Inter Press Service - Reportagens
25/9/2014
por Marianela Jarroud, da IPS
Santiago, Chile, 25/9/2014 – O Chile, um dos países mais conservadores da América Latina, se prepara para uma discussão sem precedentes sobre a despenalização do aborto terapêutico, que deve ser aprovado este ano. Nesse país são praticados anualmente mais de 300 mil interrupções clandestinas da gravidez, em um flagelo que é filho e pai de muitos outros dramas.
“O aborto no Chile é como um negócio de drogas, cercado de ilegalidade e precariedade”, disse à IPS Alicia, de 27 anos, que há cinco fez um aborto. “Uma amiga me indicou um ginecologista. Eu o procurei e ele marcou dia, hora e o lugar para nos encontrarmos”, explicou. “Minha mãe me acompanhou. Em uma esquina qualquer da cidade, entrei em uma caminhonete que me levou sem rumo conhecido. Ainda recordo o rosto da minha mãe, a angústia de não saber se eu voltaria e em que condições”, acrescentou.
“Em uma casa me esperava o médico e uma mulher, não sei se era uma parteira ou enfermeira. Me anestesiaram. Quando acordei tudo estava feito. Me colocaram na caminhonete e me devolveram à minha mãe. Nunca mais falamos do assunto”, contou Alicia com uma sombra de tristeza no rosto.
A legalização do aborto é uma das grandes dívidas que o Estado chileno tem com as mulheres, disse à IPS a presidente da Corporación Humanas, Carolina Carrera. A legislação chilena “altamente punitiva” constitui uma “violação aos direitos humanos das mulheres porque esse nível de penalização faz com que as que abortam o façam em condições insalubres, correndo riscos físico e psíquico”, afirmou, acrescentando que essa situação também potencializa o tráfico de Misoprostol, medicamento utilizado para interromper a gravidez e que é vendido muito caro sem receita médica.
Claudia, de 24 anos, teve que ir a uma casa em um dos morros do porto de Valparaíso, 140 quilômetros a noroeste de Santiago, para comprar esse medicamento e interromper uma gravidez indesejada. “O lugar era perigoso. Tive que pagar US$ 600. Olhava em volta e pensava: e se algo acontecer comigo, chamo uma ambulância ou a polícia? Não, vou embora rapidamente”, recordou.
Na América Latina, uma região onde o poder da Igreja Católica segue muito alto, o aborto geralmente é ilegal, embora os países, em sua maioria, o permitam em todos ou alguns casos sugeridos pela Organização das Nações Unidas (ONU): violação, risco para a vida da mãe ou inviabilidade do feto.
O Chile é um dos sete países do mundo que proíbem o aborto em qualquer circunstância. Há outros quatro latino-americanos: El Salvador, Honduras, Nicarágua e República Dominicana; e mais Malta e Vaticano no resto do mundo. O aborto terapêutico foi legal no Chile por mais de 50 anos, até que a penalização absoluta foi imposta em 1989, no ocaso da ditadura militar (1973-1990). Os sucessivos governos democráticos não tocaram no assunto até agora. Desde então, as penas para quem aborta chegam a cinco anos de prisão.
“A frequência do aborto se manteve nos últimos dez anos no Chile. Não diminuíram os casos e tampouco houve grande variação por idade: continuam sendo as mulheres entre 25 e 34 anos as que apresentam taxas maiores de aborto”, detalhou à IPS Ramiro Molina, do Centro de Medicina Reprodutiva e Desenvolvimento Integral do Adolescente, da Universidade do Chile.
Segundo Molina, existem registros de apenas aproximadamente 33.500 entradas anuais de mulheres com complicações por um aborto, um número “muito enganoso”, pois contempla somente as que procuraram um centro de saúde público por uma emergência posterior. O médico explicou que a estimativa é que o número seja dez vezes maior, se forem somados os não registrados e que o número real chegaria a 335 mil por ano.
