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sábado, 26 de outubro de 2013

Lei Maria da Penha é aplicável aos casos de crimes virtuais

Por Vitor Guglinski

“Quem não quer aplicar novos remédios deve esperar novos males”.

(Francis Bacon)

A frase utilizada como introdução a este breve estudo amolda-se com perfeição à infeliz realidade, cada dia mais comum na sociedade contemporânea: a exposição de vídeos íntimos nas mídias eletrônicas e nas redes sociais.

Notícia veiculada no dia 23 de outubro de 2013 revela o caso de uma jovem de 19 anos, moradora de Goiânia, a qual passou cerca de dois meses reclusa, em razão da divulgação e disseminação viral de um vídeo em que ela e o ex-namorado mantinham relações sexuais.

A faceta mais chocante desse fato advém da divulgação do nome completo, do endereço do trabalho e do número do celular da vítima. Segundo a reportagem, ao menos 500 mil pessoas já acessaram o vídeo. Como resultado da indevida exposição, a jovem ofendida parou de estudar, de trabalhar, não sai mais de casa e nem atende ao telefone.

Ainda conforme noticiado, o Deputado João Arruda (PMDB/PR) encaminhou ao Congresso Nacional uma proposta cujo conteúdo prevê que a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) seja estendida a crimes dessa natureza. Segundo o Deputado, “qualquer divulgação de imagens, informações, dados pessoais, vídeos ou áudios obtidos no âmbito de relações domésticas, sem o expresso consentimento da mulher, passe a ser entendido como violação da intimidade”.

De plano, penso que não deve passar em branco o registro de que a tecnologia, fruto do saber humano, da investigação voltada à evolução e ao bem viver, tem, em verdade, se tornado uma nova “arma” para a prática de todo o tipo de atrocidade contra nossos semelhantes. Em seu tempo, Aldous Huxley concluíra que “as palavras nos permitiram elevar-nos acima dos animais, mas também é pelas palavras que não raro descemos ao nível de seres demoníacos”. Transportando o pensamento do festejado escritor para os dias atuais, junto às palavras vem a tecnologia permitir que os inescrupulosos desçam a tais níveis demoníacos.

Pois bem, em suas disposições preliminares, a Lei Maria da Penha dispõe em seu artigo 2º:

“Artigo 2º. Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.”

Mesmo a leitura mais rasa do dispositivo permite concluir que a divulgação de vídeos íntimos na internet viola os direitos mais sagrados da mulher, em especial a sua saúde mental. O caso em comento deixa isso bastante claro, ao revelar que a jovem que teve sua intimidade devassada pelo ex-namorado, de forma tão hedionda, retraiu-se, permanecendo em casa, sem estudar, sem trabalhar, sem comunicar por telefone, enfim, pode-se dizer que a vitalidade dessa jovem foi brutalmente subtraída. Assim, claro está que sua saúde mental foi violada.

Adiante, no artigo 4º, o mesmo diploma legal estatui que:

“Artigo 4º. Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.”

Na ementa da lei, está claro que o seu fim social é “coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”. Nesse sentido, a norma deve ser interpretada de modo a garantir à mulher a mais ampla proteção contra os atos de violência contra ela praticados. Assevera-se que, como a própria lei deixa claro, a violência de que trata não se circunscreve à violência física, ao ato de sofrer espancamentos ou de ser privada do direito de ir e vir. Em muitos casos, a violência psicológica é tão devastadora quando a mácula física em si. A violência moral quase sempre deixa marcas indeléveis no ser humano. Tanto é verdade que, hodiernamente, ganha força em nossos tribunais a tese do “direito ao esquecimento”, tão marcantes que são as recordações dolorosas que nos acompanham ao longo da vida.

Sobre o sofrimento psicológico advindo da violência praticada contra a mulher, o dispositivo subsequente o prevê expressamente, sendo que, no inciso III, estende a aplicação da lei a “qualquer relação íntima de afeto”, havendo ou não coabitação. Eis o teor das normas (grifos meus):

“Artigo 5º. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

(...)

III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.”

Extrai-se, ainda, do conteúdo normativo em comento, detalhe bastante relevante: não é necessário que o agressor conviva coma vítima; é suficiente que o agente tenha convivido com a ofendida, como ocorreu no presente caso, em que o vídeo íntimo foi supostamente divulgado pelo ex-namorado da jovem, aparentemente em razão de não ter aceitado o fim do relacionamento. Aliás, é muito comum que atos dessa natureza, isto é, a exposição da intimidade do casal após um rompimento não desejado por parte do homem, resultem na exposição pública da mulher, a qual, culturalmente, em razão de um deletério e odioso machismo ainda enraizado em muitos “homens”, em situações como esta ainda é enxergada de forma preconceituosa, lamentavelmente recebendo a pecha de “galinha”, “puta”, “piranha”, “vagabunda”, etc.

