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quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

O mito da menina malvada

O cinema, a literatura e a sabedoria popular construíram a ideia de que as adolescentes são cruéis umas com as outras. Uma pesquisadora americana acompanhou grupos de estudantes de 11 a 18 anos durante sete anos para saber se as jovens são realmente más

RAFAEL CISCATI
15/01/2015
Editora Globo (Foto: Editora Globo)
Regina George - ou Rachel McAdams em Meninas Malvadas.
Ela virou o símbolo da garota desagradável (Fot: Divulgação)

Mulheres são más umas com as outras. A amizade entre os homens é mais sincera, próxima e tranquila. Todo mundo já discutiu essas máximas. Diversos livros, estudos e filmes foram feitos a respeito do problema da “menina má”, aquela garota agressiva e que, na tentativa de ser popular, não se constrange ao espalhar rumores sobre as colegas ou ao ofender outras garotas abertamente. Todo mundo conhece uma Regina George – a personagem de Rachel McAdams no filme... Meninas malvadas. Bonita, alta, rica e ardiolosa – o cinema ensina que é melhor manter distância. Uma nova pesquisa, publicada no periódico Agressive Behavior, afirma que todo mundo erra feio. A professora  Pamela Orpinas, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade da Georgia,nos Estados Unidos, acompanhou grupos de alunos ao longo de sete anos. No total, seguiu a vida acadêmica de 620 estudantes dos 11 aos 18 anos de idade. Anualmente, os adolescentes respondiam a um questionário sobre a frequência e a natureza das agressões de que eram vítimas – ou autores. O objetivo de Orpinas era descobrir se essas diferenças entre os gêneros – meninas agressivas, meninos companheiros – que a sabedoria popular cimentou resistiam ao teste da ciência.
Meninas malvadas (Foto: Reprodução)
Há décadas, a cultura popular sustenta a ideia de que mulheres são mais maldosas entre si. Segundo Pamela Orpinas, esse estereótipo não passa de um mito (Foto: Reprodução)
A ideia da menina malvada circula na cultura popular há decadas: filmes do anos 1950, como A malvada (Oscar de melhor filme em 1951), já a retratavam. Segundo Orpinas, da metade para o final da década de 1990, essas representações se tornaram mais frequentes. Elas influenciaram livros  de ficção e filmes de Hollywood, e deixaram rastros em trabalhos acadêmicos : “Diversas das pesquisas qualitativas realizadas focam em como as garotas são más umas com as outras”, diz a professora. Elas tratam do tema como um problema a ser resolvido e, frequentemente, propõem soluções. É esse o espírito do livro Queen Bees and Wannabees, de Rosalind Wiseman. Lançado em 2002, ensina aos pais de garotas adolescentes como navegar por uma fase em que crises entre amigas e difamações ganham destaque na vida das meninas. A intenção é ensiná-las a ser mais gentis umas com as outras. O livro serviu de inspiração para Meninas malvadas, filme que estreou em 2004.

Para Orpinas, esses trabalhos erram o foco. Sua pesquisa mostrou que agressão relacional – a forma como os cientistas chamam os insultos, boatos ou o ato hostil de impedir que um amigo sente com você à mesa do almoço, de modo a excluí-lo do seu círculo social – é algo experimentado por meninos e meninas, e que tende a perder frequência com os anos: conforme amadurece, o adolescente percebe que cooperar é uma atitude mais produtiva.

Os dados da pesquisadora também defendem que essa é uma atitude mais comum entre garotos. E que as meninas, ao contrário do que se pensa, tendem a ser vítimas, não algozes. Orpinas dividiu os estudantes em três grupos diferentes, de acordo com a frequência com que eram vítimas ou autores desse tipo de agressão. E os agressores mais frequentes eram garotos. No grupo classificado como de alta agressividade, 66,7% dos estudantes eram meninos, contra 33,3% meninas.

Não que Orpinas queira substituir um mito por outro - ela não quer estabelecer o estereótipo do “menino malvado”. Mesmo assim, surpreende como o mito da menina malvada persiste, visto que estudos menores chegaram, no passado, a resultados semelhantes: “É difícil explicar por que isso acontece”, diz Orpinas. “Mas essa é uma narrativa que vende mais. Então parece natural que continuemos a tratar do assunto dessa maneira”.

ÉPOCA - O que é agressão relacional?
Pamela Orpinas - Agressão relacional é aquele tipo de comportamento que causa danos a pessoas, ou é pensado para manipular suas atitudes. Ocorre de diferentes formas: pode significar espalhar um rumor para prejudicar a imagem de alguém. Ou fazer ameças como: “Se você não me obedecer, não serei mais seu amigo”. Ou dizer a alguma pessoa que ela não pode andar com o seu grupo.

