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domingo, 18 de janeiro de 2015

Sexo, machismo, indústria, política: como nascem os brasileiros hoje

Ligia Moreiras Sena
Cientista e mãe, escritora do blog Cientista Que Virou Mãe
Publicado: 

Nossa sociedade se desenvolveu sobre algumas crenças. "Parirás com dor" é uma. Todo homem e mulher cresceu, reforçados pela mídia e pela indústria médica, ouvindo: parto é dor, parto é dor, parto é dor. Mas parto não é dor. E dizer isso não significa ignorar ou minimizar o componente doloroso do parto que - sim - existe, e todo mundo sabe que existe. Significa dar a ele seu real significado. Mais do que isso: significa falar sobre a verdadeira dor que muitas mulheres estão vivendo em seus partos atualmente no Brasil.

Não estamos falando de dor física. Brasileiras estão sofrendo dores terríveis que nada têm a ver com a chamada "dor do parto". Mas que tem a ver com a forma como estão sendo tratadas não somente pelo sistema médico hospitalar mas por toda a sociedade.

E se você acha que, por estarmos falando sobre parto você nada tem a ver com isso, errou. Parto não é algo que "Ah! Eu não quero falar sobre parto porque eu sou jovem, ainda não penso em ter filhos". Ou, "Eu não quero falar sobre parto porque sou homem, biologicamente não vou parir". Ou, "Eu não quero falar sobre parto porque eu sou mulher e escolhi não ter filhos". Ou ainda, "Eu não quero falar sobre parto porque... ah, porque eu não quero falar sobre vagina. Falar sobre 'isso' me constrange"

Essa última justificativa merece até uma discussão maior. Você já notou que as pessoas não gostam de falar vagina? Pois não gostam. Falam todo tipo de nome para se referir a ela, de nominhos fofos a nomes grosseiros, passando por nomes de animais, plantas ou países. Mas não falam vagina. Começando por pepeca, pombinha, passarinha e indo até formas mais enfáticas, fala-se tudo, menos vagina.

Seja lá qual for a justificativa utilizada para evitar o assunto, o fato é: parto não é assunto de interesse exclusivo de algumas poucas pessoas. Todos nós nascemos um dia. As mães de todos nós passaram por situação de parto/nascimento. Cem por cento da humanidade tem a ver com esse assunto. Mulheres deram à luz a cada um de nós. E continuam dando à luz todos os dias. Como cidadãos críticos, portanto, em busca de um mundo mais justo e menos violento, nós temos que nos perguntar: como essas mulheres estão dando à luz? O que está sendo feito delas nesse momento?

As pessoas acham que todo nascimento é lindo. Não é. Dizer que todo nascimento é lindo significa ignorar milhares de mulheres que viveram atrocidades em um momento que - sim! - deveria mesmo ser lindo. E não podemos dizer que é lindo algo que não foi! Fazer isso é ignorar, mais uma vez, muitas histórias de violência contra a mulher. E as mulheres, como vítimas de diferentes formas de violência, já foram ignoradas por tempo demais. Não. Nem todo nascimento é lindo.

A violência no parto, ao contrário do que muita gente acha, não é algo que se atribua apenas a uma categoria profissional, os médicos. É um problema complexo e que, por ser complexo, possui múltiplas dimensões. Obviamente, grande parte do problema poderia ser minimizado com uma profunda mudança de postura profissional médica. Mas outras dimensões também precisam ser modificadas, se quisermos, verdadeiramente, erradicar o parto violento e a epidemia de cesarianas - que muitas vezes são sinônimos. Conheça agora 7 fatores que estão contribuindo para que os brasileiros estejam nascendo tão mal e de maneira tão mecânica.

1) A SOCIEDADE MACHISTA
A violência no parto tem a ver com a sociedade machista, que desde sempre acha que pode legislar sobre o corpo feminino, dizendo à mulher como ela deve se vestir, como ela deve se portar, como deve falar, o que deve estudar, o que deve fazer, se deve parir, como deve parir.

