Hoje, há menos de uma morte por ano em decorrência da interrupção da gravidez no país, que, por permitir à mulher fazer suas escolhas, tem uma das taxas de fecundidade mais altas da Europa
por Lena Lavinas* — publicado 17/01/2015
Os ecos ainda ressoam na memória e nos trazem uma imagem nítida e esfuziante, porque carregada da emoção de uma mobilização nacional sem precedentes. Dentre as maiores conquistas do pós-68 na França, sem dúvida o direito ao aborto livre e seguro foi das mais extraordinárias e incontestes. Contemplou a todas as mulheres que puderam, assim, romper a solidão e a clandestinidade, o medo e a vergonha, para expressar seu direito individual e inalienável de escolha.
Foram muitas as etapas de uma estratégia vitoriosa que ganha força no início dos anos 70, primeiro com a divulgação, em 1971, do Manifesto das 343 pelo Nouvel Observateur, declarando já ter realizado um aborto clandestino, então considerado crime com base na lei de 1920. Naquele mesmo ano, dá-se a criação da organização Choisir, de iniciativa de Gisele Halimi, advogada notável e incansável na sua cruzada em favor da descriminalização do aborto. Em 1973, surge o MLAC (Movimento pela Liberalização do Aborto e da Contracepção) que reúne à época não apenas feministas, mas também membros da classe médica que passam a praticar aborto seguro, ainda que ilegal e passível de prisão.
Finalmente, o governo Giscard d'Estaing, na pessoa de sua Ministra da Saúde, Mme. Simone Veil, ousa levar ao hemiciclo da Assembléia, em novembro de 1974, um projeto de lei para autorizar o aborto. A Lei Veil será aprovada em 17 de janeiro de 1975, resgatando o que a Ministra denominou “uma convicção de mulher”: o aborto é uma decisão difícil, conflitiva, dolorosa, sempre revestida de um drama individual. Nada, no entanto, justifica manter uma lei repressiva que coloca em risco vidas e a saúde reprodutiva de milhões de mulheres. A interrupção voluntária da gravidez, sob controle médico, revela-se a melhor maneira de celebrar a vida e preservar a integridade física e psicológica das mulheres, dimensão incontornável de toda sociedade democrática.
Após 40 anos, o saldo é dos mais positivos. Segundo estatísticas oficiais, há menos de 1 morte/ano na França em consequência da prática do aborto (0,3 morte por 100.000 IVG). São realizadas anualmente cerca de 220 mil interrupções de gravidez, um número que se mantém praticamente inalterado nas últimas décadas, explicitando o fato de que, apesar dos métodos contraceptivos, estes nem sempre funcionam satisfatoriamente, sem falar nos riscos fora de controle. A título de ilustração, vale assinalar que, segundo a pesquisa Fécond (2013), somente 3% das francesas entre 15 e 49 anos, que nem estavam grávidas, nem tampouco se declararam estéreis, e assumiam relações heterossexuais, afirmaram não empregar nenhum método contraceptivo para evitar uma gravidez indesejada. Logo, não se fica grávida por irresponsabilidade.
Dois métodos de abortamento estão disponíveis, inteiramente gratuitos, até 12 semanas de gravidez. A opção cabe às mulheres, inclusive menores de idade (sem autorização parental). O aborto cirúrgico, realizado na rede hospitalar, tem, ademais, tarifa revalorizada de forma constante pelo poder público, para evitar que sua prática seja questionada. Já o aborto medicamentoso, feito a partir da ingestão de comprimidos (pílula do dia seguinte), demanda apenas algumas horas de observação e pode ser realizado tanto em consultório quanto em hospitais. Este tipo de procedimento já é majoritário (57%) no país.
Em paralelo, porque as mulheres podem fazer escolhas, a França exibe hoje uma das taxas de fecundidade mais altas da Europa (2,03).
Atualmente, apenas três países europeus ou proíbem o aborto (Malta, de propriedade do Vaticano) ou restringem seu acesso legal a casos de risco de morte da mãe, estupro ou anencefalia (Irlanda e Polônia). As feministas no continente mobilizam-se para incorporar à Carta Européia dos Direitos Fundamentais a liberdade do aborto. Numa outra frente, lutam para que os cortes no orçamento, impostos pelas políticas ortodoxas notadamente na saúde, não venham sabotar um direito conquistado.
Em 17 de janeiro de 1975, os deputados franceses que aprovaram o direito a um aborto legal e seguro eram majoritariamente homens.
Já no Brasil, inúmeros projetos de lei em defesa da legalização do aborto continuam engavetados no Congresso; centenas de brasileiras já declararam publicamente ter abortado; o SUS tem todas as condições de prestar tal serviço, até porque os custos de um aborto medicalizado são infinitamente menores do que aqueles decorrentes de complicações de interrupções clandestinas, muitas vezes em mãos de criminosos, como nos recordam os casos recentes de Jandira Madalena e Elizângela, mortas por falha do Estado brasileiro.
No quesito direito a um aborto seguro e legal, nós brasileiros estamos atrasados, pelo menos 40 anos e, no que depender apenas dos legisladores, ainda com chances pífias de mudança.
*Lena Lavinas é professora de economia do bem-estar do Instituto de Economia da UFRJ.
Carta Capital
'Contracepção e aborto livres e gratuitos': ato em 1971, ano em que a filósofa Simone de Beauvoir redigiu o manifesto das 343 mulheres que fizeram aborto Reprodução |
por Lena Lavinas* — publicado 17/01/2015
Os ecos ainda ressoam na memória e nos trazem uma imagem nítida e esfuziante, porque carregada da emoção de uma mobilização nacional sem precedentes. Dentre as maiores conquistas do pós-68 na França, sem dúvida o direito ao aborto livre e seguro foi das mais extraordinárias e incontestes. Contemplou a todas as mulheres que puderam, assim, romper a solidão e a clandestinidade, o medo e a vergonha, para expressar seu direito individual e inalienável de escolha.
Foram muitas as etapas de uma estratégia vitoriosa que ganha força no início dos anos 70, primeiro com a divulgação, em 1971, do Manifesto das 343 pelo Nouvel Observateur, declarando já ter realizado um aborto clandestino, então considerado crime com base na lei de 1920. Naquele mesmo ano, dá-se a criação da organização Choisir, de iniciativa de Gisele Halimi, advogada notável e incansável na sua cruzada em favor da descriminalização do aborto. Em 1973, surge o MLAC (Movimento pela Liberalização do Aborto e da Contracepção) que reúne à época não apenas feministas, mas também membros da classe médica que passam a praticar aborto seguro, ainda que ilegal e passível de prisão.
Finalmente, o governo Giscard d'Estaing, na pessoa de sua Ministra da Saúde, Mme. Simone Veil, ousa levar ao hemiciclo da Assembléia, em novembro de 1974, um projeto de lei para autorizar o aborto. A Lei Veil será aprovada em 17 de janeiro de 1975, resgatando o que a Ministra denominou “uma convicção de mulher”: o aborto é uma decisão difícil, conflitiva, dolorosa, sempre revestida de um drama individual. Nada, no entanto, justifica manter uma lei repressiva que coloca em risco vidas e a saúde reprodutiva de milhões de mulheres. A interrupção voluntária da gravidez, sob controle médico, revela-se a melhor maneira de celebrar a vida e preservar a integridade física e psicológica das mulheres, dimensão incontornável de toda sociedade democrática.
Após 40 anos, o saldo é dos mais positivos. Segundo estatísticas oficiais, há menos de 1 morte/ano na França em consequência da prática do aborto (0,3 morte por 100.000 IVG). São realizadas anualmente cerca de 220 mil interrupções de gravidez, um número que se mantém praticamente inalterado nas últimas décadas, explicitando o fato de que, apesar dos métodos contraceptivos, estes nem sempre funcionam satisfatoriamente, sem falar nos riscos fora de controle. A título de ilustração, vale assinalar que, segundo a pesquisa Fécond (2013), somente 3% das francesas entre 15 e 49 anos, que nem estavam grávidas, nem tampouco se declararam estéreis, e assumiam relações heterossexuais, afirmaram não empregar nenhum método contraceptivo para evitar uma gravidez indesejada. Logo, não se fica grávida por irresponsabilidade.
Dois métodos de abortamento estão disponíveis, inteiramente gratuitos, até 12 semanas de gravidez. A opção cabe às mulheres, inclusive menores de idade (sem autorização parental). O aborto cirúrgico, realizado na rede hospitalar, tem, ademais, tarifa revalorizada de forma constante pelo poder público, para evitar que sua prática seja questionada. Já o aborto medicamentoso, feito a partir da ingestão de comprimidos (pílula do dia seguinte), demanda apenas algumas horas de observação e pode ser realizado tanto em consultório quanto em hospitais. Este tipo de procedimento já é majoritário (57%) no país.
Em paralelo, porque as mulheres podem fazer escolhas, a França exibe hoje uma das taxas de fecundidade mais altas da Europa (2,03).
Atualmente, apenas três países europeus ou proíbem o aborto (Malta, de propriedade do Vaticano) ou restringem seu acesso legal a casos de risco de morte da mãe, estupro ou anencefalia (Irlanda e Polônia). As feministas no continente mobilizam-se para incorporar à Carta Européia dos Direitos Fundamentais a liberdade do aborto. Numa outra frente, lutam para que os cortes no orçamento, impostos pelas políticas ortodoxas notadamente na saúde, não venham sabotar um direito conquistado.
Em 17 de janeiro de 1975, os deputados franceses que aprovaram o direito a um aborto legal e seguro eram majoritariamente homens.
Já no Brasil, inúmeros projetos de lei em defesa da legalização do aborto continuam engavetados no Congresso; centenas de brasileiras já declararam publicamente ter abortado; o SUS tem todas as condições de prestar tal serviço, até porque os custos de um aborto medicalizado são infinitamente menores do que aqueles decorrentes de complicações de interrupções clandestinas, muitas vezes em mãos de criminosos, como nos recordam os casos recentes de Jandira Madalena e Elizângela, mortas por falha do Estado brasileiro.
No quesito direito a um aborto seguro e legal, nós brasileiros estamos atrasados, pelo menos 40 anos e, no que depender apenas dos legisladores, ainda com chances pífias de mudança.
*Lena Lavinas é professora de economia do bem-estar do Instituto de Economia da UFRJ.
Carta Capital
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