por Aline Valek — publicado 20/08/2014
Marjane Satrapi
Cresci praticamente em uma família de estrutura matriarcal. Por parte de mãe, a família se reunia em torno de minha avó materna, já viúva desde antes de eu nascer.
Moravam com ela minhas tias e, como morávamos na mesma rua, também estávamos sempre por lá compondo uma população feminina que a gente chamava, brincando, de “a casa das sete mulheres”.
Apesar de tantas mulheres reunidas, as conversas não eram tão abertas. Minha avó, mulher serena e delicada, era também conservadora. O respeito às suas posições impedia, muitas vezes, que alguns assuntos viessem à roda.
Lembro quando uma prima mais velha um dia usou a expressão “gozar férias” com risadinhas que sugeriam um sentido sexual. Um clima tenso e constrangido logo pairou sobre a mesa. Desconversaram – e achei graça disso.
Quando li Bordados, não pude deixar de pensar na minha avó (e nessas conversas) e perceber como ela era diferente da avó de Marjane.
Marjane Satrapi, quadrinista iraniana conhecida como a autora de Persépolis, relatou numa história em quadrinhos as conversas que as mulheres de sua família tinham após o almoço, quando os homens se retiravam da sala para tirar uma soneca vespertina. O samovar, nome que se dá ao recipiente que elas usavam para servir chá, também nomeava esse momento em que as mulheres conversavam abertamente sobre seus assuntos.
Essa graphic novel recebeu o título de Bordados, o equivalente iraniano para o brasileiríssimo “tricotar”. O termo também é o nome da cirurgia de reconstituição de hímen feita pelas iranianas que não abriam mão de ter uma vida sexual antes do casamento, mas que tinham que se submeter ao moralismo de sua cultura.
Apesar de viverem em uma sociedade tão machista, Marjane e as mulheres de sua família podiam conversar abertamente entre elas, inclusive sobre sexualidade. A avó de Marjane era uma das mais empolgadas e soltava a língua sem pudores.
Ainda que os “bordados” da família Satrapi fossem mais liberais do que as conversas na casa da minha avó, vejo muito em comum entre as duas situações: mulheres contando suas próprias histórias.
Certo, talvez eu gostaria que as conversas entre as mulheres lá de casa fossem mais abertas, apesar de todo o machismo da cultura brasileira, que não fica muito atrás da iraniana. Mas os “causos” compartilhados (afinal, venho de uma família mineira) não deixavam de ser divertidos, interessantes e de servir para nos colocar no centro das narrativas, como protagonistas.
Pensando bem, poucas conversas giravam ao redor de homens. Claro, haviam as histórias sobre o meu avô; mas a maioria delas era sobre relações de mãe e filha (e minha avó teve seis!), entre irmãs, entre amigas de bairro.
Em um mundo onde até as narrativas são dominadas por homens, com tantas histórias centradas em homens e contadas do ponto de vista masculino, o reconhecimento da nossa própria voz acaba ficando em segundo plano. Por isso as histórias que surgem fora desse padrão merecem algum destaque, como os quadrinhos biográficos de Marjane, ou a relação de mãe e filha do filme Valente, ou o amor entre duas irmãs de Frozen, ou ainda a forte ligação entre amigas no filme Malévola, só para ficar em exemplos mais recentes e populares.
Além disso, o quanto conhecemos as mulheres que nos cercam? Quantas histórias elas não devem ter para contar?
Mais do que mostrar a importância da nossa voz, esses “bordados” entre mulheres contadoras-de-histórias nos ensinam a valorizar essa troca de experiências; a ouvir as vivências e os “causos” das outras, mesmo que sejamos tão diferentes.
Precisamos aprender que nossas histórias importam – como a minha história com as mulheres da minha família. E isso ninguém pode tirar de nós.
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