Para falar sobre o tratamento jurídico à violência psicológica, com o objetivo de efetivar o cumprimento da Lei Maria da Penha e garantir à mulher vítima desse crime o acesso à justiça, o Informativo Compromisso e Atitude ouviu Márcia Teixeira, promotora de justiça no Estado da Bahia e Coordenadora da Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (COPEVID). Na opinião dela, o artigo 129 do Código Penal pode ser aplicado às condenações em casos nos quais fica comprovada ofensa à saúde da mulher em razão da violência. Para assegurar o diagnóstico e a configuração probatória, a promotora defende a institucionalização da perícia psíquica e o fortalecimento das instituições especializadas na aplicação da Lei Maria da Penha. Leia abaixo a íntegra da entrevista.
A violência psicológica pode ser considerada uma forma de lesão corporal?
O artigo 129 do Código Penal diz que a lesão corporal é “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”. Se no percurso da violência psicológica for detectada ofensa à saúde da mulher vítima, entendo que há sim a lesão corporal. Para que seja diagnosticado se houve ofensa à saúde dessa vítima, precisamos ter uma lógica institucionalizada da perícia e seus laudos, para notificar que houve lesão ao sistema psicológico, psiquiátrico ou psíquico.
E quais seriam os procedimentos a serem seguidos para institucionalizar esses procedimentos periciais?
Hoje, toda a rede de atenção e enfrentamento à violência e o movimento feminista têm trabalhado para colocar isso específica e expressamente na legislação, como já acontece em outros países. É uma necessidade à qual os legisladores precisam se ajustar pela incapacidade do Sistema de Justiça fazer uma interpretação da lei que me parece óbvia. Tenho conhecimento apenas de uma sentença no país na qual o magistrado proferiu a decisão de acordo com a denúncia oferecida pela promotoria, de lesão corporal baseada no dano psíquico, na ofensa à saúde da mulher – que desenvolveu determinadas patologias e sintomas. E não necessariamente é preciso ter um diagnóstico de transtorno psíquico ou mental, mas que a situação tenha levado a mulher a desenvolver uma síndrome do pânico, fobia social ou a tenha levado a fazer um tratamento pós-trauma.
Alguns colegas promotores de justiça e defensores públicos que atuam na área de violência doméstica vêm buscando trazer essa reflexão para que possamos obter a culpabilização desses agressores.
Outro aspecto é que precisamos fortalecer a própria rede de atendimento. A maioria dos Institutos Médicos Legais no Brasil não oferecem perícia psíquica ou psicológica. Então, deveríamos fortalecer ou retomar esse tipo de trabalho, que já tivemos, mas foi dado como de menor importância. E por isso hoje não se avalia o impacto dessa violência – que vai minando a identidade, a resistência, a capacidade de reação e de imposição da mulher -, nem o dano ao equilíbrio psicoemocional à vítima.
Precisamos também que a área da saúde esteja mais próxima das secretarias de políticas para as mulheres municipais e estaduais - para dar suporte emocional, psiquiátrico e psicológico a essas mulheres. Hoje, nos CAPs não temos esse tipo de serviço especificamente para as mulheres, nem para atendimento e tratamento pós-trauma. Então, precisamos pensar junto com a saúde – sem tirar atribuições da saúde e nem ter uma utilização equivocada dos recursos destinados à Secretaria de Política para as Mulheres da Presidência da República, que acaba tendo que arcar com serviços que deveriam ser garantidos na esfera estadual ou municipal.
Quais são, na sua opinião, as iniciativas que têm dado mais certo para efetivar o cumprimento da Lei nesse quesito?
Em primeiro lugar a movimentação da sociedade civil, enquanto movimentos de mulheres e feministas, para garantir a efetivação da Lei, que para mim é perfeita. Isso vai fustigando os órgãos públicos e o Sistema de Justiça.
Considerando a fragilidade dos institutos médicos legais, nós, promotores públicos, precisamos desempenhar esse papel para que essas denúncias sejam recebidas e tenhamos condenações nessa direção para fortalecer a jurisprudência e o entendimento de que o artigo 129 [do Código Penal] aplica-se também à violência psicológica com danos à saúde da mulher
O conjunto dos órgãos públicos também precisam discutir que a violência contra a mulher não é um problema das secretarias de políticas para as mulheres, mas de todos os governos, de Estado. Como promotora e coordenadora da COPEVID observo que há uma frágil participação da saúde, da educação, da justiça – na perspectiva da segurança pública – em tratar o tema com mais união e com uma visão de Estado. É preciso enxergar que isso afeta a todos, inclusive as crianças, ainda que como vítimas secundárias, que cotidianamente presenciam agressões a suas mães e irmãs, o que tem um prejuízo a longo prazo incalculável para a realidade de violência em que vivemos.
Como os operadores podem tipificar essa agressão nos registros de ocorrência (que terão implicação em todo o decurso do processo) no atual quadro de classificações utilizada pelas polícias e o sistema de saúde?
Se estou no lugar dos técnicos dos centros de referência ou das casas de acolhimento, se sou delegada ou delegado de polícia e acolhi aquela mulher, devo perguntar se ela vem fazendo acompanhamento médico. E se não vem, devo fazer também o encaminhamento daquela mulher para o serviço de saúde com a solicitação de que seja avaliada a situação psicológica e emocional, se já foi atendida alguma vez, se é ‘poli-queixosa’, se toma remédios controlados, se tem algum tipo de doença reincidente (dores de cabeça, tremores, etc). Uma série de questões de saúde podem estar atreladas à violência. E essa avaliação vai servir como prova subsidiária se não há um instituto médico legal que possa dar essas respostas.
