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domingo, 17 de agosto de 2014

Nísia Floresta, a primeira feminista brasileira

Texto de Rafaella Brito.
“Por que [os homens] se interessam em nos separar das ciências a que temos tanto direito como eles, senão pelo temor de que partilhemos com eles, ou mesmo os excedamos na administração dos cargos públicos, que quase sempre tão vergonhosamente desempenham?”, Nísia Floresta (1).
Durante o século XIX, o Brasil vivia sob um regime escravocrata e patriarcal: as mulheres brancas se europeizavam, enquanto as negras eram amas-de-leite; outras, igualmente pobres, tornavam-se vendedoras e quitandeiras, transitando no espaço público com maior frequência que a elite portuguesa; escravos alforriados possuíam outros escravos, mão-de-obra alugada das lavouras, residências e cidades.
Em meio a este contexto de antagonismos e desigualdades, nasceu Nísia Floresta, que, como escreveu Luís Fernando Veríssimo“a falta de divulgação de sua obra têm sido responsável pelo enorme desconhecimento de sua vida singular e de seus livros considerados de grande valor”.
Nísia Floresta. Imagem: Biblioteca Nacional/Wikimedia Commons.
Nísia Floresta. Imagem: Biblioteca Nacional/Wikimedia Commons.
Nísia Floresta Brasileira Augusta era o pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto, nascida em Papari — hoje cidade Nísia Floresta — Rio Grande do Norte, em 12 de outubro de 1810. De origem burguesa, era filha do advogado Dionísio Gonçalves Pinto Lisboa, português liberal e de personalidade progressista, casado com uma viúva brasileira. Como pertencente à elite nordestina, Nísia casou-se aos 13 anos de idade com o proprietário de terras Manuel Alexandre Seabra de Melo. Entretanto, sentia-se infeliz, e abandonou-lhe meses depois, retornando à casa de seus pais.
Naquele tempo, os conflitos pela Independência sacudiam a América Latina e, devido à forte onda de sentimentos antilusitanos, a família foi obrigada a deslocar-se diversas vezes, tendo se estabelecido em 1824 em Olinda, Pernambuco, onde Dionísio atuou como advogado. Em 1828 – tendo Nísia 18 anos – o pai foi morto em uma emboscada nos arredores de Recife, por conta de uma causa judicial contra um integrante da poderosa família Cavalcanti. A respeito do fato, Nísia escreveu: “Esse advogado, que fizera triunfar o direito de seu pobre cliente, alvo da injustiça atroz de um tal tirano, caiu de improviso sob os golpes de assassinos pagos por ele” (2).
Nísia recebeu suas primeiras instruções na cidade de Goiânia, onde, desde o século XVII, havia um convento de carmelitas, e onde revelou grande aptidão para as letras e línguas estrangeiras. Seu primeiro livro, “Direitos das mulheres e injustiças dos homens”, foi publicado quando tinha 22 anos, e já na companhia de Manuel Augusto de Faria Rocha, estudante de Direito da Faculdade de Olinda, com quem teve três filhos. No mesmo ano da publicação, muda-se com sua família para Porto Alegre – estudiosos afirmam que tal fato deveu-se às constantes ameaças que recebia de seu primeiro marido que, inconformado com o abandono, estaria disposto a processá-la por abandono de lar e adultério.
A escolha de seu pseudônimo revela suas qualidades excêntricas: Floresta, referindo-se ao sítio onde nascera; Brasileira, referindo-se à necessidade da afirmação de seu nacionalismo; e Augusta, em homenagem a seu companheiro. Para Gilberto Freyre, Nísia Floresta era “uma exceção escandalosa” ao comportamento característico das mulheres de seu tempo: “Verdadeira machona entre as sinhasinhas dengosas do meado do século XIX. No meio dos homens a dominarem sozinhos todas as atividades extra-domésticas, as próprias baronesas e viscondesas mal sabendo escrever, as senhoras mais finas soletrando apenas livros devotos e novelas [...], causa pasmo ver uma figura de Nísia” (3).
A morte de Manuel Augusto, no ano de 1833, marcaria melancolicamente a autora, como relata em suas cartas autobiográficas; com o início da Guerra dos Farrapos, em 1835, os farroupilhas representavam uma ameaça à estabilidade dos lares e aos benefícios da “civilização” e do capital acumulado, desfrutados pela elite europeia. A atuação das mulheres durante a guerra concentrava-se muito mais em manter o status quo, e proteger suas propriedades. Por essas e outras razões, o discurso de Nísia pautava-se, também, na defesa do patrimônio.
