06/01/2015 por Nelson Rosenvald
A responsabilidade civil decorrente da omissão de cuidado tem sido prestigiada pela doutrina de direito privado e jurisprudência, sobremaneira após a decisão do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.159.242, de Abril de 2012 que ofereceu bases jurídicas mais sólidas para o deslinde de colisões de direitos fundamentais envolvendo a liberdade do genitor e a solidariedade familiar.
Em resumo, a Min. Relatora Nancy Andrighi salientou que, na hipótese, não se discute o amar – que é uma faculdade – mas sim a imposição biológica e constitucional de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerar ou adotar filhos. Assim, considerou o cuidado como um valor jurídico objetivo, sendo que a omissão do genitor no dever de cuidar da prole atinge um bem juridicamente tutelado - no caso, o necessário dever de cuidado (dever de criação, educação e companhia) - importando em vulneração da imposição legal, gerando a possibilidade de pleitear compensação por danos morais por abandono afetivo. O cuidado, vislumbrado em suas diversas manifestações psicológicas, é um fator indispensável à criação e à formação de um adulto que tenha integridade física e psicológica, capaz de conviver em sociedade, respeitando seus limites, buscando seus direitos, exercendo plenamente sua cidadania.
Não temos dúvidas que o mérito da decisão consiste em oferecer parâmetros objetivos para a tensão entre os princípios da liberdade e solidariedade e isto se fez, no momento em que o fundamento da ilicitude da conduta paterna migra da metafísica ofensa a um suposto “dever de amar”, ou mesmo da violação a etérea cláusula geral da dignidade da pessoa humana, para uma objetiva conduta antijurídica consistente na omissão do dever de cuidado assinalado nos incisos I e II do artigo 1634 do Código Civil, concretamente consubstanciados na violação dos deveres de criação, educação, companhia e guarda. A doutrina familiarista não pretende judicializar o amor, ou descobrir um pretenso princípio da felicidade.
Evidencia-se o equívoco na adoção da pioneira expressão abandono afetivo, por remeter a discussão ao pântano da subjetividade – legitimando todas as críticas daqueles que censuram a reparação dos danos pelo fato do afeto ser incoercível -, com a necessária substituição pela expressão omissão de cuidado, que evidencia a intolerância do sistema jurídico brasileiro com comportamentos demeritórios ao dever de solidariedade dos pais perante os filhos.
Assim, recomenda-se o distanciamento da concepção do abandono afetivo como fonte de responsabilidade civil. Há de se referenciar o cuidado. Sem sombra de dúvidas o cuidado é uma forma de amor, porém não se trata do amor que vincula um casal pelo afeto, ou do sentimento que os pais nutrem pelos filhos. O cuidado é um amor construído com dispêndio de tempo e energia – o amor proativo da pós-modernidade -, forjado em um processo diuturno de providências, e sacrifícios; ou seja, atos materiais perfeitamente sindicáveis e objetivamente aferíveis por um espectador privilegiado. Esse cuidado ocorre a margem da miscelânea de sentimentos e emoções que permeiam a razão e o instinto dos cuidadores. Na pluralidade do Estado Democrático de Direito, o vasto setor da vida íntima de cada ser humano é impermeável aos humores do legislador de plantão. Todavia, na privacidade da relação filial, o adimplemento do cuidado é o fato jurídico que interessa ao ordenamento jurídico.
Associar irresponsavelmente o abandono afetivo a uma mera negativa de afeto propiciaria elevada insegurança jurídica, a ponto de filhos terem a aptidão de deduzir pretensões de responsabilidade civil contra os pais, mesmo que vivam todos no mesmo lar, pelo fato de que o genitor fora uma pessoa pouco carinhosa e amável, mesmo que jamais tenha negligenciado o dever imaterial de cuidado.
Por isto, compartilhamos a nossa preocupação com a precisão semântica. Dar a um modelo jurídico um nome adequado é fundamental para lhe emprestar precisão, eficácia e coerência com o sistema jurídico. Os membros da família devem se responsabilizar uns pelos outros, quando existe algum tipo de vulnerabilidade. Essa responsabilidade independe do afeto, pois se trata de deveres de conduta objetivos, cuja fonte é a filiação, e quando os deveres não são exercidos de forma espontânea, o Estado interfere e imputa tal responsabilidade, para que a pessoa vulnerável tenha garantida uma vida digna.
Vale dizer, a omissão de cuidado é um ato ilícito que não apenas viola a norma infraconstitucional acima exposta, mas ofende diretamente o direito fundamental à convivência familiar (art. 227, CF), na medida em que a própria Carta Constitucional, em seu artigo 229, assume que “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.
É certo que esses dispositivos possuem forte conotação moral. Ocorre que, no paradigma do Estado Democrático de direito, mesmo que um princípio seja embasado em elementos sociológicos, depois que está posto, não poderá ser corrigido. Se a Constituição diz que há um dever de assistir, criar e educar, Assume-se que a negativa a esses deveres representa não apenas uma conduta reprovável, porém antijurídica. A omissão de cuidado fere a ética e o direito.
De fato, a tradição do direito de família era a de deferir aos pais a privacidade de optar entre humanizar e coisificar os filhos, mesmo que a escolha pela indiferença pudesse impactar na moral de muitos de nós. Felizmente, o Direito não pode mais ser cindido da ética. Não é possível dizer, como se fazia “antigamente”, que uma conduta é imoral, mas legal. Em sede de deveres de convivência entre pais e filhos não se pode tergiversar com qualquer moral particular. As questões de princípio se sobrepõem às questões de política. Seria empobrecedor converter o dever constitucional e objetivo de cuidado em figura de retórica ou mero enunciado performativo que fique a disposição do intérprete. A normatividade dos artigos 227 e 229 somente não será fragilizada se, em um viés dworkiniano, levarmos esses princípios à sério.
Por conseguinte, o dado cultural da personalização da família submeteu ao império da ilicitude todo e qualquer comportamento indicativo de que o procriador não exerce o status de pai socioafetivo por deixar de adotar o próprio filho. A ausência do vínculo de conjugalidade dos pais em nada afeta o vínculo de parentalidade. Se o par conjugal fracassou, a dupla parental obrigatoriamente será preservada. Esse dever constitucional de solidariedade justifica a qualificação da ilicitude ao ato antijurídico por omissão do dever de cuidado.
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