Tinne Van Loon e Colette Ghunim, produtoras do documentário. / R.G. |
Uma jovem filmou imagens de seu passeio pelo Cairo e mostrou como as mulheres são assediadas. Do sucesso do vídeo na Internet nasce agora um filme
RICARD GONZÁLEZ 10 ENE 2015
Como muitas jovens ocidentais que chegam ao Cairo, a norte-americana Colette Ghunim e a belga Tinne Van Loon ficaram chocadas com a onipresença do assédio sexual nas ruas da capital egípcia. Em vez de apenas expressar frustração, optaram por atacar o problema com sua arma favorita: uma câmera. As duas cineastas acabam de gravar um filme que estreia em breve e que aborda esta chaga: People’s Girls[Garotas da Multidão, em tradução livre]. “O assédio sexual é constante. É difícil que não te afete. Você acaba se sentindo mal consigo mesma, como se fosse culpa sua”, lamenta Ghunim, nascida em Chicago, mas de origem palestina.
Um estudo recente elaborado pelo escritório das Nações Unidas que promove a igualdade de gênero mostra a magnitude dos problemas que são enfrentados pelas egípcias. Cerca de 99% das mulheres adultas declaram ter sofrido assédio sexual alguma vez e 50% dizem que são assediadas diariamente. Dessa forma, não é de se estranhar que 82% das egípcias não se sintam seguras nas ruas, e 43% inclusive evitem sair de casa se não for estritamente necessário.
Para o documentário, Van Loon e Ghunim escolheram dois protagonistas: Esraa, uma atriz amadora de 25 anos que trabalha no departamento de serviço ao cliente de uma multinacional, e Islam, um rapaz de 20 anos de um bairro pobre que ganha a vida dirigindo um tok-tok, os táxis de três rodas que circulam pelas vielas estreitas do Cairo. Seus pontos de vista sobre a questão do assédio não poderiam ser mais divergentes.
Em suas horas livres, Esraa participa de atuações para conscientizar a população sobre o problema. Islam, por sua vez, como muitos egípcios, se mostra condescendente com os assediadores, e ele mesmo reconhece ter abordado algumas garotas na rua.
A gravação do documentário foi possível graças ao sucesso de Creepers on the Bridge [Asquerosos na Ponte], um vídeo de dois minutos postado em agosto para promover o projeto de crowdfunding [plataforma de captação de recursos on-line] da dupla. Inspirado em um popular vídeo que mostra o assédio sexual enfrentado por uma garota nas ruas de Nova York, Ghunim registrou com um celular as reações dos homens com os quais cruzava enquanto caminhava na ponte de Qasr al-Nil, no centro do Cairo.
O assédio sexual é considerado delito no Egito desde o ano passado. “É preciso atacar a raiz, não basta uma lei”, diz a cineasta
“Nosso vídeo é mais honesto do que o do diretor Rob Bliss em Nova York. Ele condensa em dois minutos as experiências de dez horas da atriz perambulando pela cidade. Em nosso caso, o trajeto durou menos de dez minutos”, acrescenta a fotógrafa e cineasta belga. No vídeo, a maioria dos homens com os quais Ghunim cruza lança olhares maliciosos e comentários vulgares.
“O mais frequente são os olhares e comentários obscenos de desconhecidos, mas também tocar as partes íntimas é comum. Não se pode baixar a guarda. Às vezes me dá medo caminhar pela rua e pego uma pedra para me sentir mais segura”, comenta Esraa, cuja pior experiência aconteceu quando conseguiu escapar de um taxista que a levou para um descampado nos arredores com a provável intenção de estuprá-la.
Ao contrário do que diria a intuição, as situações de maior risco acontecem nos lugares de maior movimento, como manifestações, eventos públicos ou meios de transporte, e em plena luz do dia. Em junho, houve uma inesperada mudança na inércia comum das autoridades diante de um problema que não é novo, mas que foi se agravando com o passar dos anos. Uma jovem sofreu uma brutal agressão sexual de vários homens na emblemática praça Tahrir, o epicentro da revolução de 2011.
O caso foi distinto porque aconteceu durante uma comemoração pela vitória do general Abdel-Fatta al Sisi nas eleições presidenciais e foi gravado com um celular. Pouco depois de postado nas redes sociais, se tornou uma sensação, e forçou al Sisi a reagir e transformar a luta contra o assédio em prioridade. Em um gesto para causar impacto, visitou a jovem agredida com um ramo de flores no hospital. Em questão de dias, o presidente assinou um decreto que tipificava pela primeira vez o assédio sexual como delito. O que as organizações de defesa dos direitos da mulher não conseguiram durante décadas de trabalho árduo, o vídeo conseguiu em uma semana.
