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sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Aplicabilidade da Lei Maria da Penha: Um olhar na vertente do gênero feminino

Dayane de Oliveira Ramos Silva

Resumo: A lei nº. 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, foi resultado de tratados internacionais firmados pelo Brasil, com o propósito de não apenas proteger a mulher, vítima de violência doméstica e familiar, mas também prevenir contra futuras agressões e punir os devidos agressores. A presente monografia tem por objetivo demonstrar que a Lei Maria da Penha almeja prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher, não por razão do sexo, mas em virtude do gênero. Nesse sentido, o que de fato a Lei busca é mais do que proteger o sexo biológico “mulher”, é resguardar todos aqueles que se comportam como mulheres, incluindo os travestis e transexuais. A base literária da pesquisa baseia-se no pensamento da Desembargadora Maria Berenice Dias, que afirma estarem sob abrigo da Lei às lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros e o método aplicado para a execução desse trabalho foi o bibliográfico. Diante do exposto, evidenciam-se os princípios da igualdade sem distinção de sexo e orientação sexual, da dignidade da pessoa humana e da Liberdade sexual como elos entre as visões doutrinárias e as legislativas. Sendo assim, o estudo conclui que a Lei Maria da Penha deve ser aplicada às lésbicas, aos travestis e aos transexuais, uma vez que privá-los de uma proteção, configuraria uma forma terrível de preconceito e discriminação, algo que a Lei Maria da Penha busca exatamente combater
Por muito tempo a condição homossexual foi tratada com intolerância, desrespeito e estigma de indignação para uma cultura norteada pelo princípio do “Crescei e multiplicai”.
Atualmente, as relações homoafetivas estão ganhando espaço na sociedade e cada vez mais sendo respeitadas. Por outro lado, ainda não se tem o reconhecimento jurídico positivo do Estado em relação a uniões entre pessoas do mesmo sexo.
A realidade do parágrafo anterior desenha um problema preocupante: sabendo que a Lei Maria da Penha visa prevenir e erradicar os crimes domésticos praticados contra as mulheres e tendo o conhecimento de que ainda não se tem o reconhecimento jurídico dos casais homossexuais, seria possível aplicar a Lei Maria da Penha a lésbicas, travestis e transexuais vítimas de agressões de suas companheiras ou companheiros?
A bem da verdade, este trabalho não tem o propósito de questionar a constitucionalidade da Lei nº 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, tampouco criticar as opiniões de autores que defendem a não aplicação da Lei aos casais homossexuais, travestis e transexuais. Nosso verdadeiro objetivo é demonstrar que a Lei Maria da Penha, que tipifica e define a violência doméstica e familiar contra a mulher, visando à proteção da integridade física, psíquica, moral, patrimonial e sexual da mulher, independentemente da sua orientação sexual, também protege o gênero feminino.
Assim, a Lei Maria da Penha, por sua vez, não se aplicaria apenas ao sexo “mulher” vitima de violência doméstica, em que o agressor tenha sido o companheiro ou marido, pai, filho ou irmão, mas também ao gênero feminino, quando este possui uma relação homoafetiva e sofreu de seu companheiro uma agressão.
A justificativa para o tema está na necessidade de assegurar a lésbicas, travestis e transexuais direitos e garantias fundamentais, demonstrando um “novo olhar” sobre estes segmentos da sociedade, que emergem de forma rápida e significativa.
Baseando-se no ordenamento jurídico, na doutrina, na jurisprudência e nos Princípios Gerais de Direito, foram formulados alguns questionamentos:
a) No que consiste a Lei Maria da Penha?
b) Qual a ligação da lei com as relações homoafetivas?
c) Quais os princípios norteadores dessa ligação?
d) Quais os aspectos positivos e negativos (se existem) da aplicação da lei Maria da Penha nas relações homoafetivas?
Importante ainda esclarecer que, para execução desse trabalho, o método aplicado foi o bibliográfico.
Este trabalho foi dividido em quatro capítulos. No primeiro, para melhor entender o conteúdo da Lei Maria da Penha, apresenta-se um breve relato histórico acerca da posição da mulher na sociedade. Além disso, neste capítulo analisa-se também a origem da Lei nº 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, bem como o motivo de sua denominação, os sujeitos envolvidos nos crimes domésticos e o conceito de violência doméstica e suas diversas formas. O segundo capítulo direciona-se para a análise dos princípios constitucionais em defesa dos direitos dos homossexuais, travestis e transexuais. No terceiro capítulo, apresenta-se a questão da violência de gênero, trabalhando a ideia de que gênero e sexo são termos distintos, mas que merecem o mesmo tratamento constitucional. Por fim, o quarto capítulo apresenta alguns posicionamentos jurisprudenciais, que admitem o reconhecimento dos casais homossexuais. Frente a essa constatação, analisa-se a relação que existe entre o reconhecimento das uniões homoafetivas com a aplicação da Lei Maria da Penha.
Com este itinerário, espera-se alcançar o intuito que ensejou a preferência por este estudo: analisar a abrangência de aplicação da Lei Maria da Penha. Todavia, advirta-se ao leitor o caráter limitado desta monografia, que de forma alguma visa esgotar o tema proposto.

ASPECTOS GERAIS DA LEI MARIA DA PENHA
É importante ressaltar que, antes de assumir uma postura favorável ou contrária quanto à aplicação da Lei Maria da Penha, nas relações homoafetivas, seria importante conhecer e entender melhor do que se trata a lei, sua origem e seus objetivos, tendo como ponto de partida uma breve exposição histórica acerca da posição da “mulher” na sociedade.

