A forma como enchemos o guarda-roupa e a casa revela como cuidamos da nossa própria cabeça
FLÁVIA YURI OSHIMA
22/08/2014
Nunca houve um período da minha vida em que algum canto dos meus domínios não me incomodasse. Eu me recordo da sensação de, ainda pequena, olhar com rabo de olho e cheia de culpa para o baú de brinquedos que precisava de uma faxina. Torcia para que minha mãe não descobrisse aquela bagunça. Os cantinhos aumentaram à medida que cresci. Hoje, mãe de família, meus domínios foram ampliados aos cantinhos dos meus filhos e de uma casa repleta de material de escola, lista de compras, receitas de remédio, gibis etc. Tenho, o tempo todo, a impressão de que coisas são organismos vivos que crescem de forma desordenada do chão, das paredes, dos armários.
Não sou uma neurótica por organização, mas esse assunto sempre me incomodou. Eu, como muita gente, me sinto melhor quando vejo mais espaços do que coisas. Principalmente, quando enxergo as coisas de que preciso. No meio do amontoado de revistas, é difícil achar justamente aquela que quero ler. Em pilhas de blusas, me esqueço das que me cairiam melhor. Sei, há muito tempo, o quanto esvaziar me faz bem. Isso, no entanto, não torna a tarefa mais simples. Como é difícil abrir espaços.
Há alguns anos, descobri que não estava sozinha nas minhas angústias com o acúmulo de coisas. A tarefa de esvaziar ganhou importância, método e seguidores. Primeiro, virou assunto de especialistas: os consultores de organização são grandes esvaziadores (que cobram por hora). Depois, evoluiu para uma espécie de estilo de vida: os minimalistas ou pregadores da vida simples encaram o “menos é mais” como uma filosofia. A ideia é simples, sem trocadilhos: ter menos libera espaço físico e mental também. Ter muita coisa dá trabalho e exige um tempo precioso que poderia ser usado para...viver.
A ideia de que a quantidade de coisas que temos tem impacto em nosso bem estar não é nova. A ordem de São Francisco de Assis, os budistas, os iogues e outras tradições, de diferentes culturas, enfatizam a importância do desapego material para atingir a paz. Com propósitos bem menos transcendentes, o americano Duane Elgin escreveu na década de 1980 o livro considerado responsável pelo resgate moderno da ideia de que coisas em excesso nos aprisionam, o Simplicidade Voluntária. Naquela fase, o livro de Duane surgiu como um manifesto contra o consumismo exacerbado nos Estados Unidos.
Hoje, as ideias de Duane (que se mantém em pleno exercício da função de evangelista da simplicidade) ganhou ramificações de diferentes intensidades e gurus altamente midiáticos, que ensinam como exercer a escolha de viver com menos. Dois deles são o australiano Peter Walsh e o americano Andrew Mellen. Eles mostram na TV, em livros e na internet como manter as tralhas longe de seus armários. Os rapazes merecem a popularidade que têm. Formulam dicas eficientes para ajudar a simplificar a vida diminuindo a quantidade de coisas que nos cercam. Ao lado deles, há vários blogueiros militantes dispostos a ajudar quem quer se libertar da “coisarada”.
• Leo Babauta do blog Zen Habits formulou 18 tipos de tarefas, para serem feitas por 5 minutos, cada uma delas, para limpar os excessos. A ideia é tocar uma por dia, em ordem aleatória ou na ordem numérica. Cinco minutos de comprometimento por dia que podem deixar sua casa muitos quilos mais leve.
• No blog 365 Less Things (365 coisas a menos), a ideia de Colleen Madsen é doar uma coisa todos os dias ao longo de um ano. Devagar e sempre.
• Em Becoming a Minimalist (tornando-se um minimalista), o escritor americano Joshua Becker diz que seu exercício favorito é pegar um saco de lixo e cronometrar em quanto tempo consegue enchê-lo de coisas que podem ser doadas. Tão importante quanto tirar o que está sobrando é não deixar que as coisas entrem em sua casa. Pense três vezes antes de carregar para casa algo de que você não precisa.
• No programa Oprah Winfrey hanger clean up (algo como: limpeza do cabide de Oprah Winfrey), a ideia é virar os cabides para o mesmo lado. À medida que as roupas forem usadas, o cabide deve ser virado para o outro lado. Depois de seis meses, a missão é eliminar boa parte das roupas que estão em cabides que nunca foram virados.
• Peter Walsh sugere combinar com toda a família um horário em que, por 30 minutos, todos selecionarão coisas a serem doadas. Outra regra: limpar não é mudar as coisas de lugar. Não vale comprar um armário novo para a garagem ou colocar as coisas em outro cômodo. Tirar de vista não é limpar.
Viver com menos não tem relação com se desfazer de coisas bonitas que podem não ter utilidade prática aparente. Gravuras, esculturas ou porcelanas de que gostamos e nos dão satisfação têm uma função importante em nosso bem estar e, por isso, fazem parte do que é indispensável em nossa vida. Walsh recomenda uma reflexão simples para escapar dos momentos em que empacamos: “as coisas que temos devem servir ao propósito de nos ajudar a ter a vida que queremos ter. Se elas não servem para isso, por que mantê-las dentro da nossa casa?”
O que as dicas acima têm em comum, além do objetivo final, é que propõem exercícios graduais. Não vale comprar a ideia de investir numa limpeza geral e fazer disso motivo de tortura psicológica. Ansiedade e culpa estão entre as tralhas que mais ocupam espaço mental e, por isso, nos privam de experiências prazerosas. O objetivo não é ter a casa ou a vida mais organizada do mundo. Não acho que isso seja possível para quem está vivo e é capaz de relaxar. A proposta mais saudável por trás de tudo isso é simples: cultivar o hábito de limpar nos mantém atentos ao que é e ao que não é importante em nosso dia a dia. É, na verdade, um exercício cotidiano de libertação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário