A Justiça investiga cerca de trinta casos em hospitais públicos durante os anos 70 e 80
ROCÍO MONTES Santiago do Chile 30 AGO 2014
A Justiça chilena investiga cerca de trinta roubos de recém-nascidos em hospitais públicos do Chile durante os anos 70 e 80, que afetaram principalmente mães e casais muito jovens e humildes. Os meninos e as meninas foram declarados mortos depois de nascerem e, por meio de mentiras e sem papéis oficiais, os funcionários de saúde os entregaram a famílias ricas, algumas vezes com a ajuda de padres e freiras.
Os casos começaram a ser revelados depois de uma investigação jornalística publicada em abril, mas nem os tribunais e nem o Governo sabem a verdadeira dimensão e o alcance dessa trama. "É provável que o que aconteceu no Chile tenha sido tão grande quanto o que ocorreu na Espanha, porque era uma prática generalizada", afirma a advogada do Serviço Nacional do Menor (Sename), Consuelo Gazmuri.
Em 8 de junho de 1980, Olivia deu à luz uma menina no hospital de Salvador, em Santiago. Vinha de uma família humilde, mas estava animada para ter uma garotinha porque era mãe de quatro filhos homens. A menina nasceu aos nove meses, pesava 3,2 quilos e, assim que terminou o parto, a mãe a pegou no colo. O médico que a atendeu, Gustavo Monckeberg, a viu abraçando a recém-nascida. Lhe repreendeu, incluindo um forte tapa na coxa dela. Poucas horas depois, disseram à mulher que sua filha estava morta. No dia seguinte, no entanto, levaram o mesmo bebê para que ela amamentasse: Olivia se deu conta de que era saudável e ficou com ela durante horas. Em certo momento, o médico chegou com um casal para observá-la:
– A mulher não é nada feia – comentou a visitante, e os três saíram da sala.
Nesse mesmo dia, uma enfermeira informou que a menina estava em estado grave e que deveriam transportá-la para outro hospital, especializado em crianças. A mãe resistiu, disse que não a havia visto doente, mas ela foi retirada dos seus braços mesmo assim. Foi a última vez que Olivia viu a sua filha. Algumas horas depois, disseram novamente que ela havia morrido. Quando quis fazer um funeral, afirmaram que o corpo havia sido doado para a ciência. A mãe foi ao hospital Calvo Mackenna, para onde supostamente sua filha teria sido levada, mas nesse centro disseram que seu bebê nunca havia sido internado ali. No Registro Civil também não foi possível encontrar uma certidão de óbito.
A mãe sempre suspeitou que sua filha havia sido dada para adoção pelo casal que apareceu para vê-la junto com o médico. Em 2014, Olivia foi incentivada a denunciar os acontecimentos depois de ver outras histórias de mulheres que tiveram os filhos roubados com o mesmo método na imprensa. Em alguns casos – não está determinada a quantidade exata –, o doutor Monckeberg, que morreu em 2008, também participou. O Sename abriu uma página na internet para reunir as denúncias e já chegaram cerca de 150. Na semana passada, o Governo abriu processo sobre seis casos ocorridos em Santiago. Um deles é da mãe que pariu no hospital de Salvador em 8 de junho de 1980. Seu relato está em poder da Justiça e será investigado. "Possivelmente, vamos abrir outros processos em outras cidades do país", disse a advogada Gazmuri.
O ministro da Corte de Apelações, Mario Carroza, investiga outros vinte casos. O magistrado dedica-se exclusivamente a causas de violações de direitos humanos entre 1973 e 1990 (notícia em espanhol), os 17 anos da ditadura de Pinochet. Carroza explica que a investigação ainda está no começo, mas que já conseguiu configurar o método que possibilitou a remoção das crianças: "As mães pobres foram atendidas em hospitais públicos e eram comunicadas do falecimento de seus filhos, mas eles haviam sido entregues a outras famílias. Estamos investigando a participação de parteiras, médicos, enfermeiros e religiosos". O juiz disse que não conseguiu determinar se houve pagamentos, descartou raptos sistemáticos de filhos de opositores da ditadura e afirmou que existem suspeitas de que alguns bebês roubados estejam fora do Chile.
Em alguns dos casos, houve a participação de padres e freiras. Carroza interrogou a religiosa María Graciela Soto, de 93 anos, que entregou crianças no hospital Barros Luco, da capital chilena, onde se concentra a maioria dos roubos. O advogado Cristian Letelier, que representa 13 casos, disse que pediu ao juiz para investigar a freira Gertrudis Kuijpers, que atualmente vive na Holanda. "Levou 99 crianças chilenas, filhos de mães vulneráveis, de forma absolutamente ilegal. Hoje, têm entre 30 e 35 anos", afirmou o advogado.
El País