Como feminista, defendo o direito da mulher decidir livremente o que fazer com seu corpo. Em TODOS os sentidos. E eu disse TODOS. Mas quando uma mulher usa esse argumento para dizer que fez jus ao seu direito de escolha ao optar por uma cesariana eletiva (e muitas que fizeram usam esse argumento), o que é preciso questionar: "É verdade mesmo? Foi você? Ou fizeram você acreditar que a escolha era sua, quando não era? Com base em que você decidiu? Que tipo de influência recebeu? De quem recebeu?". Porque não adianta dizer que decidiu por si quando o que fez foi, apenas e somente, reproduzir um discurso que nem seu era, reprodução essa fundamentada em coação, pressão, terrorismo. Afinal de contas, se uma mulher diz que "escolheu cesariana porque foi visto no ultrassom que o bebê era grande, ou que havia volta de cordão no pescoço do bebê, ou que ela é pequena para o tamanho do bebê" ou qualquer outra justificativa que, sabemos (ou deveríamos saber), são falsas, mentirosas e fictícias, então fica claro que não, ela não escolheu. Escolheram por ela. Mais uma vez, e de maneira bastante sutil, seu corpo foi legislado por terceiros. É por isso, então, que o que eu, como ativista da humanização do parto e feminista, defendo é a escolha informada. Informar-se, para escolher.

Quando alguém oferece a uma mulher motivos falsos para ser operada, o que está fazendo, na verdade, é apoderar-se de um corpo que não é seu, como se fosse. É ver aquele corpo como uma mercadoria, um produto do qual pode se apropriar. E isso é um pensamento tipicamente machista. O mesmo machismo escancarado expresso na famosa frase, dita a tantas mulheres por tantos profissionais despreparados: "Na hora de fazer não gritou, né?! Agora tá chamando a mamãe por que?!".

Quem foi que disse que pra fazer não gritou?! Uma mulher não pode gritar no sexo? Não pode se manifestar no sexo? Que falem por si e pelo que veem em sua própria casa, sejam homens ou mulheres. Mas que não transponham sua realidade e o seu pensamento preconceituoso para a mulher a quem deveriam atender com atenção e cuidado. Isso é machismo - e é apenas uma forma dele, entre tantas... Mesmo quando proferido por mulheres.

2) O TABU DO SEXO
A violência no parto tem a ver com o tabu do sexo. E parto é sexo. Se, em nossa sociedade moralista, sexo é tabu, então parto também passa a ser. Você já parou pra pensar que parto seria o desfecho final do sexo heterossexual praticado se não fizéssemos nossas escolhas de planejamento reprodutivo? Então, parto é sexo e, como tal, também deveria ser bonito e prazeroso, oras...

Envolve tudo que o sexo envolve. Envolve os mesmos hormônios (prolactina, ocitocina, endorfinas, adrenalina), as mesmas posições (que não se resumem a uma mulher deitada de barriga para cima, de pernas abertas, em posição passiva), a mesma via natural vaginal, os mesmos barulhos, os mesmos cheiros, o mesmo suor, os mesmos gemidos.

Mas a sociedade tem medo do sexo...

Tem medo, principalmente, da mulher que lida de maneira tranquila com sua sexualidade. A essas, chama de "vadia". É por isso também que, portanto, para nós, feministas, "vadia" não representa uma ofensa. Porque se está se referindo à liberdade sexual, à liberdade de escolher o que bem fazer com sua própria sexualidade, então "vadia" não tem nada de pejorativo.

A sociedade tem medo da mulher que geme, da mulher que se mostra ativa. Isso constrange, isso intimida, embora seja o que tantos desejam - declaradamente ou em segredo - inclusive ou principalmente elas próprias. Querem, mas não podem ver. Porque se desconstroem. E embora muito se diga sobre a suposta "liberalidade" do brasileiro, a gente sabe: brasileiro é um povo moralista. Moralista e hipócrita: não gosta de ver peito de mulher amamentando, mas adora carnaval e seus peitos de fora. Adora filme pornô. Mas não pode ver uma mulher lidar de maneira saudável com o trabalho de parto, porque ela geme, ela sua, ela fica de quatro, ela rebola. 

Assim, portanto, uma coisa se torna óbvia: uma sociedade que tem problemas para lidar com o sexo, também terá problemas para lidar com parto. E estão aí nossas taxas de cesarianas para mostrar a realidade...

3) A INDÚSTRIA DO NASCIMENTO
A violência no parto tem a ver com o nascimento encarado como uma indústria das mais rentáveis, com mulheres sendo abertas a cada 40 minutos, ainda que o processo natural de nascimento leve horas e horas a fio. Como no filme protagonizado por Charles Chaplin, mas com mulheres no lugar dos parafusos e porcas. Tantas mulheres desejando ter experiências individualizadas de parto e nascimento... e dando à luz exatamente igual umas às outras, de maneira mecânica, fria, não protagonizada por ela, cirúrgica, metálica, estéril. Exatamente como precisa ser uma indústria.