BREVE RELATO HISTÓRICO
Ao longo da história, as mulheres sempre foram vistas, socialmente falando, submissas às vontades e desejos do homem, quase sem direitos, porém com várias obrigações. A opressão é notória no trecho abaixo:
“A mulher durante séculos foi vítima da opressão e de teorias machistas, no entanto, nenhum obstáculo foi capaz de ofuscar o brilho feminino e impedir o seu desenvolvimento na sociedade. Contudo o processo de emancipação da mulher foi uma tarefa árdua, que perdurou durante séculos até alcançar o status que possui hoje. De sexo frágil, a mulher passou a ser responsável pelo mais novo processo que o mundo vem sofrendo: a revolução feminina, onde as mulheres deixaram de ser apenas dnas [sic] do lar, para participar efetivamente da construção da história.” (GALIZA, 2008, p. 01)
Analisando desde a criação da humanidade, vê-se que já na pré-história, precisamente no período neolítico, fase na qual foram criadas as primeiras sociedades, começou a surgir as divisões de tarefas. À mulher apenas cabia gerar o filho e amamentá-lo e ao homem incumbia o sustento familiar. Como preleciona Silva (2010, p.01):
“[...] os neolíticos trabalhavam coletivamente, saindo em numerosos grupos para as poucas atividades de caça e pesca. As mulheres eram responsáveis por garantir o bem-estar das pequenas aldeias, permanecendo com os filhos e cuidando da agricultura [...]”.
Passando pelo período antigo e entrando na Idade Média, conhecido como Idade das trevas, os clérigos, nome dado aos homens da igreja, avaliava as mulheres como criaturas do diabo, pecadoras. (SILVA, 2010)
Foi nesse período que se realizou uma das maiores perseguições ao sexo feminino, conhecido como “caça as bruxas”, no qual a Santa Inquisição encarregou-se de “purificar” a alma das mulheres, pondo-as vivas em grandes fogueiras, para que elas fossem ao céu totalmente isentas de sua característica de pecadora. Vejamos, abaixo, a citação:
“A “caça as bruxas” foi um movimento pelo qual a igreja, através do Santo ofício (inquisição), caçou os rituais pagãos que tinham a mulher como base da fertilidade e o corpo feminino como centro da vida. Contra esse movimento a igreja Católica comandou um massacre chegando ao ponto de em um único dia executar três mil mulheres.” (GALIZA, 2008)
Além disso, foi nessa época que se usou o cinto de castidade, instrumento de aço utilizado dolorosamente em suas vaginas, a fim de impedir a “consumação carnal”.
Percorrendo a Idade Moderna, observa-se que a mulher era apresentada como propriedade do homem. Quando criança, quem detinha a propriedade era o pai, e quando adulta, o marido. Nesse contexto, surge a sociedade patriarcal, na qual apenas o homem era o chefe da família, cabendo à mulher a função doméstica e a de procriação.
Neste contexto, leciona (VIEIRA et al., 2006, p.01):
“A mulher não pode viver sem um homem. A partir do momento que nascesse sua vida estaria para sempre subjugada ao homem. Primeiro estava submissa ao pai que era seu responsável e a preservava até seu casamento, a partir daí o marido ocupava o lugar e ela como mulher virtuosa lhe devia obediência. O casamento tinha grande importância na Idade moderna, era uma instituição econômica e social, pois o marido dava-lhe o sustento e o nome, em retribuição ela seria companheira e mãe. Na alta sociedade as mulheres ao casarem se tornavam donas de casa, administravam as propriedades com a ajuda dos feitores e agentes, enquanto as classes mais baixas tinham que trabalhar para ajudar no sustento. O objetivo primeiro do casamento era a reprodução da espécie e assegurar a educação e o sustento dos filhos”.
Na idade Contemporânea, mais precisamente no final do século XIX, manchetes como “Matou a esposa com uma punhalada”, “Neurastenia sangrenta”, “Do ciúme ao crime” eram freqüentes nos jornais e agitavam a população do Rio de Janeiro. Até o início do século 19, era permitido ao marido “traído” o direito de matar a sua esposa e o rival. (ENGEL, 2005)
Foi nesse contexto que, no decorrer do século XX, o movimento feminista floresceu e os atos internacionais de proteção à mulher se multiplicaram.
O feminismo foi um movimento, que buscou principalmente a igualdade de direitos, respeitando as diferenças entre sexos. Seu objetivo era reconhecer a mulher em igualdade com o homem, acabando, assim, a ideia de superioridade do sexo masculino sobre o feminino.
“’Quem ama não mata’ foi um dos primeiros slogans do movimento feminista no final dos anos 70, quando atuantes desse movimento foram às ruas, para protestar contra alguns assassinatos de mulheres, cometidos por seus maridos, companheiros, namorados ou amantes.” (GROSSI, 2010).
A partir desse momento, a violência passou a ser um dos temas objetos de reivindicações dos movimentos de mulheres, tanto no âmbito nacional, quanto no âmbito internacional. (SOUZA et al., 2010). Observemos tal visão:
“A primeira mulher a escrever sobre os direitos da mulher no Brasil foi Nísia Floresta, do Rio Grande do Norte. Ela escreveu um livro, no início dos anos 1800, intitulada Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens. Ela defendeu, principalmente, o direito das mulheres à educação. [...]” (PROGRAMA..., 2007, p.11)
Finalmente, “depois de ter passado por várias fases, com a luta pelos direitos sexuais e reprodutivos e contra a violência, o movimento conseguiu romper a invisibilidade histórica das mulheres” (PROGRAMA..., 2007, p.12)

ORIGEM DA LEI MARIA DA PENHA
A lei nº. 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, foi resultado de tratados internacionais, firmados pelo Brasil, com o propósito de não apenas proteger à mulher, vítima de violência doméstica e familiar, mas também prevenir contra futuras agressões e punir os devidos agressores.
Foram duas as convenções firmadas pelo Brasil: Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra à mulher (CEDAW), conhecida como a Lei internacional dos Direitos da mulher e a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra à mulher, conhecida como “Convenção de Belém do Pará”. Assim, explica Cunha:
“O primeiro movimento adotado pela União Federal com o intuito de combater a violência contra à mulher foi a ratificação de CEDAW, feita pelo Congresso Nacional em 1º de fevereiro de 1984. Como nesta data ainda não havia sido promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a qual prevê igualdade entre homens e mulheres, houve algumas reservas; contudo, com o reflexo da nova Constituição, o governo brasileiro retirou as reservas, ratificando plenamente toda a Convenção através do Decreto Legislativo nº26/1994, que foi promulgada pelo Presidente da República por meio do Decreto nº4.377/2002.[...] O segundo movimento realizado no Brasil neste sentido foi a ratificação da Convenção Interamericana para Prevenir, punir e erradicar a Violência contra à mulher – conhecida como “Convenção de Belém do Pará”, realizada em Belém do Pará e adotada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos – OEA em 6 de junho de 1994, sendo ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995 através do Decreto Legislativo nº107/1995 e promulgado pelo Presidente da República por meio do Decreto nº1.973/1996.” (CUNHA, 2009, p 121)
De acordo com o ensinamento de CUNHA (2009), a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra à mulher (CEDAW) se preocupava com os direitos gerais da mulher, e não, especificadamente, com a violência. Já a Convenção de Belém do Pará possuía um objetivo mais específico, que era combater a violência contra a mulher.
Nas palavras de Portela (2010, p. 659), claro fica o objetivo da CEDAW:
“A Convenção visa a contribuir para conferir maior peso político e jurídico à proteção da dignidade da mulher, cuja situação na maioria das sociedades do mundo, no decorrer da história e na atualidade, nem sempre tem sido marcada pelo gozo de direitos em patamar de igualdade com os homens. Além disso, a Convenção visa a tutelar certas peculiaridades da condição da mulher, como a maternidade.”
Portanto, o propósito da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher era erradicar a discriminação contra a mulher e assegurar a igualdade, embora tivesse consciência de que discriminação também é uma forma de violência.
Assim ressalta Piovesan (2008, p.197): “Importa observar que a Convenção não enfrenta a temática da violência contra a mulher de forma explícita, embora essa violência constitua grave discriminação”.
No que se refere à Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995, foram abordados diversos assuntos, dentre eles a definição de violência contra as mulheres.
“A Convenção entende que a violência contra a mulher constitui grave afronta aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, proclamados e defendidos na modernidade; afirma, ainda, que a violência não se limita à agressão física, sexual e psíquica, como também restringe o reconhecimento, gozo e exercício de tais direitos e liberdades.” (CUNHA, 2009, p 123)
Dessa forma, a convenção de Belém do Pará foi o primeiro tratado internacional a definir a violência contra a mulher e a reconhecer este tipo de violência como sendo uma afronta aos direitos humanos, principalmente a dignidade da pessoa humana.
No que diz respeito ao conceito de violência contra a mulher, Mameluque (2010, p.01) expõe que o Conselho Social e Econômico das Nações Unidas a conceitua como sendo:
“[...] qualquer ato de violência baseado na diferença de gênero, que resulte em sofrimentos e danos físicos, sexuais, psicológicos da mulher; inclusive ameaças de tais atos, coerção e privação de liberdade seja na vida pública ou privada”
Segundo Maria Berenice Dias: “Foi à conferência das Nações Unidas sobre Direitos humanos, realizada em Viena, no ano de 1993, que definiu formalmente a violência contra a mulher como violação aos direitos humanos.” (DIAS, 2010, p.35)

