Verônica Daminell
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Quem nunca chamou um negro de macaco, quem nunca chamou uma mulher de puta, quem nunca chamou um nordestino de paraíba, quem nunca chamou um homossexual de veado, quem nunca falou "tinha que ser brasileiro", quem nunca chamou louras de burras ou criticou coroas com os seus garotinhos, aceitando tiozinhos com suas Lolitas? Quem nunca chamou um judeu de avarento, uma pessoa lenta intelectualmente de retardada ou um pobre de pobre, transformando adjetivo em substantivo? Quem nunca?
Claramente, muitas pessoas já o fizeram, mas não no Brasil, gigante e miscigenado pela própria natureza. Claramente, todos os nazistas da Alemanha e do mundo, mas não no Brasil, um paraíso multirracial e sexualmente livre, imaginário dos sonhos de todos os liberais de plantão. Daí, ter que concordar que a torcedora gremista mereça ser praticamente linchada por expressar o que essa nação-mãe-gentil tão passiva-agressiva, com sua doçura musical, continue fazendo com seus filhos não tão brancos assim. O Brasil não somos racista. Risos?!
Com muitas vezes não se sabe, o Brasil foi o último país da América Latina a abolir a escravidão. Como atualmente se vê, o Brasil vai caminhando para se tornar provavelmente o último país da América do Sul a descriminalizar o aborto, o consumo de drogas e aceitar o casamento homossexual. Nossa modernidade vai até ali, na fronteira com o Uruguai, onde tudo isso já foi feito e a vida parece ser mais tediosa porque não há tantos debates assim. Mas o Brasil - e não só o Rio - gosta do purgatório e do caos.
Nesse sentido, a torcedora do Grêmio é o Judas da vez. Sem meias e delicadas palavras, a loirinha fake "made in Brazil" - porque culpabilizar os gringos sempre não dá - gritou a nossa crueldade xenófoba e racista sem o mínimo de polidez politicamente correta. A gremista é o próprio Brasil encarando a sua dificuldade em ser ele mesmo. Demagogos e moralistas que somos, temos políticas sociais inclusivas que dão cotas aos negros e vagões rosas para proteger as mulheres. Somos todos uma espécie de Luciano Hulk para a classe média. Comemos a banana junto com o Daniel Alves, porque somos todos macacos, mas queremos nos casar com Angélicas, loiras de olhos azuis. Que o dia Pelé, o Rei - da bola e do racismo e alienação interiorizados.
De fato, é mais fácil culpabilizar a torcedora do Grêmio do que repensar uma sociedade que insiste em não discutir e problematizar o racismo, a misoginia e a homofobia em vésperas de eleições. Vamos empurrando toda a sujeira para dentro do vagão rosinha. Ou identificamos os racistas todos com a camisa azul e preta do Grêmio. Ou limitamos os gays aos distritos sexuais da Farme de Amoedo, único espaço para o Rio ser de Gayneiro. Porque assim, ao isolar pontualmente o nosso preconceito, podemos dormir em paz, com a nossa falsa moral burguesa, disfarçados de bonzinhos-puritanos como diria Luiz Filipe Pondé.
O Brasil pode não ser mais o país católico que era, mas insiste na Inquisição, metafórica e literal, de pessoas isoladas, principalmente se estas tiveram a má sorte de serem filmadas por câmeras da Globo. Até porque, como também sabemos, o nosso caso é sempre diferente, e a empregada doméstica negra que trabalha em muitas das casas brasileiras recebe salário para estar ali. Com cotas e folhas de pagamento, não há racismo no Brasil. Com certeza, não somos mais como a Bertoleza de Aluízio de Azevedo. Não somos mais um cortiço. Agora, "favela" é "comunidade" e "ônibus" é "coletivo". Brasil: um país de todos. Mais risos?!
Se o mito de que o Brasil não é um país racista, como disse à Carta Capital o professor da USP Kabengele Munanga, já desmoronou, o que parece nunca terminar é a dificuldade que temos em admitir que nós - eu, você, ela, eles, o país - somos racistas. Porque a perpetuação dos preconceitos nas suas mais diferentes formas é diariamente consolidada pela cultura, mídia e tradição, pelos discursos que nos constroem. Ou seja, os mesmos jornais que se "escandalizam" com a torcedora sulista são transmitidos pelas emissoras de TV que ainda reservam aos negros os papéis de serviçais e favelados nas ficções. O racismo brasileiro está na mente. Nem a Lei parece nos proteger de nós mesmos. Daí o Brasil ser um país que tem dificuldade de ver o negro como ser humano. Somos sempre pardos, mestiços ou morenos, tendo introjetado uma ideologia eurocêntrica que vê no branqueamento uma forma de superioridade biológica ou uma espécie de "exteriorização" da bondade. A torcedora do Grêmio, tolinha, também não escapa dos discursos e do sistema que a constitui, reproduzindo o preconceito de quem inclusivamente é vítima dele. Ou é preciso relembrar aqui quantas mulheres não julgaram Jeniffer Laurence por tirar fotos nuas em vez de criticar o hacker que invadiu o computador da atriz, expondo a sua nudez e privacidade? Se o preconceito se mantém é porque, ainda que identificado, ele ainda está vivo e falante dentro de nós.
O incômodo que a torcedora do Grêmio traz deveria ser porque coloca o dedo na ferida. O Brasil não é (só) loiro, branco, hétero ou gremista. Patrícia Moreira - e aqui vale o nome - escancara e grita essa raiva que ainda parecemos ter por sermos o que somos, plural e coloridos. O problema não está só nela. Colocá-la no pelourinho ou na cruz midiáticos é, de fato, mais fácil porque continuamos perfeitos aos nossos próprios olhos. Fingimos ser o povo cool que aprendeu a se misturar sem pensar que a mestiçagem sempre foi, sim, um discurso disfarçado de ciência que legitimou o branqueamento e a heteronormatividade como forma de se ascensão social, política e econômica. Podemos continuar fingindo que acreditamos no luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, mas a "Casa Grande e Senzala" não perdeu as suas dimensões. Muito pelo contrário: virou pauta para Fátima Bernardes e seus convidados brancos, VIPS e de bom coração. E eles podem atirar mais algumas pedras. Como bons brasileiros que são, nunca chamaram um negro de macaco, uma mulher de puta ou um nordestino de paraíba...
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