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quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O vagão cor-de-rosa

Nada mais ultrajante que, após um dia exaustivo e tenso, entrar num trem ou metrô e ficar exposta a homens de comportamento agressivo e predatório

LUIZ RUFFATO 18 AGO 2014

O governo do Estado de São Paulo vetou a criação dos chamados “vagões rosa”, destinados exclusivamente às mulheres nos sistemas de metrô e trens metropolitanos. O argumento é o de que, ao invés de alcançar o objetivo almejado, combater o assédio sexual, a medida ampliaria ainda mais a segregação, punindo a vítima, não o agressor. Segundo esse raciocínio, ações como esta não ajudam em nada a luta contra o machismo, mas apenas perpetuam uma situação de violência.

Eu compreendo que a solução para esse problema não está na separação de homens e mulheres, mas sim na vivência harmônica entre eles. Fato é, no entanto, que a coexistência em igualdade de condições só ocorre quando, por meio da educação, se transforma uma cultura. O machismo é um comportamento derivado de uma visão de mundo deformada, plantada pelos pais desde o berço, alimentada pela escola e legitimada pela sociedade. Mudar essa mentalidade implica um empreendimento continuado envolvendo a família, as instituições de ensino e as várias instâncias governamentais. E isso demanda um esforço conjunto por algumas gerações.

Ao rejeitar a implantação dos “vagões rosa”, o governo acenou, como alternativa, com o aumento no quadro de seguranças femininas e a instalação de câmeras de vigilância nas estações. Ou seja, repressão, não educação. Quem utiliza transporte público, não apenas em São Paulo, mas em todo o país, conhece sua precariedade. Confinados em espaços reduzidos, homens aproveitam-se da superlotação para humilhar as mulheres, encoxando-as, bolinando-as, beliscando-as, beijando-as, encarando-as, passando a mão em seus corpos, sussurrando safadezas em seus ouvidos. Apenas nos sete primeiros meses deste ano, a Delegacia de Polícia do Metropolitano de São Paulo deteve 33 homens acusados de abusar de passageiras. Mas sabe-se que o número de episódios é muito maior, já que a maioria das mulheres reluta em denunciar casos de assédio, por sentirem vergonha, por desconhecerem seus direitos, por medo de serem constrangidas em delegacias onde imperam homens ou simplesmente por não acreditarem na eficácia da polícia.

A legislação é quase omissa em relação a casos de abuso contra mulheres no transporte coletivo. O ato de importunar alguém publicamente de modo ofensivo é tratado como mera contravenção, cuja pena se limita ao pagamento de multa. E é sempre bom lembrar que o Brasil registra uma das maiores taxas mundiais de violência contra as mulheres, ocupando o sétimo lugar no ranking de femicídios. São 5.600 assassinatos por ano, em média, um a cada hora e meia, sendo que mais da metade das vítimas têm idade entre 20 e 39 anos e contam com menos de oito anos de escolaridade.

A criação de “vagões rosa” no sistema de transporte coletivo não é a maneira mais apropriada de lidar com a mentalidade machista que grassa entre os brasileiros, independente da classe social a que pertençam. Mas, certamente, serve como um paliativo para aliviar as pressões contra as trabalhadoras e estudantes que não têm opção para ir e vir de casa para o trabalho ou a escola. O tempo médio gasto nos deslocamentos em São Paulo é de cerca de 2h49m – sendo que 19% do total da população consomem até quatro horas por dia. E quanto mais longe do centro mora-se, mais saturadas e deficientes são as conduções públicas.

O veto à existência de “vagões rosa” cerceia o direito das mulheres, as principais interessadas, de poder escolher como preferem se mover pela cidade, se em vagões exclusivos ou mistos. Nada mais ultrajante que, após um dia exaustivo e tenso, entrar num trem ou metrô e ficar exposta a homens de comportamento agressivo e predatório, que acreditam, em sua grande maioria (59%), que “se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros” – estima-se que o número de casos alcance mais de 500.000 por ano, sendo que nem 10% deste total chegam a ser comunicados oficialmente.

Quando uma gripe nos atinge, a recomendação é para que aliviemos seus desagradáveis sintomas – febre, dores generalizadas e tosse – tomando antitérmicos, analgésicos e fazendo repouso. O médico e nós sabemos que não estamos combatendo a doença, mas que os remédios abrandam as consequências do vírus para podermos enfrentar o período agudo de sua manifestação. No meu ponto de vista, é mais ou menos para isso que servem os “vagões rosa”. Não combatem o machismo, que é um problema mais amplo e complexo, mas diminuem a pressão sobre a vida já tão difícil das trabalhadoras e estudantes que usam o sistema público de transporte.

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