O MOTIVO DE A LEI SER CHAMADA MARIA DA PENHA
A Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, foi chamada de Maria da Penha como forma de homenagear a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de diversas agressões, praticadas pelo seu ex-marido.
Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto explicam o porquê dessa denominação:
“O motivo que levou a lei ser “batizada com esse nome, pelo qual, irreversivelmente, passou a ser conhecida, remonta ao ano de 1983. No dia 29 de Maio desse ano, na cidade de Fortaleza, no Estado do Ceará, a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, enquanto dormia, foi atingida por um tiro de espingarda desferido por seu então marido, o economista M.A.H.V, colombiano de origem e naturalizado brasileiro. Em razão desse tiro, que atingiu a vítima em sua coluna, destruindo a terceira e quarta vértebras, suportou lesões que deixaram-na paraplégica.[...]Mas as agressões não se limitaram ao dia 29 de maio de 1983. Passada pouco mais de uma semana, quando já retornara para sua casa, a vítima sofreu novo ataque do marido. Desta feita, quando se banhava, recebeu uma descarga elétrica que, segundo o autor, não seria capaz de produzir-lhe qualquer lesão.” [...] (CUNHA; PINTO 2009, p 21)
A história de Maria da Penha ficou notória devido ao atraso da justiça quanto à punição do agressor. Em 1984, o Ministério Público denunciou o Senhor Marco Antônio Heredia, marido de Maria da Penha, como sendo o autor do crime. Em 04 de Maio de 1991, oito anos após a prática criminosa, seu ex-marido foi levado ao Júri e então condenado. Apesar de condenado, não foi efetivamente preso, pois a defesa apelou e o recurso foi provido, marcando, assim, uma nova data para novo julgamento. Em 15 de março de 1996, treze anos após o fato, o culpado foi submetido a um novo júri, quando novamente foi condenado. Mas, outra vez interpôs recurso e do mesmo modo continuou livre. Finalmente em setembro de 2002, ou seja, dezenove anos da ação delituosa, o seu ex-marido foi preso. (VIEIRA; GIMENES, 2008)
Hoje, Maria da Penha Maia Fernandes está viva, mas paraplégica, e o seu agressor encontra-se em liberdade, depois de permanecer apenas dois anos preso.
De acordo com o ensinamento de Maria Berenice Dias:
“[...] A repercussão foi de tal ordem que o Centro pela Justiça e o Direito Internacional - CEJIL e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM formalizaram de denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. Apesar de, por quatro vezes, a Comissão ter solicitado informações ao governo brasileiro, nunca recebeu nenhuma resposta. O Brasil foi condenado internacionalmente, em 2001. O relatório n.54 da OEA, além de impor o pagamento de indenização no valor de 20 mil dólares, em favor de Maria da Penha, responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e omissão frente à violência doméstica, recomendando a adoção de vários medidas, entre elas “simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual”. A indenização, no valor de 60 mil reais, foi paga a Maria da Penha, em julho de 2008, pelo governo do Estado do Ceará, em uma solenidade pública, com pedido de desculpas.” (DIAS, 2010, p16)
Pelicani (2010, p.240) traz que: “[...] o caso Maria da Penha foi o primeiro da aplicação da Convenção de Belém do Pará [...]”.

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR: CONCEITO E TIPOS
Renato Ribeiro Velloso (2010) define a violência como sendo “uma espécie de coação, ou forma de constrangimento, posto em prática para vencer a capacidade de resistência do outrem, ou a levar a executá-lo, mesmo contra a sua vontade”.
Nesta linha de pensamento, a violência se conceitua sobre alguns parâmetros, descritos abaixo:
“[...] uso da força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade; é constranger, é tolher a liberdade, é incomodar, é impedir a outra pessoa de manifestar sua vontade, sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser espancada, lesionada ou morta. É um meio de coagir, de submeter outrem ao seu domínio, é uma forma de violação dos direitos essenciais do ser humano.” (CAVALCANTI, 2010, p. 11)
Nesse contexto, o termo violência engloba qualquer tipo de conduta, seja comissiva ou omissiva, capaz de ocasionar ao outro um dano, seja ele moral, psicológico ou material. Importante mencionar que, para configurar a violência é preciso que o autor tenha o animus, ou seja, a vontade de lesionar, ou até mesmo matar o outro sujeito.
No que diz respeito à violência contra a mulher, Cavalcanti (2010, p.12) define como sendo “qualquer ação ou conduta que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”
Dispõe o art.5º da Lei 11.340/06:
“Art.5º Para os efeitos desta Lei configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”. (BRASIL, 2006, grifo nosso)
Ressalta-se ainda, que a violência doméstica e familiar é uma das formas de violência contra a mulher. Esse tipo de violência não se restringe apenas à violência perpetrada no local que a vítima reside, mas em qualquer lugar, desde que motivada por uma relação de afeto ou de convivência familiar entre agressor e mulher, vítima. (LEAL, 2010)
De acordo com Cunha e Pinto (2008) a agressão no âmbito da unidade doméstica compreende aquela praticada no espaço caseiro, envolvendo pessoas com ou sem vínculo familiar. Violência no âmbito da família é aquela praticada entre pessoas unidas por vínculo jurídico de natureza familiar, podendo ser conjugal, em razão de parentesco (em linha reta ou por afinidade), ou por vontade expressa (adoção). E agressão em qualquer relação íntima de afeto é aquela inserida em um relacionamento estreito entre duas pessoas, fundadas em laços de amor, companheirismo, amizade.
Uma vez definido o que seja violência doméstica e familiar, é importante analisar, nesse momento, as suas diversas formas:
O art. 7º da Lei 11.340/06 enumera algumas formas de violência doméstica e familiar. São elas: violência física, sexual, psicológica, patrimonial e moral. Importante ressaltar que, de acordo com a Lei, estas não são as únicas formas de agressões, praticadas contra a mulher.
Para compreender melhor as diversas formas de violência doméstica, deve-se ter em mente alguns conceitos a saber:
Entende-se por violência física qualquer conduta que ofenda a integridade ou a saúde da mulher. Quanto à violência sexual, inclui qualquer procedimento que obrigue, force, constranja a mulher a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada, mediante uso de força física ou ameaça. Já a violência psicológica, abrange qualquer conduta que cause à mulher um dano emocional, diminuindo sua auto-estima, causando constrangimentos e humilhações. A violência moral é conhecida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação e injúria. Por fim, a violência patrimonial, que diz respeito a qualquer comportamento, que configure destruição, subtração de bens, documentos e instrumentos de trabalho. (VIEIRA; GIMENES, 2008)
É oportuno, portanto, mensurar que, bater, chutar, ameaçar, humilhar, falar mal, destruir objetos, documentos, forçar o sexo são algumas atitudes que caracterizam a violência doméstica e familiar.