O decreto, uma emenda ao Código Penal, prevê penas de seis meses a cinco anos dependendo da gravidade da agressão e se o infrator é reincidente. Além disso, também aplica multas de mil a 17 mil reais, uma quantia considerável se levamos em conta que o salário mínimo no país árabe não ultrapassa 235 reais.
Cinco meses depois da aplicação do novo decreto, que incluiu alguma condenação exemplar, os resultados são bem mais escassos. “Uma vez fiz uma denúncia, e a polícia me tratou como se eu fosse uma puta. Não penso em voltar a fazer isso”, lamenta Esraa. “Há um pouco menos de assédio nas ruas. Mas não basta uma lei. As raízes profundas do problema devem ser atacadas, provocar uma mudança cultural”, comenta Van Loon, que morou em outros países do Oriente Médio e acredita que nenhum lugar se compara ao Cairo nessa questão. “Em apenas um dia aqui posso vivenciar um número semelhante de casos de assédio que presenciei em Amã ou Ramallah em três meses.”
Entre os fatores que costuma destacar para explicar esse fenômeno, ela cita a frustração sexual que gera uma sociedade cada vez mais conservadora, mesclada com a ampla divulgação de vídeos eróticos através da televisão por satélite ou pela Internet. “Alguns especialistas afirmam que a causa é a crise econômica, o que elevou substancialmente a média de idade do casamento, especialmente entre os homens, aumentando a frustração sexual”, comenta Rasha Hasan, pesquisadora especializada em assédio que elaborou vários relatórios para diversas instituições.
“Apesar disso, acredito que o verdadeiro fator seja a falta de respeito em relação à mulher e aos seus direitos”, alfineta Hasan; e lembra que a desigualdade de gênero na sociedade egípcia aumentou durante as últimas décadas devido à uma interpretação retrógrada do Islã incentivada pela Arábia Saudita. A fotógrafa belga concorda com o diagnóstico: “Não tenho certeza se a questão da idade do casamento seja a chave. Meu pior caso de assédio foi com um idoso de 70 anos. Para mim o desemprego juvenil é um fator-chave, e a frustração sentida por muitos garotos com suas vidas. O assédio é uma forma de elevar sua autoestima às custas da humilhação de outras pessoas”, diz Ghunim.
Umas das justificativas mais desgastadas dos que desculpam esse tipo de comportamento consiste em atribuir a responsabilidade às vítimas, sobretudo, pela forma de vestir. No entanto, os dados refutam esse lugar comum. Segundo o estudo da ONU, cerca de 75% das mulheres assediadas se vestiam de forma recatada. “Uma das mulheres que entrevistei me disse que sofria assédio inclusive usando um véu que cobria totalmente o rosto”, diz Van Loon.
Um estudo recente elaborado pelo escritório das Nações Unidas que promove a igualdade de gênero mostra a magnitude dos problemas que são enfrentados pelas egípcias. Cerca de 99% das mulheres adultas declaram ter sofrido assédio sexual alguma vez e 50% dizem que são assediadas diariamente. Dessa forma, não é de se estranhar que 82% das egípcias não se sintam seguras nas ruas, e 43% inclusive evitem sair de casa se não for estritamente necessário.
Para o documentário, Van Loon e Ghunim escolheram dois protagonistas: Esraa, uma atriz amadora de 25 anos que trabalha no departamento de serviço ao cliente de uma multinacional, e Islam, um rapaz de 20 anos de um bairro pobre que ganha a vida dirigindo um tok-tok, os táxis de três rodas que circulam pelas vielas estreitas do Cairo. Seus pontos de vista sobre a questão do assédio não poderiam ser mais divergentes.
Em suas horas livres, Esraa participa de atuações para conscientizar a população sobre o problema. Islam, por sua vez, como muitos egípcios, se mostra condescendente com os assediadores, e ele mesmo reconhece ter abordado algumas garotas na rua.
A gravação do documentário foi possível graças ao sucesso de Creepers on the Bridge [Asquerosos na Ponte], um vídeo de dois minutos postado em agosto para promover o projeto de crowdfunding [plataforma de captação de recursos on-line] da dupla. Inspirado em um popular vídeo que mostra o assédio sexual enfrentado por uma garota nas ruas de Nova York, Ghunim registrou com um celular as reações dos homens com os quais cruzava enquanto caminhava na ponte de Qasr al-Nil, no centro do Cairo.