Nísia permaneceu em Porto Alegre até 1837, tendo mantido vínculos de amizade com os revolucionários Anita e Giussepe Garibaldi. Com a tensão da guerra, mudou-se para a Corte do Rio de Janeiro, onde atuou como educadora, e inaugurou o Colégio Augusto.
Como educadora, Nísia defendeu suas posições revolucionárias em obras e ensaios, enfatizando a temática feminina, e sendo considerada a primeira mulher a romper barreiras entre o público e o privado, em tempos em que a imprensa nacional engatinhava.
No livro “Opúsculo Humanitário”, valeu-se de dados oficiais para posicionar-se contra os sistemas de ensino das escolas da Corte, onde meninas eram educadas por estrangeiros, aprendendo regras de etiqueta de como portar-se diante de salões e reunião sociais. E concluiu, ainda, acerca da falta de escolas para mulheres: “Acrescentemos agora ao medíocre número dessas escolas a confusão dos métodos, das doutrinas seguidas pelas professoras, quase sempre discordes em seus sistemas e, como já observamos, em grande parte sem as necessárias habilitações, e teremos, reduzido à expressão mais simples, o número da nossa população feminina que participa do ensino público e o grau de instrução que recebe” (4).
Em seu Opúsculo, criticou ainda a importância que os pais davam aos “triunfos que inebriam as filhas e lisonjeiam os pais”, inspirando o “gosto por futilidades, as quais, dando-lhes apenas ligeiros matizes de boa educação, só lhes atraem passageiros sucessos.”
O pensamento de Nísia foi fortemente influenciado pelo filósofo Augusto Comte, pai do positivismo, com quem conviveu durante suas viagens à Europa. O pensamento positivista entendia as mulheres como importantes figuras sociais, dotadas de uma “identidade positiva” fundamental para o crescimento das sociedades.
Em seu livro “Direitos das mulheres e injustiças dos homens”, influenciado pelo escritos de Mary Woolstonecraft (5) (6), Nísia propõe às mulheres novas perspectivas quanto ao seu papel na sociedade. A obra foi dedicada às brasileiras, de quem Nísia espera que:
“[...] longe de conceberdes qualquer sentimento de vaidade em vossos corações com a leitura deste pequeno livro, procureis ilustrar o vosso espírito com a de outros mais interessantes, unindo sempre a este proveitoso exercício a prática da virtude, a fim de que sobressaindo essas qualidades amáveis e naturais ao nosso sexo, que até o presente têm sido abatidas pela desprezível ignorância em que os homens, parece de propósito, têm nos conservado, eles reconheçam que o Céu nos há destinado para merecer na Sociedade uma mais alta consideração” (1).
O pensamento nisiano norteou a geração brasileira, como visto na obra de Joaquim Manuel de Macedo, “A Moreninha”, considerado o livro pioneiro do Romantismo no Brasil. Nísia Floresta enfatiza o valor à atividade feminina de criação e cuidado dos filhos, e escreve em tom desafiador:
“Se cada homem, em particular, fosse obrigado a declarar o que sente a respeito de nosso sexo, encontraríamos todos de acordo em dizer que nós nascemos para seu uso, que não somos próprias senão para procriar e nutrir nossos filhos na infância, reger uma casa, servir, obedecer e aprazer aos nossos amos, isto é, a eles homens.
[...] as mulheres, encarregando-se generosamente e sem interesse, do cuidado de educar os homens na sua infância, são as que mais contribuem para esta vantagem, logo são elas que merecem um maior grau de estima e respeito públicos” (1).
Referências
(1) FLORESTA, Nísia. Direitos das mulheres e injustiça dos homens. São Paulo: Editora Cortez, 1989.
(2) FLORESTA, NísiaFragmentos de uma obra inédita: notas biográficas. Brasília: Editora da UnB, 2001.   
(3) LIMA DUARTE, Constância (Org.). Nísia Floresta: a primeira feminista do BrasilFlorianópolis: Mulheres, 2005. 143 p.
(4) FLORESTA, NísiaOpúsculo Humanitário. São Paulo: Editora Cortez, 1989.
(5) CAMPOI, Isabela Candeloro. O livro “Direitos das mulheres e injustiça dos homens” de Nísia Floresta: literatura, mulheres e o Brasil do século XIX. História [online]. 2011, vol.30, n.2, pp. 196-213.
(6) ARAÚJO, Raquel Martins Borges Carvalho. Mary Wollstonecraft e Nísia Floresta: diálogos feministas (.pdf). Revista Água Viva, 2010.
Autora
Rafaella Britto é estilista, formada em desenho de moda, ilustração, figurinismo e estilismo. Amante das artes que, por acaso, ama música, cinema e poesia.

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