4) O PARADIGMA MÉDICO E BIOMÉDICO ATUAL DA SOCIEDADE
Violência no parto tem a ver com a sociedade em que vivemos, pautada no conhecimento hegemônico médico e biomédico - tecnocrático, como diria Robbie Davis-Floyd. E é bom que se saiba: só vivemos nesse paradigma médico, cartesiano, reducionista, que divide a vida em sistemas que dão a falsa sensação de que não se conectam e de que podem ser controlados, há muito pouco tempo na história humana. E não se surpreenda nem um pouco ao saber que é uma história casada com o percurso histórico do capitalismo, que vende tudo, inclusive corpos... Crescemos achando que a palavra médica é soberana, é sábia, é indiscutível e somos diariamente estimulados para que assim acreditemos, via mídia, via indústria farmacêutica, via discurso de riscos.

Mas, você tem que concordar: se a palavra médica fosse realmente indiscutível, soberana e invariavelmente sábia, não nos depararíamos cotidianamente, com uma frequência assustadora, com os tais MITOS MÉDICOS DO PARTO, que nos foram inculcados de maneira sutil ou descarada.

Assim, saiba: cordão enrolado no pescoço do bebê não é motivo para cesárea - por que seria? O bebê no útero da mãe sequer respira pelas vias áreas superiores, a troca gasosa é feita via vasos sanguíneos do cordão, por que estar enrolado no pescoço, portanto, representaria perigo? Idade não é motivo para cesárea. Bacia estreita não é motivo para cesárea. Ser baixinha não é motivo para cesárea. Cesárea anterior não é motivo para uma nova cesárea. Bebê sentado não é motivo para cesárea. E não digo isso porque acho. Mas porque é o que nos mostram as mais recentes evidências científicas, estudos sérios, meta-análises contundentes. Você tem que concordar: se a palavra médica fosse realmente indiscutível, soberana e invariavelmente sábia, o Brasil não deteria o vergonhoso número de 52% de cesarianas (considerando o geral). Feitas por médicos.

5) BAIXA AUTO-ESTIMA FEMININA
A violência no parto tem a ver também com a falta de auto estima e empoderamento das mulheres, que muitas vezes buscam seguir um modelo de mulher, um modelo que lhe é imposto, que é irreal, que a torna submissa e vítima. Nesse modelo, as mulheres não podem se mostrar sem controle da situação. Ela deve estar bonita, contida, recatada, submissa, penteada, maquiada, de unhas feitas. Sem discussão. Porque esse é o modelo de mulher que lhe foi vendido. Baixo empoderamento tem a ver com baixa auto estima. Baixo empoderamento é você achar que podem decidir por você. Que qualquer pessoa que use um jaleco branco tem mais autonomia sobre seu corpo do que você. É achar que alguém sabe tanto a ponto de te isentar da busca ativa por informações a respeito de você mesma. É aceitar opiniões de terceiros sem verificar se elas procedem, se elas são fundamentadas, se fazem sentido, se são coerentes. É deixar que a família, o marido, o médico, o agente do posto, qualquer pessoa, decida por você e desconsidere seus próprios desejos. E isso é abrir a porta para que te violentem... É tornar-se vulnerável. 

Isso não tornará você culpada da violência que, porventura, (e eu espero que não) venha a viver. A violência contra a mulher jamais terá como culpada a própria mulher. Mas tornar-se empoderada significa reagir a qualquer forma de violência, quando e onde ela surgir. Significa confiar em si a ponto de gritar, de saber-se e fazer-se ouvida, de botar a boca no mundo e fazer valer os seus direitos de ser humano.

6) POLÍTICAS PÚBLICAS
A violência no parto tem a ver com políticas públicas. No Brasil, nascem por ano cerca de 3 milhões de bebês. Políticas públicas ou a ausência delas têm tudo a ver com o fato de mais de 1 milhão e meio de bebês nascerem de maneira cirúrgica todos os anos. Quem está ganhando com isso? Não são as mulheres. Não são os bebês.

O relatório sobre prematuridade divulgado pela ONU em 2012 diz que o mundo poderia evitar a morte de 250 mil bebês por ano, que morrem em decorrência de prematuridade, com algumas medidas simples. E reduzir as taxas de cesarianas eletivas é uma delas.