SUJEITO ATIVO E PASSIVO DOS CRIMES DOMÉSTICOS
Antes de analisar quem pode ser os sujeitos envolvidos nos delitos domésticos, importante se faz trazer os conceitos de sujeito ativo e passivo.
Segundo Capez (2006, p145), sujeito ativo da conduta típica é:
“A pessoa humana que pratica a figura típica descrita na lei, isolada ou conjuntamente com outros atores. O conceito abrange não só aquele que pratica o núcleo da figura típica (quem mata, subtrai etc.), como também o partícipe, que colabora de alguma forma na conduta típica, sem, contudo, executar atos de conotação típica, mas que de alguma forma, subjetiva ou objetivamente, contribui para a ação criminosa.”
Nas palavras de Mirabete (2010, p.01), claro fica a definição de sujeito passivo:
“Sujeito passivo do crime é o titular do bem jurídico lesado ou ameaçado pela conduta criminosa. Nada impede que, em um delito, dois ou mais sujeitos passivos existam: desde que tenham sido lesados ou ameaçados em seus bens jurídicos referidos no tipo, são vítimas do crime. Exemplificando, são sujeitos passivos de crime: aquele que morre (no homicídio), aquele que é ferido (na lesão corporal), o possuidor da coisa móvel (no furto), o detentor da coisa que sofre a violência e o proprietário da coisa (no roubo), o Estado (na prevaricação) etc.”
Diante disso, é certo que sujeito ativo é aquele que pratica a conduta descrita no tipo penal; já o sujeito passivo é a vítima, ou seja, o titular do bem jurídico tutelado.
Superada as definições dos sujeitos, é conveniente abordar os diversos posicionamentos sobre quem pode estar sob proteção da Lei Maria da Penha.
Para Almeida (2010), a aplicação da Lei Maria da Penha cabe somente quando o sujeito passivo for do sexo feminino, ou seja, a vítima for mulher, podendo ser autor do fato, homem ou mulher.
Confirmando o que foi afirmado por Almeida, no trecho anterior, veja-se o comentário de Souza (apud DIAS, 2010, p.54)
“Para a configuração da violência doméstica não é necessário que as partes sejam marido e mulher, nem que estejam ou tenham sido casados. Também na união estável – que nada mais é que uma relação íntima de afeto – a agressão é considerada como doméstica, quer a união persista ou já tenha findado. Para ser considerada a violência como doméstica, o sujeito ativo tanto pode ser um homem como outra a mulher. Basta estar caracterizado o vínculo de relação doméstica, de relação familiar ou de afetividade, pois o legislador deu prioridade à criação de mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher, sem importar o gênero do agressor.” (grifo nosso)
Desse modo, Santo (2010) entende que a violência deve ser de gênero e contra a mulher. Sendo excluídas, portanto, agressões entre pessoas do mesmo sexo. A autora reconhece que o parágrafo único, do artigo 5º diz que as relações pessoais proferidas no artigo independem de orientação sexual, porém entende que o dispositivo serve para dizer que o homem agressor pode ter qualquer orientação sexual, assim como a mulher vítima.
Interessante o posicionamento da Desembargadora Maria Berenice Dias, quando cita estarem sob abrigo da Lei as lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros. Ilustrando esse posicionamento, veja-se o trecho:
“Lésbicas, transexuais, travestis e transgêneros, quem tenham identidade social com o sexo feminino estão ao abrigo da Lei Maria da Penha. A agressão contra elas no âmbito familiar constitui violência doméstica. Ainda que parte da doutrina encontre dificuldade em conceder-lhes o abrigo da Lei, descabe deixar à margem da proteção legal aqueles que se reconhecem como mulher. Felizmente, assim já vem entendendo a jurisprudência”. (DIAS, 2010, p. 58)
Neste contexto, não há dúvidas de que o sujeito ativo dos crimes domésticos pode ser homem ou mulher, pois como já se disse, independe a orientação sexual do agressor.
Como exemplo, cita-se o julgado do Tribunal de Minas Gerais:
“EMENTA: PROCESSUAL PENAL - LEI MARIA DA PENHA - VIOLÊNCIA DOMÉSTICA - SUJEITO PASSIVO - CRIANÇA - APLICABILIDADE DA LEI - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. Para a configuração da violência doméstica, não importa a espécie do agressor ou do agredido, bastando a existência de relação familiar ou de afetividade entre as pessoas envolvidas. Provimento ao recurso que se impõe. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO N° 1.0145.07.414517-1/001 - COMARCA DE JUIZ DE FORA - RECORRENTE(S): MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADO MINAS GERAIS - RECORRIDO(A)(S): ELISMARA DE LIMA - RELATOR: EXMO. SR. DES. ANTÔNIO CARLOS CRUVINEL” (TJMG; 3ª Câm. Crim; Rec. em Sentido Estrito 1.0145.07.414517-1/001; Rel. Des ANTÔNIO CARLOS CRUVINEL; Data do Julgamento: 15/12/2009). (BRASIL, 2009)
No tocante ao sujeito passivo, antes de adotarmos uma posição sobre quem pode ser vítima de violência doméstica, necessário se faz uma reflexão acerca da proteção constitucional aos direitos dos travestis, transexuais, lésbicas e transgêneros.
Será que o fato de um travesti ou até mesmo um transexual ser agredido por seu companheiro desconfiguraria a aplicação da Lei, apenas porque estes não são do sexo feminino? Se não for possível aplicar a Lei nesses casos, então, qual seria o objetivo real da Lei Maria da Penha? No próximo capítulo, observa-se os princípios norteadores dessas questões.

OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO VETORES DO SISTEMA JURÍDICO
Sabe-se que a luta por direitos é uma construção histórica, conquistados principalmente por aqueles que vivem em situação de opressão, violação e discriminação.
Neste capítulo, será abordado o estudo dos princípios norteadores de todos os humanos relacionados aos grupos vulneráveis, na tentativa de se justificar a relação destes com a temática.

PRINCÍPIOS JURÍDICOS
Inserido no Ordenamento Jurídico, a Constituição Federal possui supremacia e hierarquia em relação às demais normas do sistema. Possui supremacia exatamente por encontrar-se em posição hierárquica superior a outras normas e atos normativos. Neste tema, Kelsen (apud TOVAR, 2005, p. 02) presta inegável contribuição doutrinária ao sustentar que:
“[...] o ordenamento jurídico pode ser visualizado como um complexo escalonado de normas de valores diversos, no qual cada norma ocupa uma posição intersistêmica, formando um todo harmônico, com interdependência de funções e diferentes níveis normativos. Nessa linha de raciocínio, uma norma só será válida acaso consiga buscar seu fundamento de validade em uma norma superior, e assim por diante, até que se chegue à norma última, que é a norma fundamental.”
Na concepção de Gasparini (2010, p.60), princípio jurídico é definido como sendo “um conjunto de proposições que alicerçam ou embasam um sistema e lhe garantem a validade”.
Diante do exposto, considera-se que os princípios constitucionais possuem uma força suprema, diante das demais normas presentes no Ordenamento jurídico. Dentre os vários princípios presentes na Constituição, serão comentados, neste capítulo, o Princípio da Dignidade da pessoa humana, o princípio da Isonomia e o Princípio da Liberdade.

PRINCÍPIO DA ISONOMIA
O art. 5º, caput, da Constituição Federal, prevê: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.
O dispositivo, acima citado, refere-se ao princípio da isonomia. Tal Princípio, também chamado de principio da igualdade, visa assegurar a todos um tratamento idêntico, sem diferenciações e desigualdades.
Ocorre que, essa igualdade pode ser observada sob dois aspectos, quais sejam: a igualdade material e a igualdade formal. Do ponto de vista da igualdade formal, não pode haver diferenciação entre as pessoas, de modo que, todos tenham tratamentos idênticos. Já sob o aspecto da igualdade material, é possível tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual, desde que de maneira justificada. Nesse sentido leciona Roger Raupp Rios:
“Enquanto a igualdade perante a lei (igualdade formal) diz respeito à igual aplicação do direito vigente sem distinção com base no destinatário da norma jurídica, sujeito aos efeitos jurídicos decorrentes da normatividade existente, a igualdade na lei (igualdade material) exige a igualdade de tratamento pelo direito vigente dos casos iguais, bem como a diferenciação no regime normativo em face das hipóteses distintas.” (RIOS, 2001, p.74)
Basicamente, o Princípio da Igualdade opera das duas formas. Sendo assim, no mesmo momento que o artigo proíbe qualquer tipo de diferenciação entre as pessoas, ele assegura tratar situações diferentes de maneira diferenciada. Outrossim, seria impossível tratar todos de forma igualitária, pois cada pessoa humana tem sua individualidade, sua personalidade, seu modo próprio de ver e sentir as coisas.
Segundo Motta e Barchet (2008, p. 103) “[...] respeitar o princípio da igualdade significa não somente tratar igualmente os que se encontrem em situações equivalentes, mas também tratar de maneira desigual aqueles que se encontrem em situações desiguais, na medida de suas desigualdades.”
Importante entender que o Princípio da igualdade não proíbe que a lei estabeleça tratamento diferenciado entre pessoas que guardem distinções de grupo social, de sexo, de profissão, de condição econômica ou de idade. O que não se admite é que esse tratamento diferenciado seja arbitrário, discriminatório.
É nesse contexto que foi criado o Estatuto do Idoso, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Maria da Penha. Legislações que visam assegurar os direitos das pessoas que integram os chamados “grupos vulneráveis”. Um idoso, por exemplo, não pode ter tratamento igualitário com um jovem de 25 anos, assim como uma mulher não pode ser tratada de forma análoga ao homem.
Sobre o Princípio da Isonomia, indispensável recordar a lição de Moraes (2010, p. 36):
“[...] todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo Ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito [...]”

