A paternidade nos aproxima de um sentimento suave e agridoce de perdão por nossos pais, que agora somos nós
IVAN MARTINS
Meu pai morreu quando eu era criança, há mais de 40 anos. Como muitos homens de seu tempo, e muitos dos tempos atuais, foi ausente e autocentrado. Ao final, destrutivo. Não fez por merecer a homenagem de uma memória duradoura. Ainda assim, a tem. Segue vivo nas minhas lembranças, nos meus traços e no meu temperamento. Também se prolonga, de forma mais amena, no sorriso dos meus filhos, homens bonitos como ele. Esse pai cada vez mais distante é uma presença tão intensa - e tão costumeira - que me pergunto se um dia desaparecerá. Ou se, do contrário, se tornará cada vez mais pungente, como o fantasma do pai de Hamlet, à medida que eu me torne mais velho. A pergunta é retórica. Sei a resposta.
Durante um tempo, achei que a relação complicada com a figura paterna fosse uma experiência apenas minha. Aos poucos, percebi que não. Boa parte dos homens carregam pela vida emoções semelhantes, embora sejam filhos de pais diferentes do meu. O filósofo francês Jean-Paul Sartre, cujo pai morreu quando ele era bebê, dizia ter sido privilegiado pela ausência de uma figura paterna capaz de moldá-lo ou influenciá-lo. Ele julgava ser mais livre que o resto dos homens. Li essa afirmação muito jovem. Achei que fazia sentido. Hoje acho bobagem. Não há pai mais influente que o pai que não existe. Ele deixa tamanho vazio, provoca tantas interrogações, que seu filho pode gastar a vida tentando entender-se. A figura paterna é uma referência monumental. Tão grande que, se não existir, terá de ser criada.
O cinema, arte popular que se alimenta dos sentimentos bons e maus das multidões, ilustra isso esplendidamente. Em filmes como Juventude transviada, de 1955, Guerra nas estrelas, de 1977, e o Campeão, de 1979, todos de enorme sucesso, as relações entre pai e filhos estão no centro da trama. É assim também com super-heróis do cinema recente: Batman, Super-Homem, Homem Aranha, Thor. Todos querem provar, dizer ou perguntar algo ao próprio pai. Ou à lembrança dele. Parece ser uma necessidade – ou uma lacuna – universal.
O jeito mais simples e mais bonito de lidar com a herança emocional do pai é ter um filho. No momento em que você ouve as palavras “é menino”, cria-se uma ponte instantânea entre o pai que você teve e o pai que você acaba de se tornar – assim como entre o filho que você foi e o filho que recém-nasceu. É uma espécie de reencontro. Materializa-se, concretamente, a possibilidade de fazer tudo de novo, fazer tudo direito, corrigir os erros. Resolver, no tumulto real da vida, em oposição ao mundo intangível das lembranças e sentimentos, as dificuldades das relações entre pais e filhos. Tem sido assim comigo e com muitos homens que conheço.
Outro dia, um amigo me mostrou algo que ele e seu filho pequeno têm feito juntos. É uma lista de coisas em que os dois acreditam. Começa com a importância de aventurar-se e de experimentar coisas novas. Termina, provisoriamente, com o dever de ser solidário e de ajudar a quem necessita. No meio, há coisas como “aprender a perder” e uma pergunta: o que é mais importante, estar certo ou ser feliz? A resposta de pai e filho é “ser feliz”.
A primeira coisa que me veio ao ler o decálogo do amigo com seu filho foi inveja. Por que não tive uma ideia linda dessas quando meus filhos eram pequenos? Passado esse momento mesquinho, fui tomado pela admiração. Num mundo repleto de valores contraditórios, ou tomado pela falta absoluta de valores, meu amigo tenta criar, num gesto de amor, uma espécie de camada protetora em torno do filho. Esses princípios simples, descobertos e partilhados entre eles, podem orientar o pequeno na ausência do pai, quando ele tiver de fazer suas próprias escolhas. Mais que qualquer objeto, mais que a fortuna, o decálogo é um presente para a vida - mesmo do meu amigo.
No passado, quando os filhos cresciam na mesma casa com pai e mãe, os sentimentos no interior da família não eram simples. Todos sabemos disso. Agora que o conceito de família se ampliou, para envolver novos adultos e novas crianças, as coisas se tornaram ainda mais complicadas. Mas não piores. Pais separados têm a oportunidade de desenvolver com seus filhos uma relação mais intensa e mais íntima do que antes. A responsabilidade de olhar, cuidar e compartilhar não se dilui “na família”, como os pratos sujos sobre a pia ou o lixo acumulado na varanda. Ela é pessoal, intransferível. Ao pai, cabe estabelecer uma relação intensa e singular com seus filhos, sem a intermediação do amor e dos cuidados maternos. Tendo vivido isso, e vendo outros homens viver, concluo que é uma das experiências mais bonitas que se podem ter.
O passado não vai embora. As coisas perdidas nunca serão inteiramente recuperadas. A vida nos oferece, apesar disso, oportunidades de refazer de outra forma, numa outra esfera. A paternidade é uma delas. Nos permite ser homens melhores e criar homens melhores. Nos permite ser crianças novamente. Nos permite esboçar alguma compreensão e nos aproximar – apenas nos aproximar, mas já é algo – de um sentimento suave e agridoce de perdão por nossos pais, que agora somos nós.
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