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sexta-feira, 26 de setembro de 2014

A revolução de Olympe de Gouges


OLYMPE

Reprodução

Publicado: 

No último dia 19 de setembro, 131 anos se completaram desde que a Nova Zelândia concedeu o direito ao voto às mulheres, se tornando o primeiro país no mundo a realizar tal feito -- e muito se deve à líder política Kate Sheppard, que tomou a frente na luta por direitos igualitários e após cinco petições (e um terço de assinaturas da população feminina), finalmente viu sua luta sair vitoriosa. Luta esta que um século antes teve sua bandeira hasteada na França por Olympe de Gouges (1748-1793), dramaturga e ativista política que, insatisfeita com o fato de que a participação das mulheres em momentos importantes da Revolução Francesa como a marcha feminina que partiu de Paris a Versalhes obrigando que a família real retornasse à Paris e a queda da Bastilha, não tenha garantido maiores direitos às mulheres -- que ficaram de fora da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, redigiu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, contando com o apoio solitário do Marquês de Condorcet, escritor do Ensaio sobre a admissão das mulheres na cidade e acusado por alguns de ser o verdadeiro redator dos panfletos de Olympe, em uma clara demonstração de descrédito da inteligência feminina.
Olympe foi relembrada em 2012 pelos quadrinistas Catel Muller e José-Louis Bocquet através da graphic novel biográfica Olympe de Gouges - Feminista. Revolucionária. Heroína., lançada este ano no Brasil pela editora Record. Após três anos de pesquisa, Catel & Bocquet refizeram os passos de Marie Gouze, filha ilegítima da lavadeira Anne-Olympe Mouisset e do Marquês de Pompignan, embora tenha sido criada como filha do açougueiro Pierre Gouze em Montauban, na França.
Apesar de ser filha ilegítima do Marquês (também Juiz de Montauban), os dois mantiveram contato até o segundo casamento de sua mãe. Foi através do pai que Marie Gouze foi alfabetizada e tomou gosto por literatura e política, se tornando leitora voraz de Jean-Jaques Rousseau. Ainda adolescente, Marie foi forçada a se casar com um homem muito mais velho e abusivo, que a obrigava a manter relações sexuais, e logo cedo pariu seu único filho, Pierre. Com a morte do marido, Marie Gouze se vê livre, e se recusa a viver como vúva ou casar-se novamente. É aqui que ela assume sua nova identidade como Olympe de Gouges e se muda para Paris, onde passa a viver como cortesã.
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Em Paris, Olympe se dedica à leitura e escrita, redigindo peças e romances de cunho social e panfletos políticos que defendiam a democracia e os direitos humanos igualitários. Aqui vale ressaltar que os artistas foram inteligentes em demonstrar o contraste do pensamento à frente do tempo de Olympe com o da sociedade de sua época, diversas vezes ilustrando o contraste entre sua personalidade e o credo comum da época. Em um exemplo de narrativa bem amarrada, em determinado momento vemos Olympe ainda menina aprendendo a cortar um leitão e questionando a violência do ato, prontamente minimizada com a justificativa de que "animais não têm alma". Um pouco mais tarde, ao se deparar pela primeira vez com uma mulher negra na rua, Olympe se intriga com sua aparência e recebe a resposta de que não se trata de um ser humano. "Como o leitão?", ela pergunta, para ouvir que a mulher não é "nem gente, nem animal: não é nada". Estas passagens são importantes não somente para escancarar o pensamento de uma parte da sociedade da época, como também para nos levar a perceber desde cedo o pioneirismo de Olympe, que em defesa da igualdade racial, chegou a escrever a controvertida peça anti-escravagistaZamora e Mirza (ou A Escravatura dos Negros), que levou mais de dez anos até ser aceita e encenada.
Olympe ainda demonstra a sua decepção com os homens ao se dar conta de que ainda que tenham sido oprimidos e contado com a ajuda das mulheres para se libertarem, não se furtavam de eles mesmos oprimi-las. Esta é uma outra questão mostrada com inteligência nos quadrinhos: em um trecho quase atual, o político girondino Jacques-Pierre Brissot ri da declaração de Olympe de que as mulheres deveriam ser "eleitoras e elegíveis", perguntando se as mulheres presentes não acham que o jogo político está suficientemente complicado - ao que Olympe responde: "Logo você, Brissot, tão generoso na defesa da causa dos negros! Mas a sorte das mulheres o deixa indiferente?", sintetizando um problema que até hoje feministas enfrentam mesmo entre a esquerda.
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Cada vez mais envolvida com política - Olympe é conhecida como uma das precursoras do feminismo, em uma época que o termo não existia -, e em meio a um cenário onde os lemas de liberdade, igualdade e fraternidade não se estendia completamente às mulheres, que chegaram a formar uma comissão para prostestar na Assembleia Nacional -, Olympe finalmente vem a redigir em 1791 a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã. Em seu artigo mais emblemático, Olympe defende que "a mulher tem o direito de subir ao cadafalso; ela deve igualmente ter o direito de subir à Tribuna", uma posição que influenciaria a inglesa Mary Wollstonecraft, que no ano seguinte publicaria o seu Uma defesa dos Direitos da Mulher, servindo como uma das fontes de inspiração para as sufragistas no século seguinte. Em suaDeclaração, Olympe ainda assume o sexo feminino como "superior, não só em beleza como pela coragem demonstrada nos sofrimentos maternos" e vai além: ela defende que as mulheres têm o direito de revelar a identidade dos pais de seus filhos e que filhos ilegítimos tivessem os mesmos direitos dos legítimos (provavelmente influenciada por sua própria história). Dedicada à Maria Antonieta, Olympe não consegue entregar sua declaração à rainha e nem tê-la aprovada pela Assembleia Nacional, conseguindo angariar simpatia somente pela causa do divórcio - que beneficiaria igual e diretamente os homens.
Por sua associação com os girondinos e seu panfleto As três urnas ou o bem-estar da pátria, que nem mesmo chegou a ser publicado, Olympe acaba sendo acusada de propaganda monarquista, acaba presa e condenada à morte. Foi guilhotinada em 3 de novembro de 1793 e diz a lenda que enquanto se dirigia ao cadafalso, Olympe teria bradado: "Filhos da minha pátria, vinguem a minha morte!". A imprensa da época tratou de colocar Olympe "em seu lugar" quando da sua morte, escrevendo que "Olympe de Gouges, nascida com imaginação fértil, confundiu seu delírio por uma inspiração da natureza. Ela quis ser um homem do estado. Ela assumiu projetos de pessoas pérfidas que querem dividir a França. Parece que a lei puniu essa conspiradora por ter se esquecido das virtudes que pertencem a seu sexo."
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Como você deve imaginar, toda essa história não é tão simples de ser contada por meio de quadrinhos e para que nada ficasse de fora, a solução foi trazer um caprichado apêndice com cronologia, pequenas biografias dos personagens envolvidos na revolução de Olympe e bibliografia, resultando em um respeitável catatau de quase 500 páginas cuja história interessantíssima é contada em uma narrativa que flui de maneira deliciosamente simples e divertida através dos traços de Catel, em quadros cheios de detalhes e sutilezas que devem ser observados com atenção.
É de se festejar que, em uma época em que o sistema educacional "apaga as contribuições histórias das mulheres, não oferece um retrato preciso do passado e não mostra casos suficientes de mulheres exemplares", como bem apontou Soraya Chemaly em seu artigo para o Brasil Post, as histórias de mulheres pioneiras e revolucionárias como Olympe de Gouges sejam resgatadas e impedidas de permanecer no esquecimento.

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