IGUALDADE SEM DISTINÇÃO DE SEXO E ORIENTAÇÃO SEXUAL
É de suma importância também destacar que se encontra inserida no Princípio da isonomia a igualdade sexual, aquela entre homem e mulher, prevista no art.5º, inciso I, da CF e a igualdade sem distinção de sexo e orientação sexual. A inserção é notória no trecho abaixo:
“A garantia de igualdade entre os homens e mulheres também abrange os homossexuais, tanto os masculinos quanto os femininos, os bissexuais e os transexuais. A Constituição, ao garantir a intimidade e ao proibir a discriminação, protegeu a livre opção sexual, impedindo qualquer tipo de preconceito”. (AGRA, 2002, p. 152)
O dispositivo é claro quando aduz que tanto homens, quanto mulheres são iguais, possuindo, assim, os mesmos direitos e obrigações perante a Lei, não dando margem a qualquer forma de discriminação ou preconceito. Como corolário, homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais também são detentores dos mesmos direitos assegurados aos demais cidadãos.
Dessa forma, o princípio da igualdade sem distinção de sexo e orientação sexual é a igualdade concedida, sem discriminação de orientação sexual, “reconhecendo, assim, na verdade, não apenas a igualdade, mas igualmente a liberdade de as pessoas de ambos os sexos adotarem a orientação sexual que quisessem” (SILVA, 2010, p.224).
No âmbito da presente pesquisa, isto significa conceder tratamento jurídico a todas as pessoas, sem distinção de orientação sexual homossexual ou heterossexual. Esta é a pura igualdade formal.

PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O princípio da dignidade da pessoa humana, que hoje se encontra previsto no art. 1º, III, da CF, como princípio fundamental da República Federativa do Brasil, foi introduzido na esfera internacional com a Declaração Universal dos Direitos do homem, em 1948, pela ONU, logo após a sua criação. Concernente a essa ideia, tem-se nas palavras de Lima (2008, p.03):
“A declaração universal dos Direito humanos, logo em seu art.2º, proíbe qualquer forma de discriminação que seja atentatória á dignidade da pessoa humana, pois sedimenta a ideia de que a capacidade de gozar dos direitos e liberdades estabelecidas na declaração não está condicionada a distinção de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outras de natureza diversa, sejam de origem nacional ou social, sejam relacionadas à condição sócio-econômica.”
Para Piovesan (2008, p.143) “[...] O propósito da Declaração, como proclama seu preâmbulo, é promover o reconhecimento universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais [...]”. Ainda sobre o tema, é interessante observar:
“Inegavelmente, a Declaração Universal de 1948 representa a culminância de um processo ético que, iniciado com a Declaração de Independência dos Estados Unidos e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, levou ao reconhecimento da igualdade essencial de todo ser humano em sua dignidade de pessoa, isto é, como fonte de todos os valores, independentemente das diferenças de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição, como se diz em seu artigo II. [...]” (COMPARATO, 2007, p. 228)
O principio da dignidade da pessoa humana é o pilar basilar de toda a Constituição Federal e o maior de todos os demais direitos e garantias fundamentais das pessoas. É um valor que é construído a partir da análise de um caso concreto.
Assim, o direito à dignidade é um direito fundamental de todas as pessoas, sejam elas mulheres, negros, pobres, homossexuais, índios, presos, portadores de deficiência, idosos, crianças e adolescentes. Lima, por seu turno, acrescenta que:
“Esse princípio de cunho natural, positivado em nosso ordenamento jurídico, ressalta a necessidade do respeito ao ser humano, independente da sua posição social ou dos atributos que possam a ele ser imputados pela sociedade. Logo, sendo o ser humano constituído por si próprio um valor, que deve ser respeitado e preservado, é fundamental que qualquer tipo de relacionamento de seres humanos, desde que lícito, deve ser reconhecido pelo Estado, visto que os valores humanos fazem parte de sua própria essência emocional e intelectual.” (LIMA, 2010, p.08)
Nesta linha, fica claro que o Princípio jurídico da dignidade da pessoa humana tem como núcleo a pessoa humana, não importando suas características individuais. Portanto, excluir ou não reconhecer direitos a uma pessoa, pelo fato desta “ter atração sexual por pessoa do mesmo sexo”, seria conceder tratamento indigno ao ser humano, ignorando a proteção constitucional da dignidade da pessoa humana.

PRINCÍPIO DA LIBERDADE
Sobre o Princípio da Liberdade, entende-se que o indivíduo pode agir da maneira que deseja, desde que não contrarie a Lei. Nas palavras de Kelsen (apud AGRA, 2002, p.147):
“[...] o princípio da Liberdade é delimitado pela existência de normas que impeçam o cidadão de ter um determinado comportamento; se não existem normas que vedem tal conduta, ele tem plena liberdade para realizá-la.”
O Princípio em análise é previsto constitucionalmente no art.5º, caput, da Constituição Federal, na qual prevê a inviolabilidade da liberdade, englobando a de expressão, de livre manifestação de pensamento, de propriedade, sexual, dentre outras.

LIBERDADE SEXUAL
Importante ressaltar que a Liberdade engloba também o direito à liberdade sexual, juntamente com o Direito à Igualdade, independentemente da opção sexual escolhida.
Para Dias (2010, p.99): “A liberdade compreende o direito à liberdade sexual, aliado ao direito de tratamento igualitário, independentemente da tendência sexual”.
Direito à Liberdade sexual, direito à autonomia sexual, direito à privacidade sexual, direito ao prazer sexual e direito à informação sexual livre de discriminações são alguns dos desdobramentos mais importantes dos princípios da Igualdade e da Liberdade, que regulamentam o direito à sexualidade. (RIOS, 2007)
É por pertencer a um Estado Democrático de Direito, que não se deve haver uma imposição da opção sexual, devendo todos serem respeitados em suas respectivas proteções.
O princípio da Liberdade sexual garante ao indivíduo, sujeito de direitos e obrigações, a livre escolha por sua orientação sexual. Desse modo, todas as pessoas são livres, para escolher com quem se relacionar e constituir família.
A partir do momento que o Estado impõe restrições a esse direito, ele está agindo de forma discriminatória, violando, especialmente, o princípio da Liberdade.
A sexualidade é algo inerente e subjetivo a todo ser humano, não devendo haver discriminação em relação a sua preferência sexual. Sendo assim, a livre orientação sexual é um dos pontos elementares para a configuração da dignidade da pessoa humana.
“Indispensável reconhecer que a sexualidade integra a própria condição humana. Ninguém pode realizar-se como ser humano se não tiver assegurado o respeito de exercer livremente sua sexualidade com quem desejar, conceito que compreende tanto a liberdade sexual como a liberdade à livre orientação sexual. A sexualidade é um elemento da própria natureza humana, seja individual, seja genericamente considerada. Sem liberdade sexual, sem direito ao livre exercício da sexualidade, sem opção sexual livre, o próprio gênero humano não consegue alcançar a felicidade.” (DIAS, 2010, p.99)
As diferenças relacionadas a gênero, etnia, raça, idade, dentre outras, constituem uma diversidade, que proporciona ao Brasil uma grande riqueza cultural e social. Todavia, quando as riquezas se transformam em desigualdades, surge a violação dos direitos. Conseqüentemente, essas pessoas, que se encontram em condições diferentes, tornam-se vulneráveis. Como exemplo, pode-se citar as mulheres, os idosos, os gays, dentre outros. Esses grupos são chamados de grupos vulneráveis.
É partindo do Princípio da igualdade ou isonomia, da dignidade da pessoa humana e da liberdade sexual que esses grupos buscam o reconhecimento de seus direitos. Pois, antes de serem humanos, são sujeitos de direitos.
Portanto, uma lésbica, por exemplo, não deve ter “nunca” seu direito negado, pelo fato de ter uma opção sexual distinta do modelo tradicional.
De nada adianta assegurar respeito à dignidade da pessoa humana, à igualdade de todos perante a lei, sem preconceitos e discriminações, à liberdade, enquanto houver discriminações, tratamentos desiguais entre homens e mulheres e, principalmente, enquanto a homossexualidade não for devidamente reconhecida como uma prática normal na sociedade. (DIAS, 2010).
Sustenta ainda a autora que “o direito à homoafetividade, além de estar amparado pelo princípio fundamental da isonomia, cujo corolário é a proibição das discriminações injustas, também se alberga sob o teto da liberdade de expressão”.
Em consonância hierárquica de pensamento, isonomia, liberdade e dignidade da pessoa humana se entrelaçam, levando todos à reflexão dos chamados segmentos vulneráveis: lésbicas, travestis e transexuais.
No próximo capítulo, descrever-se-á o fato degradante da violência de gênero desencadeada e os efeitos jurídicos aplicados na questão.

