Contribua com o SOS Ação Mulher e Família na prevenção e no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar

Banco Santander (033)

Agência 0632 / Conta Corrente 13000863-4

CNPJ 54.153.846/0001-90

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Ser ou não ser visto, eis a questão. Por Claudia Penteado

Quando não somos mais vistos por alguém, deixamos de existir. É "o olhar do outro", segundo Lacan, que confirma nossa existência (Foto: Silena Lambertini)
Quando não somos mais vistos por alguém, deixamos de existir. (Foto: Silena Lambertini)

Na 'Visita' de hoje, Claudia analisa como a indiferença equivale à morte em vida - e como o bloqueio no Facebook 'mata' o bloqueado

23/11/2014

"O que faz andar o barco não é a vela enfunada, mas o vento que não se vê" (Platão)

Dia desses debatia num grupo de leitura sobre o que acontece quando deixamos de amar alguém. O personagem de Marcel Proust, em um dos livros de Em busca do tempo perdido, sofre as dores de um amor supostamente não correspondido, e fantasia sobre o dia em que aquele amor não significará mais nada. 

A esperança na "futura indiferença" o ajuda a lidar com a desilusão do presente. A indiferença - no lugar da raiva, ou de qualquer outro afeto – é o grande sinalizador do fim de um amor. O fim da linha de um sentimento é quando deixamos de nos importar. Quando a pessoa se torna invisível. 

Uma pessoa do grupo lembrou o caso de uma tribo Zulu do sul da África onde a saudação usada por habitantes é “Sabuwona” e significa "Eu te vejo". Em retorno,  o interlocutor diz “Sikona”, cuja tradução é "Eu estou aqui". Diariamente, pratica-se o reconhecimento da existência das pessoas ao redor.

Só passa despercebido - e não é cumprimentado - quem praticou alguma ofensa contra a tribo. Nesse caso, embora essa tribo não adote em suas leis a pena de morte, a pena máxima decretada é a da invisibilidade. Quando uma pessoa é “condenada”, ninguém na tribo a cumprimentará com "Sabuwona”. Nenhum habitante da tribo a enxergará. Ela pode gritar, fazer o que quiser para chamar a atenção. Não será mais "vista" por ninguém. Em geral, pessoas tornadas invisíveis nessa tribo acabam indo embora e morrendo na selva. A invisibilidade é uma pena tão cruel quanto a pena de morte propriamente dita.

Quando não somos mais vistos por alguém, deixamos de existir.  É a visão de Jacques Lacan, que disse que somos constituídos pelo "olhar do outro". E se morremos para alguém, em muitos casos morremos um pouco também para nós mesmos.  Ou completamente.

Numa certa medida, promover a invisibilidade nos dias de hoje é corriqueiro.  É comum, por exemplo, “bloquear" alguém no Facebook. Não reconhecer mais a existência de alguém nas redes sociais, essas praças de convivência da atualidade, equivale a fazê-la desaparecer, a matá-la simbolicamente.

Para quem bloqueia, é como dizer: você morreu para mim. Para o bloqueado, é a ofensa máxima e mais agressiva desses nossos tempos de relacionamentos virtuais, sem conserto em qualquer instância. 

Vi uma palestra sobre os pichadores nos centros urbanos, condenados e perseguidos por suas pichações. Em monumentos e prédios altos, as marcas são, na verdade, gritos por atenção, de pessoas que sofrem de invisibilidade social. Pessoas cujas vidas são tão invisíveis para a grande maioria e tão sem sentido para elas próprias, que mexer na ordem do sistema das grandes cidades e deixar marcas torna-se um breve existir, um gesto que tira momentaneamente da invisibilidade.

De pichações a arrastões, há ao nosso redor, diariamente, tentativas de romper com a invisibilidade social a que boa parte da população é condenada. A cidade é o palco essencial e as pichações são gritos de “somos alguém”. Diferente do grafite, a pichação não quer enfeitar, não quer colorir, não quer sequer ser “lida”. Seu único recado é o grito. O psicanalista Guilherme Scandiucci, que dedicou um trabalho às pichações urbanas, diz que pichar é uma das falas mais concretas de uma cidade. Revela que a alma da polis precisa de cuidado, de atenção. É uma ferida exposta.

Faz pensar sobre o quanto contribuímos, com a nossa indiferença, para a alma doente da cidade em que vivemos. Quantas pessoas, diariamente, deixamos de enxergar e ouvir ao nosso redor - familiares, maridos, esposas, filhos, amigos, porteiros, vendedores, funcionários, colegas de trabalho -, ao realizar atividades cotidianas, automatizadas, como robozinhos sem alma. 

Quantas pessoas substituímos pela tela do celular numa mesa de bar, em almoços de família, pseudo-encontros. Não ver, não ouvir, virou hábito. E como diz um escritor americano, o hábito é como um fio invisível, mas a cada vez que o repetimos o ato reforça o fio, acrescenta-lhe outro filamento, até que se torna um enorme cabo, e nos prende de forma irremediável, no pensamento e ação.

É bom lembrar também o quanto nós mesmos nos sentimos invisíveis - no trabalho, no relacionamento amoroso, nas ruas. E o quanto nós mesmos precisamos ouvir de alguém “Eu te vejo”, para nos sentirmos vivos. Sabuwona!

Nenhum comentário:

Postar um comentário