Nos países da América Latina onde a legislação é restritiva, os abortos são praticados em condições de alto risco para as mulheres, o que constitui um problema de saúde pública e uma forma de desigualdade. “O aborto é um indicador socioeconômico da pobreza”, afirmou Molina.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a cada ano são realizados no mundo 21,6 milhões de abortos induzidos, feitos em condições inseguras. Na América Latina, são 4,4 milhões, dos quais 95% de forma clandestina, o que ocasionou 12% dos casos de mortalidade materna na região.
Molina, uma das principais referências da região em sua área, assegurou que houve avanços nas duas últimas décadas, “mas, muito lentos”. Isso porque ainda prevalece a visão “filosófica de cunho religioso” que impede maiores avanços. O médico destacou que Cuba, o Distrito Federal do México e, desde 2012, o Uruguai, são os únicos lugares da América Latina em que se permite à mulher exercer o direito de decidir sobre a interrupção da gravidez.
No Chile, o governo de Michelle Bachelet, no poder desde março, se prepara para iniciar a discussão do aborto terapêutico para os três motivos sugeridos pela ONU. “O aborto será despenalizado este ano no Chile”, reiterou. Em seu primeiro governo (2006-2010) Bachelet autorizou a distribuição gratuita do Levonogestrel, a pílula do dia seguinte, mas sua entrega segue subordinada à ideologia dos prefeitos, responsáveis pelos centros primários de saúde pública.
Essa pílula chegou tarde para Francisco e Daniela. Quando ela entrava na universidade, “ficamos grávidos”, contou ele à IPS. Tiveram muitas dúvidas, viviam com seus pais e só ele trabalhava meio período. “Sentia que cortava a vida dela, seus sonhos, suas perspectivas”, afirmou o jovem, que como pôde reuniu os US$ 600 para o aborto. Agora, aos 35 anos, são pais de uma menina, mas recordam do ocorrido como um trauma, “por ter sido clandestino, inseguro e injusto”.
Embora faça parte de seu programa de governo, o aborto ainda é um tema tabu no Chile. Muitos temem as consequências políticas nesse país de 17,8 milhões de habitantes, onde mais de 65% da população se declara católica.
América Latina, feudo do aborto ilegal
Quase 95% das latino-americanas vivem em países onde o aborto é proibido ou muito restringido. Sua prática é punida de forma absoluta no Chile, El Salvador, Honduras, Nicarágua e República Dominicana.
Mas isso não impede que a taxa de abortos na região ultrapasse a média mundial, e os converte em procedimentos inseguros e clandestinos, como exemplifica a República Dominicana, onde em 2010 a vida passou a ser um direito constitucional desde a concepção. Mas ali são praticados 90 mil abortos por ano e se interrompe uma gravidez em cada quatro.
No Brasil, Guatemala, Panamá, Paraguai e Venezuela o aborto é permitido em caso de risco de vida da mãe, enquanto na Argentina, Bolívia, Costa Rica, Equador e Peru se soma a preservação da saúde física da mãe e na Colômbia também incorpora a saúde mental.
A violação como motivo para o aborto só é legal na Bolívia, Brasil, Equador, Colômbia e Panamá. Nestes dois últimos também se somam a má formação do feto, enquanto no Brasil o aborto pode ser feito quando o feto carece de parte do cérebro.
A Guatemala é exemplo dos efeitos da prática clandestina. Das 65 mil mulheres que anualmente realizam um aborto nesse país, 21.500 precisam ser hospitalizadas por maus procedimentos. Na Argentina, onde um tribunal deve avaliar o aborto terapêutico, há uma hospitalização para cada duas gravidezes interrompidas.
A prática só é legal em Cuba e no Uruguai, onde o número de abortos caiu notavelmente desde a legalização, em 2012. No México também é legal desde 2007 no Distrito Federal. Mas isso provocou uma contra-reforma interna e 17 de seus 31 Estados passaram a proibi-lo totalmente. Envolverde/IPS
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