A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E SEUS EFEITOS JURÍDICOS
O presente capítulo tem por objetivo analisar a questão da violência de gênero, abordada no art.5º, da Lei nº 11.340/06 e seus efeitos na seara jurídica. Para tanto, é possível observar que a Lei Maria da Penha trata da violência doméstica e familiar contra a mulher, baseada no gênero.
Nesse contexto, interessante explicar que a violência contra a mulher é uma forma específica de violência, praticada por qualquer indivíduo, seja homem ou mulher e dirigida à mulher. Acontece que, o termo “mulher” pode se referir tanto ao sexo feminino, quanto ao gênero feminino. Destarte, não teria sentido sancionar uma lei, que tivesse como objetivo a proteção apenas de um determinado sexo biológico.
Assim, diz-se que é baseada no gênero, pelo fato dessa violência se referir às características sociais, culturais e políticas impostas a homens e mulheres e não às diferenças biológicas entre homens e mulheres. Desse modo, a violência de gênero não ocorre apenas de homem contra mulher, mas pode ser perpetrada também de homem contra homem ou de mulher contra mulher.
Como diz Silva (2010, p.01), “Não se trata, portanto, de qualquer conduta lesiva contra uma mulher. Para ser crime previsto na nova Lei, é necessário que a conduta seja baseada no gênero [...]”.
No mesmo sentido, está a posição de Rolim ao lembrar que:
“[...] Essa Lei, fruto de anos de pressões e embates dos movimentos feministas e da luta silenciosa de milhares de mulheres constantemente agredidas por seus parceiros e familiares, ataca a desigualdade existente entre homens e mulheres ao reconhecer a especificidade da violência de gênero e, assim, prever formar de erradicá-la [...].” (ROLIM, 2008, p. 341)
Dentro dessa ideia, a Lei em questão tem como objetivo prevenir, punir e erradicar a violência de gênero. Sobre o conceito de violência de gênero, Gomes (2009, p.01, grifo nosso) explica:
“Sexualmente falando a diferença entre homem e a mulher é o seguinte: o homem faz a mulher engravidar; a mulher menstrua, faz a gestação e amamenta. Fisicamente falando essa é a diferença. Fora disso, qualquer outro tipo de distinção é cultural (e é aqui que reside a violência de gênero). Cada sociedade (e cada época) forma (cria) uma identidade para a mulher e para o homem (a mulher deve fazer isso, isso e aquilo; o homem deve fazer isso, isso e aquilo). O modo como a sociedade vê o papel de cada um, com total independência frente ao sexo (ou seja: frente ao nosso substrato biológico, é o que define o gênero. Todas as diferenças não decorrentes da (pura) biologia e “impostas pela sociedade” são diferenças de gênero”.
Deste modo, é importante que se entenda que gênero e sexo são termos distintos, conforme se evidencia abaixo:

GÊNERO E SEXO
Sexo refere-se às características biológicas de um indivíduo, enquanto que gênero é decorrente de aspectos sociais, culturais, políticos. Uma pessoa, por exemplo, pode ter o sexo masculino e se incluir no gênero feminino, sendo ele um travesti. Grossi (2010, p.05) explica:
“Gênero serve, portanto, para determinar tudo que é social, cultural e historicamente determinado [...] quando falamos de sexo, referimo-nos apenas a dois sexos: homem e mulher (ou macho e fêmea, para sermos mais biológicos), dois sexos morfológicos sobre os quais "apoiamos" nossos significados do que é ser homem ou ser mulher [...]”
No mesmo sentido, afirma Cabral e Diaz (2010, p.01):
“Sexo refere-se às características biológicas de homens e mulheres, ou seja, às características específicas dos aparelhos reprodutores femininos e masculinos, ao seu funcionamento e aos caracteres sexuais secundários decorrentes dos hormônios.
Gênero refere-se às relações sociais desiguais de poder entre homens e mulheres que são o resultado de uma construção social do papel do homem e da mulher a partir das diferenças sexuais.”
Feliz a colocação de Maluf (2010, p.249), quando diz que: “o gênero recebe uma construção sociológica, é um conceito mais subjetivo, mais ligado ao papel social desempenhado pelo indivíduo do que por suas características biológicas”.
A essa teia complexa de conceitos sobre gênero e sexo, percebe-se que o sexo de uma pessoa é determinado logo após o seu nascimento e diz respeito ao estado biológico, enquanto que o gênero é construído ao decorrer da vida e se refere ao estado psicológico.
“Esse conceito de gênero é uma construção social, não se apresentando, pois, de maneira uniforme em todas as épocas e lugares. Assim, depende da cultura, dos costumes e das criações oriundas da experiência social, tais como as leis, as religiões, a vida política. Ademais, dentro de uma mesma sociedade encontramos variantes que influem diretamente nesse conceito, tais como a idade, a raça e a classe social”. (BRANDÃO, 2010, p.02)