Enquanto promotores de justiça ou defensores públicos, podemos agir na perspectiva das políticas públicas, junto aos governos dos Estados, fazendo tentativas e tratativas administrativas para que se fortaleça os IMLs e que se ofereça esse serviço como essencial. E concomitantemente a isso, começar a oferecer denúncias, o que alguns colegas já têm feito, infelizmente a maioria sem resultados positivos. Além de entrarmos com recursos junto aos tribunais de segunda instância ou ao STJ para que possamos construir uma jurisprudência e uma reflexão mais ampliada do que seja a utilização do conceito que está no artigo 129.
Essa necessidade tem implicações diretas na formação dos agentes do sistema de justiça? Que falhas você aponta e que propostas podem ser adotadas para favorecer a aplicação da Lei Maria da Penha em sua integralidade?
Precisamos incluir a questão da violência doméstica no contexto dos estudos da violência macro, porque aí temos a violência sexual, o abuso sexual, a exploração sexual. Tivemos uma decisão em São Paulo na qual o juiz entendeu que uma menina de 13 anos era prostituta e então absolveu o acusado porque partiu do pressuposto que se a menina era prostituta não poderia haver estupro. Então, o que nós observamos é que, apesar de sempre se questionar quando levantamos de novo o tema do patriarcado e do sexismo, somos surpreendidas a cada dia com a incapacidade dos operadores do Direito e profissionais de outras áreas de entender que aquela menina não pode ser tirada de um contexto para ser julgada e condenada. Porque, numa decisão como esta, o que ocorre é que o acusado foi absolvido e a vítima foi condenada. É preciso olhar o contexto de criação daquela garota, de exclusão de todas as políticas públicas que pudessem ser possíveis para acolhê-la.
Então, precisamos ter um investimento profundo na educação, vigilância radical das propagandas publicitárias, das músicas, do que é financiado ou beneficiado com verbas públicas para que essas empresas se comprometam com a questão da não-violência contra as mulheres e que, se houver violação desses princípios, percam todas as possibilidades de se beneficiar de verbas públicas. Quem quiser fazer sua propaganda ou sua música que faça, mas não com incentivo de verbas públicas. A liberdade não pode prejudicar todo um custo que o Estado, ainda que precariamente, banca. E nos últimos anos, desde antes da Lei Maria da Penha, o governo brasileiro tem se ocupado desse tema.
Temos ainda que continuar com os incentivos à capacitação e dos editais para fortalecimento dos núcleos de atendimento e centros de referência, e que isso seja acompanhado permanentemente.
Outra coisa é o fortalecimento das DEAMs. Vivemos no Brasil um momento muito complicado em relação às DEAMs, e não estou falando da criação de novas unidades, mas das que já temos. Se fizermos uma leitura de algumas pesquisas, vamos observar a fragilidade delas. Temos uma norma técnica de como devem funcionar as DEAMs e, na última reunião do COPEVID, em maio deste ano em Goiânia, levantamos que se tivermos 10% dos estados com DEAMs funcionando conforme a norma técnica federal é muito. Então, é preciso um olhar severo junto às secretarias de segurança pública dos estados sobre o funcionamento das DEAMs. As delegadas estão sobrecarregadas. Não está havendo um olhar para essa política da forma como é necessário. E a SPM precisa nos ajudar com essa fiscalização. Temos DEAMs que só atendem casos de violência doméstica, outras que não têm equipes multidisciplinares, que não funcionam nos finais de semana, não atendem à noite, só atendem no plantão, não têm o número mínimo de delegadas ou delegados. E como vamos falar em capacitação, em cobrar um olhar mais cuidadoso, por exemplo, em relação à violência psicológica se temos uma fragilização daquelas profissionais que persistem trabalhando? Porque essas delegadas são heroínas e são mulheres vítimas de violência institucional. Vou dar um exemplo só de uma delegacia aqui da Bahia onde pelo menos 4 das 7 delegadas já foram afastadas por doenças graves. E se você não cuida de quem cuida, sobrecarrega aquelas mulheres (pois são maioria de mulheres entre os delegados), e elas estão ficando doentes, é uma violência psicológica institucional.
E como a atual organização judiciária colabora nesse processo e, por outro lado, que dificuldades traz?
Primeiro, temos um número muito reduzido de juizados especializados em violência doméstica e familiar. E, por conta disso, temos esses operadores do sistema de justiça sem a capacitação necessária para compreender a Lei Maria da Penha, as relações de gênero e seus desdobramentos. Então, o comprometimento da especialização é uma grande dificuldade.
A sobrecarga da maioria das poucas varas que existem também é outro problema. Temos varas únicas em capitais como Salvador, Alagoas, Vitória (no Espírito Santo), e outras capitais, como Rio de Janeiro e São Paulo, que têm mais de uma vara mas há uma sobrecarga. Em muitas vezes, há o dobro ou o triplo da carga que se verifica em varas que trabalham com homicídios e outros crimes.
Outra dificuldade é observar o próprio ordenamento de uma forma mais integrada e holística. Vemos, por exemplo, pouca aplicabilidade da LMP nos júris, onde nos crimes de feminicídio não se aplica o agravante, não se faz menção à Lei, assim como nas varas da Infância e de Idosos e Idosas. Nas ocorrências policiais contra idosas não se instauram inquéritos aplicando a Lei Maria da Penha e todos os aspectos positivos da lei, que infelizmente não estão no Estatuto do Idoso, deixam de ser aplicados em benefício dessa idosa. Então, temos essas dificuldades para as quais é preciso olhar com bastante atenção.
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