ÉPOCA - É o tipo de experiência que, parece, as pessoas vivenciam ao longo de toda a vida, embora de diferentes maneiras. Há um momento em que essas agressões são mais graves?
Orpinas - Nosso estudo teve duração de sete anos. Durante esse tempo, toda criança e adolescente com quem conversamos foi alvo – ou autor – desse tipo de comportamento. Mesmo se você pensar sobre as pessoas que trabalham com você, lembrará histórias sobre pessoas que espalharam rumores negativos sobre alguém. O que acontece durante o ginásio, quando as crianças têm entre 11 e 14 anos, é que há um estalo. Aumenta muito a frequência desse tipo de atitude. As pessoas, nessa fase da vida, revelam-se muito más. Quando envelhecemos, percebemos que é importante aprender a trabalhar bem com os demais. Você descobre que não precisa adorar seus colegas de trabalho, mas que, ainda assim, precisa colaborar com eles. Vocês não precisam ser melhores amigos, mas colaborar para realizar seu trabalho bem. E isso acontece também com as crianças eventualmente. Quando os jovens amadurecem, por volta do fim do colegial, esse tipo de agressão arrefece.

ÉPOCA - Há diferenças de comportamento de acordo com o sexo?
Orpinas - Essa era uma área questão que me interessava por causa dos trabalhos realizados até aqui. A maioria reforça um antigo estereótipo da “menina malvada”. Ele foi extremamente disseminado. Está em livros, em filmes, na internet. Diversas das pesquisas qualitativas realizadas focam em como as garotas são más umas com as outras. Mas pouco se diz sobre as agressões realizadas entre os garotos. Por isso decidimos acompanhar um grupo de alunos por sete anos. Mais ou menos dos 11 aos 18 anos ( da 6ª  a 12ª séries nos EUA). Seguimos as experiências mesmo daqueles que deixaram de estudar. Em todos os casos, o nível de agressão aumenta entre a 7ª e a 8ª séries e depois decresce. E as observações mostraram que era mais comum que os meninos agredissem outros colegas.

ÉPOCA - Se isso é verdade, por que esse mito da menina malvada se tornou tão popular?
Orpinas - É difícil determinar a razão. O mito se tornou popular e ganhou grande repercussão a partir da metade dos anos 1990. Firmou-se o discurso de que os meninos, quando cometem violências, os fazem por meio de agressões físicas, enquanto que as mulheres recorrem a agressões psicológicas. E o conceito da menina malvada explodiu – livros foram escritos a respeito, estudos foram feitos reforçando esse estereótipo e algumas conferências foram organizadas sobre o tema, tentando encontrar soluções para pôr um fim às meninas malvadas. Mas os estudos que observaram o comportamento de grandes grupos de crianças e adolescentes concluíram que não existem diferenças fundamentais entre meninos e meninas. E nossos resultados são importantes não porque precisemos criar um novo estereótipo do “garoto malvado”, mas porque devemos nos livrar dessa imagem que recai sobre as meninas. E precisamos nos dar conta de que a maioria dessas crianças é bem intencionada. Elas querem estudar e fazer amigos. Mas acho que falar o contrário vende mais livros, torna o assunto mais atraente. Por isso focamos nesses estereótipos.

ÉPOCA - E por que as crianças mais novas são mais agressivas?
Orpinas - Ao menos nos EUA, talvez isso ocorra como reflexo de como a escola é organizada. Da primeira até a sexta série, as crianças estudam em colégios menores. A partir da sexta série, elas são transferidas para colégios maiores, com alunos mais velhos, que não conhecem. Tudo isso enquanto têm 12,14,15 anos. Trata-se de um período naturalmente complicado. Seus níveis hormonais e o tamanho do seu corpo mudam. Algumas crianças crescem rápido, outras ficam mais baixas. Outras, ainda, assumem aparência mais adulta. Ao mesmo tempo, essas crianças tentam se ajustar a um novo grupo social, em meio a novos colegas. A dinâmica muda um pouco quando eles migram para o colegial. Ao menos nos EUA, é durante o colégio que as notas passam a contar para o ingresso em universidades. Os relacionamentos ainda são muito importantes nessa época, mas a relevância do desempenho acadêmico cresce. Seu desempenho precisa melhorar. E ser mau é algo que a maioria dos grupos de trabalho não valoriza. Os agressores não são populares, não de verdade. Se você tem de trabalhar com alguém em um projeto, vai preferir trabalhar com um colega tranquilo, gentil. A mesma regra vale para adultos. Com que tipo de pessoa você prefere trabalhar? Alguém com quem você se dê bem, que seja bom no trato com pessoas.

ÉPOCA - Quando envelhecemos, então, nos damos conta de que é melhor cooperar?
Orpinas - Isso. Afinal, você precisa trabalhar. E vai trabalhar com pessoas de que você gosta mais, e com outras de que gosta menos. Quando as pessoas são “maldosas”, criam um ambiente negativo.

ÉPOCA - E por que os agressores fazem isso?
Orpinas - A primeira explicação é que os agressores, geralmente, veem seu comportamento ser premiado. Isso acontece quando outras crianças riem do insulto que ele fez a um colega, ou quando ele consegue o dinheiro da merenda de outras crianças. Essa é também uma forma de se afirmar e angariar poder. Crianças querem se encaixar em algum grupo e ser admiradas. Esse é um desejo normal.


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