O assédio sexual é considerado delito no Egito desde o ano passado. “É preciso atacar a raiz, não basta uma lei”, diz a cineasta
“Nosso vídeo é mais honesto do que o do diretor Rob Bliss em Nova York. Ele condensa em dois minutos as experiências de dez horas da atriz perambulando pela cidade. Em nosso caso, o trajeto durou menos de dez minutos”, acrescenta a fotógrafa e cineasta belga. No vídeo, a maioria dos homens com os quais Ghunim cruza lança olhares maliciosos e comentários vulgares.
“O mais frequente são os olhares e comentários obscenos de desconhecidos, mas também tocar as partes íntimas é comum. Não se pode baixar a guarda. Às vezes me dá medo caminhar pela rua e pego uma pedra para me sentir mais segura”, comenta Esraa, cuja pior experiência aconteceu quando conseguiu escapar de um taxista que a levou para um descampado nos arredores com a provável intenção de estuprá-la.
Ao contrário do que diria a intuição, as situações de maior risco acontecem nos lugares de maior movimento, como manifestações, eventos públicos ou meios de transporte, e em plena luz do dia. Em junho, houve uma inesperada mudança na inércia comum das autoridades diante de um problema que não é novo, mas que foi se agravando com o passar dos anos. Uma jovem sofreu uma brutal agressão sexual de vários homens na emblemática praça Tahrir, o epicentro da revolução de 2011.
O caso foi distinto porque aconteceu durante uma comemoração pela vitória do general Abdel-Fatta al Sisi nas eleições presidenciais e foi gravado com um celular. Pouco depois de postado nas redes sociais, se tornou uma sensação, e forçou al Sisi a reagir e transformar a luta contra o assédio em prioridade. Em um gesto para causar impacto, visitou a jovem agredida com um ramo de flores no hospital. Em questão de dias, o presidente assinou um decreto que tipificava pela primeira vez o assédio sexual como delito. O que as organizações de defesa dos direitos da mulher não conseguiram durante décadas de trabalho árduo, o vídeo conseguiu em uma semana.
O decreto, uma emenda ao Código Penal, prevê penas de seis meses a cinco anos dependendo da gravidade da agressão e se o infrator é reincidente. Além disso, também aplica multas de mil a 17 mil reais, uma quantia considerável se levamos em conta que o salário mínimo no país árabe não ultrapassa 235 reais.
Cinco meses depois da aplicação do novo decreto, que incluiu alguma condenação exemplar, os resultados são bem mais escassos. “Uma vez fiz uma denúncia, e a polícia me tratou como se eu fosse uma puta. Não penso em voltar a fazer isso”, lamenta Esraa. “Há um pouco menos de assédio nas ruas. Mas não basta uma lei. As raízes profundas do problema devem ser atacadas, provocar uma mudança cultural”, comenta Van Loon, que morou em outros países do Oriente Médio e acredita que nenhum lugar se compara ao Cairo nessa questão. “Em apenas um dia aqui posso vivenciar um número semelhante de casos de assédio que presenciei em Amã ou Ramallah em três meses.”
Entre os fatores que costuma destacar para explicar esse fenômeno, ela cita a frustração sexual que gera uma sociedade cada vez mais conservadora, mesclada com a ampla divulgação de vídeos eróticos através da televisão por satélite ou pela Internet. “Alguns especialistas afirmam que a causa é a crise econômica, o que elevou substancialmente a média de idade do casamento, especialmente entre os homens, aumentando a frustração sexual”, comenta Rasha Hasan, pesquisadora especializada em assédio que elaborou vários relatórios para diversas instituições.
“Apesar disso, acredito que o verdadeiro fator seja a falta de respeito em relação à mulher e aos seus direitos”, alfineta Hasan; e lembra que a desigualdade de gênero na sociedade egípcia aumentou durante as últimas décadas devido à uma interpretação retrógrada do Islã incentivada pela Arábia Saudita. A fotógrafa belga concorda com o diagnóstico: “Não tenho certeza se a questão da idade do casamento seja a chave. Meu pior caso de assédio foi com um idoso de 70 anos. Para mim o desemprego juvenil é um fator-chave, e a frustração sentida por muitos garotos com suas vidas. O assédio é uma forma de elevar sua autoestima às custas da humilhação de outras pessoas”, diz Ghunim.
Umas das justificativas mais desgastadas dos que desculpam esse tipo de comportamento consiste em atribuir a responsabilidade às vítimas, sobretudo, pela forma de vestir. No entanto, os dados refutam esse lugar comum. Segundo o estudo da ONU, cerca de 75% das mulheres assediadas se vestiam de forma recatada. “Uma das mulheres que entrevistei me disse que sofria assédio inclusive usando um véu que cobria totalmente o rosto”, diz Van Loon.
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