A QUESTÃO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL E DA IDENTIDADE DE GÊNERO
Com base no Princípio da liberdade sexual, o qual afirma que todos são livres para escolher sua opção sexual, é importante destacar que a orientação sexual refere-se a qual gênero, masculino ou feminino, a pessoa se sente atraída, ou seja, de que maneira o indivíduo quer exercer sua sexualidade.
Compreende por orientação sexual, tanto a natureza heterossexual ou homossexual da mulher. (HERMANN, 2007)
Nesse sentido, Vieira (apud RIOS, 2002, p.02) conceitua orientação sexual como sendo “a identidade atribuída a alguém em função da direção do seu desejo e/ou condutas sexuais, seja para pessoa do sexo oposto, para pessoa do mesmo sexo ou de ambos os sexos”.
Isto posto, observa-se que o ser contemporâneo está disposto a escolhas tão fortes, que desenham atualmente um novo tempo de liberdade de pensamento e postura.
Dessa forma, o indivíduo pode ser: homossexual, heterossexual ou bissexual.
Quanto aos homossexuais, podem ser homens ou mulheres. São pessoas que sentem atração emocional e sexual por pessoas do mesmo sexo. As mulheres são chamadas de homossexualismo feminino. Já os homens são denominados de homossexualismo masculino.
Kotlinski (2010) explica que a homossexualidade não é contra a natureza, não é ilegal, não é uma opção e tão pouco uma doença, sendo apenas uma das formas de orientação sexual possível.
Os heterossexuais são pessoas que sentem atração pelo sexo oposto.
Com relação aos bissexuais, pode-se dizer que são pessoas que gostam de ambos os sexos, tanto o masculino, quanto o feminino. Nas palavras de Brandão (2002, p.16):
“[...] a homossexualidade, em sentido estrito, vem a ser aquela em que a pessoa inclina sua atividade sexual exclusivamente para pessoas do mesmo sexo que o seu; e a bissexualidade não tem como característica a exclusividade, mas sim a pluralidade [...]”
Outro aspecto, de grande relevância para o assunto, diz respeito à identidade de gênero. Necessário explanar que identidade de gênero e orientação sexual também são conceitos distintos. No site denominado: www.adolescencia.org.br (2010), pontua-se identidade de gênero como sendo:
“A maneira como alguém se sente e se apresenta para si e para as demais pessoas como masculino ou feminino, ou ainda pode ser uma mescla, uma mistura de ambos, independentemente do sexo biológico (fêmea ou macho) ou da orientação sexual (orientação do desejo: homossexual, heterossexual ou bissexual). É a forma como nos reconhecemos a nós mesmos e desejamos que os outros nos reconheçam. Isso inclui a maneira como agimos (jeito de ser), a maneira como nos vestimos, andamos, falamos (o linguajar que utilizamos) e também, nos vestimos.”
O texto, em questão, ainda afirma que a identidade de gênero não determina a orientação sexual da pessoa, exemplificando o caso dos travestis. Esse texto ainda considera que nem todos travestis são considerados homossexuais, pois, o fato dessas pessoas sentirem prazer em usar elementos femininos, não significa dizer que eles se sentem, necessariamente, atraídos por homens.
Lanz (2008) conceitua a identidade de gênero como sendo um “mapa interno”, uma auto-etiqueta, ou seja, é a imagem que cada pessoa começa a ter de si mesma, a partir do seu nascimento.
Dessa forma, identificar-se com o gênero oposto não pode ser sinônimo de atração sexual e emocional.
Enquanto que os homossexuais, bissexuais e heterossexuais são formas de orientação sexual, o travesti e o transexual referem-se à identidade de gênero do indivíduo, ou seja, é quando a busca pelo prazer e a satisfação se dá de maneira diferente da normal.
A questão do travesti se volta para a pessoa que utiliza a roupa e a ornamentação do sexo oposto. Na verdade, o travesti não quer mudar de sexo; ele se sente bem com o seu órgão, preserva, então, o seu sexo biológico, embora sinta prazer em usar vestuários do sexo oposto. Pode ter travesti homem e travesti mulher.
Nas palavras de França (apud BRITO, 2000, p.46),
“O travestismo é um transtorno de identidade sexual, não ocorre necessariamente entre homossexuais, podendo ocorrer, portanto, entre indivíduos heterossexuais que se sentem impelidos a vestirem-se com roupas do sexo oposto, fato esse que lhe rende gratificação sexual. Em geral, o individuo é reservado e comedido e se traveste de maneira discreta e quase furtiva, muitos deles apenas no recato de seus lares e para satisfação somente sua.”
No caso do transexual, há uma incompatibilidade objetiva, pois este tem um inconformismo com o sexo que nasceu. Se for homem, não aceita que é homem e se mulher, não aceita que é mulher. Para Maluf (2010, p. 254), o transexual “é o indivíduo que apresenta um desvio psicológico que o faz acreditar pertencer ao sexo oposto ao sexo biológico originário”.
O mesmo França (apud BRITO, 2000, p.45) assevera que:
“No transexualismo não ocorre nenhuma alteração anatômica ou hormonal; a genitália externa e os testículos ou os ovários mostram desenvolvimento normal. Trata-se, pois, de uma inversão psicossocial, uma aversão e uma negação ao sexo de origem, o que leva esses indivíduos a protestarem e insistirem numa forma de cura através de cirurgia de reversão sexual, assumindo, assim, a identidade de seu desejado gênero. É uma reação psicopatológica sexual grave exteriorizada pelo sentimento ou desejo obsessivo de pertencer ao sexo oposto. A cirurgia, além de ser mutilante e irreversível, não transforma a mulher em homem, nem homem em mulher, apenas satisfaz a anomalia psíquica do transexual.”
Ainda sobre o assunto, leciona Luca (2009, p. 02) que:
“O transexual não se confunde com o homossexual, pois este não nega seu sexo, embora mantendo relações sexuais com pessoas do seu próprio sexo. Não se confunde com o travesti, que em seu fetichismo é levado a se vestir nos moldes do sexo oposto. Nem se identifica com o bissexual, indivíduo que mantém relações sexuais com parceiros de ambos os sexos.”
Assim, concebe-se que os homossexuais obtêm gratificação quando estão com seus parceiros, pessoas do mesmo sexo que o seu. O travesti se sente feliz com o simples uso de roupas do sexo oposto, independentemente da existência de parceiros. Já os transexuais, devido à rejeição ao seu sexo biológico, apenas ficarão afortunados quando conseguem a intervenção cirúrgica.

O RECONHECIMENTO DOS CASAIS HOMOSSEXUAIS À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA E A SUA RELAÇÃO COM A LEI MARIA DA PENHA
Embora o Estado não reconheça a união homoafetiva como entidade familiar, os Tribunais, em especial o do Rio Grande do Sul, já estão admitindo a união entre pessoas do mesmo sexo. A multiplicidade de pareceres é crescente. Observe, abaixo, a cronologia dos fatos:
“EMENTA: HOMOSSEXUAIS. UNIAO ESTAVEL. POSSIBILIDADE JURIDICA DO PEDIDO. E POSSIVEL O PROCESSAMENTO E O RECONHECIMENTO DE UNIAO ESTAVEL ENTRE HOMOSSEXUAIS, ANTE PRINCIPIOS FUNDAMENTAIS INSCULPIDOS NA CONSTITUICAO FEDERAL QUE VEDAM QUALQUER DISCRIMINACAO, INCLUSIVE QUANTO AO SEXO, SENDO DESCABIDA DISCRIMINACAO QUANTO A UNIAO HOMOSSEXUAL. E E JUSTAMENTE AGORA, QUANDO UMA ONDA RENOVADORA SE ESTENDE PELO MUNDO, COM REFLEXOS ACENTUADOS EM NOSSO PAIS, DESTRUINDO PRECEITOS ARCAICOS, MODIFICANDO CONCEITOS E IMPONDO A SERENIDADE CIENTIFICA DA MODERNIDADE NO TRATO DAS RELACOES HUMANAS, QUE AS POSICOES DEVEM SER MARCADAS E AMADURECIDAS, PARA QUE OS AVANCOS NAO SOFRAM RETROCESSO E PARA QUE AS INDIVIDUALIDADES E COLETIVIDADES, POSSAM ANDAR SEGURAS NA TAO ALMEJADA BUSCA DA FELICIDADE, DIREITO FUNDAMENTAL DE TODOS. SENTENCA DESCONSTITUIDA PARA QUE SEJA INSTRUIDO O FEITO. APELACAO PROVIDA.” (Apelação Cível Nº 598362655, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 01/03/2000) (BRASIL, 2000)
“APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE. É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre duas mulheres de forma pública e ininterrupta pelo período de 16 anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetua através dos séculos, não mais podendo o Judiciário se olvidar de emprestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de sexos. É o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações homoafetivas constitui afronta aos direitos humanos por ser forma de privação do direito à vida, violando os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. Negado provimento ao apelo.” (Apelação Cível nº 70012836755, Sétima Câmara Cível, Tribunal do RS, Relatora: Maria Berenice Dias, Julgado em 21/12/2005) (BRASIL, 2005)

