Quem apaga a própria personalidade comete alguma espécie escandalosa de suicídio
IVAN MARTINS
Falávamos, eu e o amigo, de uma mulher que ambos conhecemos. Moderna, inteligente, bonita. Disponível, além de tudo. Pergunto por que ele nunca tentou namorá-la. “Ao conviver com ela, perdi o interesse”, ele responde. “Toda vez que namora, ela vira uma sombra obediente do sujeito com quem está. Parece que não tem personalidade própria. Para mim, perdeu a graça.”
Suponho que vocês conhecem gente assim, submissa. Acontece com homens e mulheres. A pessoa passa a vida esperando por gente que mande nela. Quando um alguém aparece, (e pode ser qualquer um), ela se anula, se submete e se torna, para quem a conheceu, mais ou menos irreconhecível. Quer dizer: é a mesmíssima pessoa, mas dá impressão de ter pendurado suas opiniões e sentimentos num cabide. Apaixonada – ou apaixonado - age como bichinho obediente e temeroso. O mais importante passa a ser a aprovação do Fulano ou a Sicrana.
Homens legais não gostam desse tipo de alma apagada. Suponho que mulheres também não. Alguma deferência aos desejos e às ansiedades do parceiro está na conta (seria estranho, aliás, estar com alguém e portar-se como se os sentimentos da pessoa não importassem). Mas quem deleta a sua personalidade em nome do outro comete alguma espécie escandalosa de suicídio. No longo prazo, o resultado é broxante. Nada mais inevitável do que enjoar de gente sem luz própria, que está no mundo apenas para nos servir. Exceto, talvez, no universo peculiar do sexo.
Outro dia, li um texto feminino que descrevia, minuciosamente, os prazeres da submissão sexual. Não era sadomasoquismo. Parecia uma moça normal, contando como lhe dava prazer curvar-se aos desejos do parceiro, portar-se como gueixa, ser usada pelo seu homem. Não havia violência, apenas irrestrita e libidinosa devoção. Mesmo não sendo minha praia, achei tocante. Talvez nesse caso, se o parceiro curtir a mesma viagem, a submissão não seja enjoativa. Até o contrário.
Mas sexo, apesar das ilusões conservadoras, não tem a ver com caráter. A mesma moça que rasteja por prazer pode ser um mulherão altivo e resoluto fora do quarto. Na intimidade vicejam fantasias frequentemente opostas ao que se é no dia-a-dia: a personalidade dominante encontra prazer em ser submissa; a tímida explode de excitação ao assumir o comando do sexo. Ou tudo ao contrário e misturado. Lá no fundo, onde se engendra o desejo, somos criaturas cheias de mistério.
Na vida em pé e vestida, haverá quem prefira uma pessoa servil para servir-se, mas assumo que sejam as exceções. Relacionamentos costumam ser melhor com duas personalidades envolvidas. É pelo menos mais rico. As diferenças de tom e de andamento nos divertem. As discrepâncias de estilo, de idade, de renda, de gosto e cultura formam uma colcha de retalhos sob a qual dormimos enlaçados e nus. Nós e nossos sonhos separados. Nós e nossas lindas personalidades fraturadas. Duas pessoas que se tornam uma apenas no mais fugaz e elusivo dos momentos. Não parece muito, mas é tudo que temos.
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