No Brasil, já ultrapassamos 80% de cesarianas no serviço privado de saúde. Já ultrapassamos 40% de cesarianas no SUS, quando o que se recomenda pelas organizações de saúde, é um máximo de 15% de cesáreas, cesáreas bem indicadas. Estamos tirando bebês prematuros de dentro de suas mães por motivos que, em sua esmagadora maioria, passam muito além da vontade da mulher. E pior, marcados - mãe e criança - por um processo violento de nascimento. Quando não cortadas em seus ventres, as mulheres estão sendo cortadas em suas vaginas, em mutilações chamadas de "episiotomia", que estão sendo feitas sem qualquer indicação, ao contrário do que recomendam as mais atuais pesquisas. Mas nós preferimos olhar para a infibulação dos outros do que para a nossa própria episiotomia...E a falta de políticas públicas definidas contribui, em muito, para isso.

7) VONTADE POLÍTICA
Violência no parto tem a ver com a falta de vontade política. Acabar com ela também tem a ver com vontade política de mudar. Se há no Brasil um hospital público que é referência no atendimento humanizado às mulheres que estão parindo, o Hospital Sofia Feldman em Belo Horizonte; se há, em um Instituto de Saúde em Campina Grande, na Paraíba, uma obstetra que atende mulheres de maneira digna, respeitosa, humanizada, exclusivamente via SUS, como é o caso da Dra. Melania Amorim, que não faz uma única episiotomia há mais de 10 anos; se há casas de parto que estão acolhendo mulheres e permitindo que deem a luz com dignidade, como a Casa Angela, entre outras casas de parto, é porque É POSSÍVEL!

Nós, que lutamos pela humanização do parto, não queremos parto humanizado, digno, respeitoso, para cinco amigas nossas. Nós queremos para nossas cinco amigas e para todas as mulheres com acesso ao SUS. Mas é preciso representantes políticos que sejam verdadeiramente comprometidos com a humanização, com os direitos das mulheres. É preciso que a gente exija isso deles, que a gente participe.

Depois do nascimento da minha filha, meus olhos foram escancarados para essa realidade. A primeira viagem de avião dela foi comigo, aos 10 meses de idade, quando fomos para um debate sobre violência obstétrica na Câmara Municipal de São Paulo. E foi lá, ao ver e saber que um quarto das brasileiras é violentada no parto, que senti a mais profunda vontade de ajudar a mudar esse cenário de violência e desrespeito aos direitos das mulheres. Desde que minha filha nasceu, tenho buscado o respeito a esses direitos. Que as mulheres possam escolher, com base em informação coerente e confiável, tudo sobre sua vida, e ser respeitada em sua escolha. Como ativista da humanização do parto, quero isso transposto para um dos momentos mais especiais da vida de uma mulher que escolhe ser mãe: o nascimento de um filho.

Porque humanização do parto não é uma sala sem luz, não é um som tocando no rádio, não é um sorriso por trás de uma máscara. É a ideia "radical" de que a mulher tem direito de parir com respeito, sem abuso, sem intervenções, sem violência, com seu corpo respeitado e não mutilado por um corte na vagina ou na barriga, na presença de quem ela escolher, com uma equipe que a respeite como sujeito.

O direito mais violado entre as mulheres do mundo todo é o controle sobre o próprio corpo. Chega de violência que induz uma falsa escolha! Quero que o parto digno, respeitoso, seja o modelo de assistência quando minha filha for adulta. Para o caso dela escolher ser mãe. Para o caso dela escolher viver um parto. Que ela viva numa sociedade que a respeite e a todas as demais mulheres em todos os momentos, inclusive no parto.

De nada vale queremos melhorar o país com ideias tão inspiradoras e transformadoras se os brasileiros continuarem a nascer de maneira violenta...

Se você quiser saber mais sobre violência no parto no Brasil, assista ao documentário "Violência Obstétrica - A voz das brasileiras". Ele está livremente disponível na internet, foi produzido por pesquisadoras da Universidade de São Paulo e Universidade Federal de Santa Catarina e ganhou o prêmio de melhor documentário no Fazendo Gênero 2013, o maior congresso feminista das Américas.

Ligia Moreiras Sena é cientista. E mãe. Autora do blog Cientista Que Virou Mãe e do livo "Educar sem violência - criando filhos sem palmadas".

Brasil Post

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