“APELAÇÃO. UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. APELO DA SUCESSÃO. A união homossexual merece proteção jurídica, porquanto traz em sua essência o afeto entre dois seres humanos com o intuito relacional. Seja como parceria civil (como reconhecida majoritariamente pela Sétima Câmara Cível) seja como união estável, uma vez presentes os pressupostos constitutivos, de rigor o reconhecimento de efeitos patrimoniais nas uniões homossexuais, em face dos princípios constitucionais vigentes, centrados na valorização do ser humano. Caso em que s reconhece as repercussões jurídicas, verificadas na união homossexual, em face do princípio da isonomia, são as mesmas que decorrem da união heterossexual. APELO DO AUTOR. O apelante alegou que a sentença foi extra petita, pois decidiu sobre direito sucessório que não é objeto da presente ação declaratória. Disse que a sentença inovou e causou-lhe prejuízos ao esclarecer que“terá direito a um terço da herança, nos termos do art. 1790, III, do CC”. Aduziu que deve ser aplicado o artigo 1.837 do Código Civil para determinar a ordem da vocação hereditária. Contudo, a sentença não foi extra petita, na medida em que não houve decisão sobre este tema. A sentença apenas fez referência ao tema na fundamentação sem que tal referência constasse do dispositivo sentencial. Logo, não há decisão sobre este tema, o qual, de fato, não foi objeto desta ação. Aliás, sequer houve discussão sobre esta temática durante o processo. Nesse passo, não há porque decidir esta questão agora, devendo tal pretensão ser deduzida nos autos do inventário do companheiro do autor. NEGARAM PROVIMENTO AOS APELOS.” (Apelação Cível nº 70035804772, Oitava Câmara Cível, Tribunal do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 10/06/2010) (BRASIL, 2010)
Diante dos julgamentos expostos, é notório que as “as relações homoafetivas existem e continuarão a existir, independentemente do reconhecimento jurídico positivo do Estado” (BARROSO 2010, p.07).
É de conhecimento dos operadores do Direito que, diante da falta de norma regulamentadora, para aplicação em um caso concreto, pode o magistrado decidir com base, por exemplo, nos princípios gerais do Direito (art.4º da LICC). É exatamente com base nos princípios, em especial, o da dignidade humana, o da Liberdade e o da Igualdade que os magistrados vêm fundamentando suas decisões e, portanto, reconhecendo a união de pessoas do mesmo sexo.
Como já foram mencionados anteriormente, os incisos do art. 5º da Lei nº 11.340/06 enumeram o campo de abrangência da Lei, quais sejam: âmbito doméstico, âmbito familiar ou relação íntima de afeto.
É vital que se leve em consideração que, quando a lei fala de “qualquer relação íntima de afeto”, ela está se referindo tanto a casais heterossexuais, quanto a casais homossexuais.
Desse modo, o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo pelos Tribunais ajuda a confirmar que a Lei nº 11.340/06, intitulada como Maria da Penha, também se aplica aos casais homossexuais. Veja, logo abaixo, o porquê desta afirmativa:
“[...] seria por demais ilógico e juridicamente incongruente quando, por exemplo, uma mulher sofresse de sua parceira uma violência física ou de outra natureza (psicológica, sexual, moral ou patrimonial) e não pudesse ser protegida e atendida nos preceitos da Lei Maria da Penha. Sabemos que no Direito nenhuma interpretação pode ser levada ao absurdo. Pensar de tal forma seria no mínimo discriminar, rejeitar, marginalizar, negar a uma mulher a proteção legal instituída pelo simples fato de não considera-la [sic] casada nos termos formais da legislação civilista. Ainda, tal tratamento seria em primeiro plano contrário ao princípio fundamental consagrado na Constituição Federal, que é o da Dignidade da Pessoa Humana (CF. art.1º, III). Em segundo, estar-se-ia afrontando um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, qual seja a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF, art.3º, IV). Como se não bastasse, haveria ainda todo o desrespeito ao art.5º da Constituição Federal, quando trata dos direitos e garantias fundamentais, asseverando expressamente que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. (SILVA, p.04, grifo nosso)
Assim, a Lei além de proteger o sexo mulher, independentemente de sua orientação sexual, incluindo nesse caso as lésbicas, protege também o gênero feminino, ou seja, travestis e transexuais.
Como atesta Cerqueira (2009, p. 03):
“[...] o elemento diferenciador da abrangência da Lei 11.340/2006 é o gênero feminino. Acontece que o sexo biológico e a identidade subjetiva nem sempre coincidem. Nesta ótica, a Lei é dilatada, abrangendo, por exemplo, os homossexuais femininos e masculinos, os travestis, os transexuais e os transgêneros, os quais tenham identidade com o gênero feminino.”
Nesse sentido, partindo da premissa de que o que não é proibido é permitido, do reconhecimento da união homoafetiva pelos Tribunais e do conhecimento de que, no ordenamento jurídico, o que prevalece são os princípios constitucionais, entende-se que seria inconstitucional não proteger as lésbicas, os travestis e os transexuais contra agressões praticadas pelos seus companheiros ou companheiras.
Para Dias (2010), as situações de violência contra o gênero feminino merecem total proteção. Dessa forma, a lei não se restringe apenas a coibir e a prevenir a violência doméstica contra a mulher, independentemente de sua identidade sexual. Seu alcance tem extensão muito maior.
Segundo o Advogado Lauria (2006, p.4), “[...] se uma mulher, de orientação homossexual, sofrer lesões corporais praticadas por sua companheira, aplicar-se-á a Lei Maria da Penha, em todos os seus termos [...]”.
Quanto ao transexual, o mesmo autor aduz:
“A partir do momento em que o transexual consegue a alteração no registro civil, ter-se-á uma mulher para fins penais. Logo, esse transexual estará inserido dentro do âmbito de proteção da nova lei, dentro de uma interpretação restritiva.”
O que está sendo evidenciado e defendido neste estudo encontra amparo no que diz o Jurista Luiz Flávio Gomes:
“[...] parece-nos acertado afirmar que, na verdade, as medidas protetivas da lei Maria da Penha podem (e devem) ser aplicados em favor de qualquer pessoa (desde que comprovado que a violência teve ocorrência dentro de um contexto doméstico, familiar ou de relacionamento íntimo). Não importa se a vítima é transexual, homem, avô ou avó etc. Tais medidas foram primeiramente pensadas para favorecer a mulher (dentro de uma situação de subordinação, de submetimento). Ora, todas as vezes que essas circunstâncias acontecerem (âmbito doméstico, familiar ou de relacionamento íntimo, submissão, violência para impor um ato de vontade etc) nada impede que o Judiciário, fazendo bom uso da lei Maria da Penha e do seu poder cautelar geral, venha em socorro de quem está ameaçado ou foi lesado em seus direitos. Onde existem as mesmas circunstâncias fáticas deve incidir o mesmo direito.” (GOMES, 2009, p.1, grifo nosso)
Assim sendo, o verdadeiro objetivo da Lei Maria da Penha é prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher, não por razão do sexo, mas em virtude do gênero.

CONCLUSÃO
O Contemporâneo é um tempo marcado por singularidades. Emergem as diferenças e cresce o estado de consciência do ser, diante de segmentos da sociedade, que até então viviam de forma anônima, sem o direito a qualquer tipo de Justiça. É um tempo do emergir das “minorias silenciosas”. Com rapidez e fragmentação o ser não assiste a história, mas faz sua própria história, na qual a crescente discussão do “certo e do errado”, do “bem e do mal” se cruzam. O que é ser diferente, diante de uma história ditada pelo igual?
Nesse contexto de diferenças e igualdades, deve-se considerar que, diante de uma agressão ao bem jurídico tutelado, a vida, surge o dever de punir do Estado, independentemente da opção sexual do agressor ou da vítima.
Dessa forma, a Lei Maria da Penha tem como objetivo a proteção à integridade física, psíquica, moral, patrimonial e sexual do sexo biológico mulher, independente de sua orientação sexual, bem como do gênero feminino. A questão é profunda, se considerarmos a diferença expressa no capítulo quatro, envolvendo gênero e sexo.
Deste modo, não abranger a Lei Maria da Penha a lésbicas, travestis, transexuais seria afrontar os princípios constitucionais da igualdade, da Liberdade sexual e da dignidade da pessoa humana.
Um ponto deve ficar claro, desde logo: as ações e as atitudes, o exercício do respeito, da aceitação, do apreço à diversidade das culturas, à dignidade, à liberdade sexual e à igualdade são direitos inerentes a todos os seres humanos, independente de raça, sexo, cor, idade e gênero. Cabe destacar ainda que, cada pessoa humana tem sua individualidade, sua personalidade, seu modo próprio de ver e de sentir as coisas.
Dentro desse contexto, o Direito tem que deixar de se preocupar com as formalidades e observar o que está, de fato, acontecendo na sociedade. Gays, lésbicas, travestis e transexuais existem e são cidadãos como os demais indivíduos da sociedade. Logo, privá-los de uma proteção, configuraria uma forma terrível de preconceito e discriminação, algo que a Lei Maria da Penha busca exatamente combater.
Em uma sociedade democrata não se deve haver imposição da opção sexual e todos devem ser respeitados em suas respectivas opções. Deste modo, somente através da igualdade é que se percebe a plena democracia.
Portanto, juridicamente falando, entende-se que a Lei Maria da Penha deve ser aplicada às lésbicas, aos travestis e aos transexuais, pois o que de fato a citada lei busca é mais do que proteger o sexo biológico mulher; é proteger todos aqueles que se comportam como mulheres, exercendo seu papel social.

Dayane de Oliveira Ramos Silva
Bacharel em Direito pela Faculdade Maurício de Nassau-Recife PE

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