Ainda com relação à violência psicológica, a Lei Maria da Penha não se limitou apenas a declarar que a ofensa psíquica configura violência doméstica e familiar; foi além, definindo no artigo 7º, II, o que é a violência psicológica, estando os dispositivos assim redigidos:

“Artigo 7º. São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

(...)

II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.

Pois bem, vejamos a situação da jovem citada na reportagem à luz da norma acima transcrita:

1. A vítima deixou de sair de casa após o ocorrido: isso evidencia constrangimento, humilhação, isolamento, ridicularização e limitação do direito de ir e vir;

2. A vítima parou de estudar: nesse caso, resta clara a perturbação do pleno desenvolvimento, já que a educação é um direito fundamental, inscrito na Constituição da República como um direito social (Artigo 6º da CRFB/1988);

3. A vítima parou de atender ao telefone: isso implica na limitação de suas ações, já que a liberdade de falar ao telefone restou suprimida, certamente por receio de ser ainda mais humilhada por pessoas que, como o autor da ofensa, seja ele quem for, são inescrupulosas;

4. A vítima se declarou humilhada: consoante trecho da entrevista, a garota revelou que “Moralmente e virtualmente, o que eu consegui ler e o que eu consegui receber é humilhante”.

No campo do direito material, não restam dúvidas quanto à possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha à violência praticada pelo meio virtual. Isso fica bem claro quando se lê no inciso II do artigo 7º da lei, que estará caracterizada a violência psicológica quando a ofensa for praticada mediante qualquer conduta causadora dos danos descritos na referida regra. Ora, se qualquer conduta é apta a deflagrar a violência, dentre todas as possibilidades nelas está compreendida a exposição não autorizada de vídeos íntimos.

Prosseguindo, passa-se a uma breve análise das medidas de urgência a serem adotadas em casos tais, com vistas a fazer cessar ou ao menos diminuir os efeitos do ato danoso.

Sendo o caso levado ao conhecimento do juiz, prevê o artigo 22, e seu §1º, da lei em comento:

“Artigo 22.  Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

(...)

§ 1º  As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público.”

Pois bem, o leitor que se remeter ao rol de medidas protetivas inscritas nos incisos do artigo em referência verificará que eles não preveem solução específica para os casos em que a violência é praticada com a utilização de meios eletrônicos.

Nada obstante, o § 1º, acima transcrito deixa claro que o juiz poderá lançar mão de outros expedientes previstos na legislação em vigor (grifei). O destaque retro serve para demonstrar que o juiz, valendo-se do chamado “poder geral de cautela”, está autorizado a investigar em outras fontes normativas a existência de medidas aptas a garantir a segurança da ofendida, devendo-se observar que, nesse caso, o vocábulo segurança deve ser interpretado de forma ampla, pois, tratando-se de violência psicológica, praticada por meio virtual, fica claro que o isolamento e o direito de ir e vir da vítima podem ser entendidos como uma insegurança psíquica resultante da ofensa.

Sendo assim, o juiz pode, por exemplo, determinar, de imediato, que o administrador da página responsável por hospedar o conteúdo não autorizado (foto, vídeo, etc.) o retire do ar, eis que sua divulgação também configura ilícito civil, cuja responsabilização é independente da penal. Nesse caso, não há óbice para que, observando o fim social da Lei Maria da Penha, o juiz se valha, por exemplo, de soluções previstas na lei civil, já que o fragmento “legislação vigente” abrange todo o arcabouço legislativo. Como exemplo, cite-se o artigo 21 do CC/2002, in verbis:

“Artigo 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.”

Por todo o exposto, não restam dúvidas de que a Lei Maria da Penha é aplicável aos casos de crimes virtuais. A exposição da intimidade alheia, sem autorização, seja a que título for, jamais deve ser tolerada. Pior ainda quando a exposição pública se dá com o especial fim de humilhar, degradar, coisificar a mulher, alçando-a a um suposto patamar de criatura indigna de respeito. Os fins sociais da Lei 11.340/06 autorizam ao Poder Judiciário, seja por meio de suas próprias disposições, seja por meio de outros diplomas legais em vigor, a rechaçar todo ato de violência contra a mulher. Ao mesmo tempo em que há aqueles que se valem da velocidade e facilidades da internet para a prática do mal, com o mesmo vigor, e na forma da lei, deve o Estado garantir à mulher existência digna.

O mal praticado é o mesmo; somente o meio é novo. Cabe ao Estado, através das autoridades competentes, ministrar um novo remédio.

Vitor Guglinski é advogado, pós-graduado com especialização em Direito do Consumidor. Ex-assessor jurídico da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora-MG. Colaborador permanente dos principais periódicos jurídicos do país. Colunista da revista Direito e Atualidade (ES). Professor-conteudista do site Atualidades do Direito.

Revista Consultor Jurídico

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