, como interagimos com outras pessoas”, afirma Camille Farrington, da faculdade de educação da Universidade de Chicago e pesquisadora de consórcio entre a faculdade e a rede de escolas públicas do Estado para aproximar as pesquisas acadêmicas da sala de aula. Camille e seus colegas foram olhar as pesquisas mais recentes sobre o assunto e montaram um modelo de como esses fatores podem ser moldados em sala de aula. Concluíram que isso acontece de três formas. Primeiro, alguns fatores podem ser explicitamente ensinados. Os estudantes podem aprender estratégias de como administrar seu tempo e organizar o trabalho escolar. Um segundo jeito é o professor estabelecer expectativas claras sobre o que ele espera do aluno, acompanhar de perto a tarefa cumprida e ajudar sempre que houver necessidade. Terceiro, os professores podem criar ambientes em que o aluno se sinta capaz de aprender e acredite que é capaz. “Se tiverem esse tipo de comportamento em relação aos estudos e esse tipo de mentalidade, os alunos podem aprender como se comportar de forma perseverante ou resiliente”, afirma Camille.


Foi na escola que Adriano Lima, de 24 anos, aprendeu a encarar de forma diferente sua jornada acadêmica. Filho de pais que não estudaram e morador de uma das regiões mais pobres da periferia de São Paulo, ele poderia ter se entregado, como a maioria de seus colegas de classe, ao preconceito segundo o qual não importa o esforço que faça, sua origem o impediria de ir adiante. Sua escola, no Jardim Ângela, participava de um programa do IAS. Foi proposto um projeto: Adriano e alguns colegas reformariam a área verde da escola. Fazer parte de algo, trabalhar em equipe aos poucos transformaram o jeito tímido e desconfiado de Adriano. Não demorou para ele passar a ser visto como líder do grupo. Foi escolhido para representar o projeto em encontros estaduais e nacionais, onde orientava outros estudantes do programa. “Quando percebi que passei a ser exemplo para meninos mais novos do que eu, minha percepção do que sou capaz de fazer mudou”, diz. Adriano quis fazer faculdade e se formou em administração. Quis fazer pós-graduação e está acabando o curso neste ano. Quis trabalhar numa grande empresa de seguros, onde fizera um estágio quando era mais jovem. Foi contratado como analista. Ele está onde planejou estar. De sua turma da escola, cerca de 40 colegas, apenas cinco entraram na faculdade. Ele e mais uma amiga fizeram pós-graduação.
Casos como o de Adriano são isolados. Bons professores e boas escolas sabem há décadas que esses traços de personalidade ajudam a formar jovens mais competentes e felizes. O desafio atual é organizar esse tipo de ensino. A escola estadual de ensino médio Chico Anysio, no Rio de Janeiro, é pioneira nisso. Criada neste ano, atende a alunos do 1o ano do ensino médio em tempo integral. Uma vez por ano, os professores avaliam os alunos nas seguintes habilidades: energia, garra, autocontrole, otimismo, gratidão, inteligência social e curiosidade. Quando estive lá, em setembro, vi a professora de química sentada com um grupo de alunos no pátio, conversando sobre dificuldades na hora de estudar. Uma das estudantes não conseguia chegar em casa, depois de passar o dia na escola (a saída é às 17 horas) e mais três horas dentro de um ônibus, e fazer lição. Estava cansada demais. Orientada pela professora, traçou um plano: adiantar a lição de casa na escola. Se deu certo ou não, elas descobririam na semana seguinte e, se fosse o caso, pensariam numa nova estratégia.
Há algumas ressalvas a essa abordagem. Primeiro, educadores se preocupam se países como o Brasil, onde as escolas públicas não conseguem nem ensinar português e matemática, têm condições de cobrar que os professores também ensinem os bons traços de personalidade. Outros educadores criticam a ideia de medir personalidade. “É ingênuo acreditar que uma prova trará evidências científicas”, diz Teresa Rego, da faculdade de educação de São Paulo. Mas compreender o poder dessas habilidades pode dar instrumentos para melhorar o ensino nas escolas particulares e públicas. E talvez até melhorar as notas de português e matemática. Como comprova o exemplo dos bons alunos, ninguém tira nota alta sem ter curiosidade, protagonismo e persistência. 

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